Mário Sérgio Cortella e Paulo de Tarso Venceslau
O idealizador da Pedagogia do Oprimido relata passagens de sua infância e juventude
Repensar, reescrever sobre o já escrito e refletido é tão importante quanto escrever coisas ainda não ditas.
Paulo Freire sem limites. Sem censura. Escavando a memória, faz um depoimento à Teoria & Debate capaz de provocar inveja aos melhores psiquiatras e psicanalistas.
Fundador do PT, discriminado ao longo dos anos pela direita e esquerda militante, nosso entrevistado descobriu na infância a virtude da tolerância, indispensável ao educador.
E, como educador, não coloca em segundo plano o desejo e a sexualidade, que não podem ser reduzidos à simples descrição fisiológica do corpo. “É sobretudo, um grito em torno do direito de gozar”.
Secretário de Educação do Prefeitura de São Paulo, implantou as diretrizes básicas posteriormente implementadas sob o comando de Mário Sérgio Cortella, revolucionando todo o ensino básico do município.
A entrevista concentrou-se em pontos menos conhecidos, porém mais ousados, da vida de Paulo Freire para propiciar ao nosso leitor uma complementação do que já foi divulgado. Nem por isso ele deixa de abordar temas mais recentes e manifestar um otimismo jovial diante dos desafios que estão colocados.
Socialista confesso, não aceita os discursos neoliberais que sugerem a morte de Marx. “Eu recuso esse discurso porque o meu sonho e a minha utopia têm que estar absolutamente vivos”.
Professor Paulo Freire, pouca gente sabe que antes de se transformar em pedagogo o senhor era advogado. Como se deu essa mudança?
Eu acabei de escrever sobre isso. Trata-se de um longo texto que será uma espécie de retomada da Pedagogia do Oprimido. Um dos meus trabalhos, hoje, é uma espécie de arqueologia, escavando a minha memória e descobrindo algumas tramas, que me conduziram um dia a escrever este livro. Ao retomar a Pedagogia do Oprimido, interessa a mim redizê-la. Dizer as coisas de novo é tão importante quanto escrever coisas não ditas. Estudei Direito porque, em primeiro lugar, morava em Recife. Lá não havia outras possibilidades que ultrapassassem Engenharia, Medicina, Odontologia, Direito, Belas Artes. Na verdade, eu tinha, desde o começo da juventude, um gosto quase irresistível por duas coisas que nunca fiz. Qualquer das duas, porém, me teria remetido à Educação e à Pedagogia, exatamente pelas relações que elas têm entre si. Uma era Psiquiatria, possivelmente Psicanálise. Eu tinha uma forte paixão por isso. Não é coincidência que eu tenha trazido para o campo da Educação o conceito de conscientização. Já naquela época, a consciência tinha para mim papel importante. Creio que exagerei um pouco sua influência na feitura da história enquanto prática pedagógica e resvalei de quando em vez para posições idealistas que eu retifiquei, creio que definitivamente, na Pedagogia do Oprimido.
O conceito de alienação tem origem na Psiquiatria, por exemplo.
Exato. São coisas aparentemente coincidentes. E a esse conjunto de aparentes coincidências eu chamo de tramas no tempo, das quais extraímos tudo.
Além da Psiquiatria, qual era o outro gosto que lhe tocava?
Era fazer Lingüística. Não foi por coincidência que, ao estudar e ao me entregar ao problema da alfabetização, caí numa compreensão mais dinâmica, mais processual, mais dialética da linguagem. Nesse sentido, até recusando a falsa modéstia, eu diria que aceito que se diga “a alfabetização antes e depois de Paulo Freire”. É que eu trouxe para a compreensão da alfabetização uma dimensão histórico-social-lingüística que não existia antes. Ou melhor, que não era percebida.
Na proposta de alfabetização aparecem duas possibilidades frustradas de uma carreira: ora de psiquiatra, ora de lingüista.
De todo modo, qualquer desses caminhos me teria trazido à prática educativa em que, na verdade, eu sempre me senti profundamente completo.
Essa opção que o senhor está contando agora já foi documentada antes?
Não, isso está sendo dito pela primeira vez. Eu não tinha como estudar Lingüística a não ser vindo para São Paulo, onde eu não teria condições de sobreviver. Aos 18 anos, a única saída foi me tornar um bom professor de sintaxe da Língua Portuguesa, dar aulas e acompanhar meus alunos particulares, com o que eu ajudava a família. Eu não podia sair de Recife mas gostava de estudar. A saída foi estudar Direito. Confesso que hoje, ao perguntar-me sobre o tempo vivido, tento encontrar sabores antigos no corpo do tempo que estou vivendo e descubro um certo gosto, por exemplo, nas análises filosóficas em torno do Direito. Lembro-me do prazer com que ouvia aulas dos professores discutindo filosoficamente o Direito, a Teoria do Estado etc.
E o senhor chegou a exercer a profissão de advogado?
Todo jovem tem sua turma, seus colegas mais próximos. Dois ou três de nós nos reunimos, alugamos um escritório e começamos a tentar trabalhar. Estudávamos, líamos, e claro que passamos todo um 5º ano sem ter nenhum cliente. Depois nos formamos, nos diplomamos e, um dia, apareceu um cliente para mim. A pessoa que me procurou era um credor. Era o secretário do dono de uma loja que tinha vendido um equipamento para o consultório de jovem dentista. O cara comprou e não pagou e cabia a mim então chamá-lo para discutir as possibilidades de pagamento e acioná-lo. Eu fiz uma cartinha e uma tarde um rapaz, que era da minha idade, chegou ao escritório, tímido, nervoso, e disse: “Realmente eu devo e não posso pagar. Sou recém-casado e tenho os meus móveis. O senhor pode acionar os móveis etc. O senhor não pode tomar nem os instrumentos de trabalho nem minha filhinha de um ano e pouco”. Era exatamente a idade da minha filha mais velha. Eu olhei para o moço e disse: “Olha você e sua mulher vão ter no máximo um mês de paz, porque daqui uns quinze dias eu vou devolver essa causa ao dono da loja que está lhe acionando. Ele vai passar mais quinze dias para achar um outro jovem como eu, porque isso não é causa para um advogado de renome. O sujeito lhe escreve e são mais oito dias. É uma pausa que você vai ter para a família”. Voltei para casa e Elza, minha primeira mulher, perguntou: “Como foi hoje no escritório?”. Essa é uma pergunta que, de modo geral, se burocratiza nas relações marido e mulher. A Elza não perguntava burocraticamente. Ela estava mesmo interessada em saber o que ocorria no escritório. Contei a ela a história, e que tinha encerrado a minha carreira de Advocacia. Ela riu, me beijou e disse: “Eu sabia que um dia isso ocorreria. O que você tem que fazer é Educação”.
O senhor também brigou com a profissão?
Ao contrário. Eu sou um homem profundamente convencido de que uma das formas de brigar para mudar as sociedades é tentar pôr em prática as leis que as classes dominantes, por tática, deixam ser aprovadas para nunca serem aplicadas. Portanto, não houve, na minha desistência, nenhuma negação do Direito.
A sua família tinha uma formação religiosa?
Meu pai era um homem realmente marcante. Morreu quando tinha 52 anos e eu, hoje, tenho setenta. Quando ele morreu eu tinha treze. É importante que eu diga que há momentos em que sinto como se ele estivesse comigo. Elza, só de me ouvir falar e descrever a figura do meu pai, tinha uma enorme admiração pelo velho. Quando nasceu nosso primeiro filho homem pusemos o nome de Joaquim Temístocles Freire Neto. Ele morreu com sete dias de vida. quando nasceu o segundo batizamos de Joaquim, que está vivíssimo, na Suíça.
Um grande músico…
Grande violinista. Nós pusemos de novo Joaquim Temístocles Freire Neto.
Voltemos ao seu pai, cuja influência marca até hoje.
Ele era espírita por opção, por amorosidade. Eu, por exemplo, aos nove anos, conheci Alan Kardec. Não li, mas ouvi meu pai lendo. Meu pai tinha uma pequena biblioteca espírita. Lia muito bem e escrevia em francês, uma façanha que eu não consegui, mesmo morando dez anos na Suíça. Minha mãe era católica. Meu pai jamais impôs sua religião quando predominava o patriarcalismo do Nordeste, o machismo da cultura nordestina. Ele nem sequer fazia restrições veladas à catolicidade da minha mãe. Lembro-me de que, por volta de 1928, houve uma coisa, que acho que hoje não existe mais, chamada Semana das Missões. Depois de comparecer a toda a semana, cheguei a meu pai, num sábado a tarde e disse: “Meu pai, amanhã vou fazer a minha primeira comunhão”. Veja bem, eu não perguntei, eu comuniquei. Ele me beijou a testa e falou: “Eu irei com você”. Ali ele foi um pedagogo e democrata. Mais do que uma prova de que me queria bem, ele me deu uma lição de que, se você respeita o outro, é preciso aprender a conviver com a diferença e poder lutar com o antagônico. No fundo não havia antagonismo nenhum entre a crença nascente, incipiente do filho de sete anos que ia fazer comunhão, convencido de que recebia Deus, e o seu desenho de mundo amoroso, feliz e fraterno. Ele me deu a grande lição da virtude indispensável ao educador progressista, ao revolucionário, que é a virtude da tolerância. É essa capacidade que eu tenho de, reconhecendo a diferença, conviver com ela desde que o sonho do outro coincida com o meu e, portanto, não nos faça antagônicos. Esse testemunho talvez seja a marca do velho sobre mim.
O senhor fala da individualidade?
Ao estar no mundo, você faz mais do que olhar e responder às coisas à sua volta por um sistema de comportamento pré-estabelecido. A questão da individualidade é fundamental ; os marxistas mecanicistas esqueceram isso. Ao negarem a importância da individualidade para ressaltar apenas o social dentro do qual afogaram o individual, eles terminaram por negar o papel substantivo da subjetividade na feitura da História. Nós, homens e mulheres, aprendemos muito mais do que apenas olhar; aprendemos a admirar, a espantar-nos diante do que vemos, a tratar a memória daquilo que ficou porque vimos antes, a estabelecer relações entre as coisas que se memorizam e as coisas que não foram ainda feitas. Descobrimos a razão de ser de coisas que são feitas hoje mas que estão ligadas a um remotíssimo ontem. No momento daquele ontem você não dispunha de um instrumental intelectual.
Essa aquisição é fundamental para o desenvolvimento da crítica…
Acontece que muitos de nós jamais adquiriram esse instrumental. À classe trabalhadora é negado o instrumental necessário para compreender mais criticamente a razão de ser de suas experiências anteriores. Nós, os intelectuais, é que vivemos escrevendo a história da classe trabalhadora porque ganhamos um instrumental que nos permite isso. E, porque fazemos isso, às vezes perdemos a humildade de perceber que apenas estamos procurando entender o que não fizemos e que foi feito pela classe trabalhadora. Quando eu falo dessa história do meu pai, obviamente que a presença dele foi fundamental durante o processo do meu amadurecimento, mesmo que dela não tivesse a consciência que tenho hoje. Mas aquela presença iria marcar minha forma de estar no mundo.
Fonte: Teoria e Debate, nº 17, 06 de janeiro de 1992. Acervo: Centro Sérgio Buarque de Holanda/Fundação Perseu Abramo.