Entre as antigas atividades gerais que foram se transformando em profissões específicas está a de jornalismo. Na sua essência, o jornalismo trata da informação.

Entre as antigas atividades gerais que foram se transformando em profissões específicas está a de jornalismo. Na sua essência, o jornalismo trata da informação.

Jornalismo profissão específica ou atividade geral?*

Por Perseu Abramo
02/10/1987

O que diferencia uma profissão de uma atividade geral? Esta não tem contornos nítidos ou precisos. Pode constituir-se de tarefas as mais diversas, todas relativamente simples. Para realizá-las, quase nunca é necessário um conhecimento mais aprofundado. Seu perfil impreciso permite que praticamente qualquer pessoa possa exercer uma atividade geral. Basta algum atributo físico ou mental, um poco de prática, “um certo jeito para a coisa”. Nessa constatação, não há menoscabo e nem diminuição da dignidade do trabalho exercido.

Uma profissão é diferente. Geralmente tem raízes em antigas atividades gerais que foram se especializando, com inúmeras tarefas, algumas mais simples, outras mais complicadas. Uma profissão caracteriza-se, fundamentalmente, por constituir um sistema articulado de funções específicas, complexas e complementares entre si. Por isso, sempre exige algum tipo de formação básica, preliminar ao seu exercício. Treinamento e prática são essenciais para complementar a formação; mas esta é indispensável. Atributos pessoais podem contribuir para formar um profissional melhor; mas essas qualidades não prescindem da formação. Há exceções, mas estamos tratando da regra geral.

A formação profissional específica pode ser transmitida de várias formas e em diversos níveis: oralmente, do mais velho para o mais jovem; os conhecimentos podem ser elementares ou sofisticados, dependendo da complexidade das funções.

As sociedades modernas desenvolveram sistemas formais de formação geral e específica em diversos graus e níveis, incumbidas de dar o preparo básico para o exercício de inúmeras profissões. Ao dar esse preparo, o sistema também dá um sinal, uma prova pública de que o preparo foi dado. Esse sinal é chamado de certificado ou diploma, e indica o grau e o nível da formação regular conferida. É óbvio que esse sinal não significa que o preparo obtido seja satisfatório ou suficiente, nem que elimine a necessidade de treinamento, prática ou mais formação; mas é uma espécie de “sinal verde” mínimo para a passagem do nível da formação para o exercício da profissão, do mundo escolar para o mundo profissional.

Entre as antigas atividades gerais que foram se transformando em profissões específicas está a de jornalismo. Na sua essência, o jornalismo trata da informação. É uma profissão constituída de funções que se destinam a planejar e obter informações do mundo real ? físico ou social ? organizar, estruturar e hierarquizar essas informações, explicá-las, analisá-las e interpretá-las, e apresentá-las e difundi-las através de diversos processos, utilizando-se de meios impressos, auditivos, visuais, geralmente combinados entre si.

Não é uma atividade geral, que qualquer um possa fazer. É um processo específico e complexo e que, por isso, exige formação especializada. A tendência histórica provável é que essa especialização aumente: cresce a complexidade tanto do mundo social e físico, que constitui o conteúdo das informações, quanto dos métodos de obtenção, registro e difusão das informações. Por isso modernamente o jornalismo necessita de formação especializada de nível superior; por isso é que surgiram, no interior dos sistemas escolares universitários, os cursos de jornalismo e seus diplomas. Não se trata de um “direito” dos formandos. Trata-se do direito de a sociedade exigir do profissional a prova da sua formação regular, escolar e superior específica.

Supor que outra formação não específica seja igual à de jornalismo significa negar o jornalismo como profissão específica e entendê-lo como atividade geral. Efetivamente, todos quantos concebam o jornalismo como atividade geral são coerentes ao negar a necessidade do diploma de jornalismo. Mas, para continuar coerentes, terão de assumir a premissa de seu corolário: se o jornalismo é uma atividade geral, não pode exigir como requisito prova nenhuma de qualquer formação prévia.

É claro que isso tudo não tem nada a ver com o direito de ter e emitir opiniões. A essência do jornalismo é a informação. O direito de ter e difundir opiniões não é característica nem específica e nem exclusiva do jornalismo. Abarca um campo muito mais vasto, que é o da própria sociedade e do grau de democracia que ela comporta. Um jornal, uma revista, uma programação de rádio ou televisão, contém, além de jornalismo, muitas outras coisas, inclusive opiniões.

Qualquer pessoa deveria ser inteiramente livre para ter e difundir opiniões. Para isso, não precisa de diploma, certificado, sinal ou prova pública, requisito escolar, documento formal ou coisa alguma. Opinião por opinião, a de um bóia-fria analfabeto é tão legítima quanto a de um doutor em Filosofia ou Ciência Política. No Brasil, os meios de comunicação ? jornais, revistas, rádios e TVs ? na sua imensa maioria, são propriedade ou do Estado ou de empresários privados. São esses proprietários que podem ou não, nesse sistema, autorizar a divulgação de opiniões em seus veículos. Isso nada tem a ver com jornalismo ou diploma de jornalismo. Nem o diploma de jornalismo, nem a regulamentação da profissão de jornalista, impedem ou sequer dificultam o direito de qualquer um emitir e difundir opiniões. É o regime de propriedade dos meios de comunicação que tem a ver com a liberdade e o direito de divulgar opiniões.

Palhaços, idiotas e picaretas, isso os há em qualquer profissão, ou atividade, com ou sem diploma, entre empregados e entre patrões, dentro e fora da academia. E de muitos deles é o reino dos céus, tanto no céu quanto na terra.


*Publicado no jornal Folha de S. Paulo.