O professor Darcy Ribeiro, que foi ministro da Educação e um dos criadores da Universidade de Brasília, preparava-se para ir a uma conferência de Educação no México quando Eles chegaram e disseram: não pode.

 

Há uma semana atrás, o professor Paulo Freire, que foi criador do método que leva o seu nome e um dos educadores mais importantes do Brasil, preparava-se para vir a um Seminário de Educação em Campinas e aí Eles chegaram e disseram: não pode.

O professor Darcy Ribeiro, que foi ministro da Educação e um dos criadores da Universidade de Brasília, preparava-se para ir a uma conferência de Educação no México quando Eles chegaram e disseram: não pode.

 

Há uma semana atrás, o professor Paulo Freire, que foi criador do método que leva o seu nome e um dos educadores mais importantes do Brasil, preparava-se para vir a um Seminário de Educação em Campinas e aí Eles chegaram e disseram: não pode.

Como Eles sempre acham que não pode e nunca acham que podem esclarecer e invariavelmente declaram que nada têm a declarar, passemos adiante, às especulações.

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Um dos direitos fundamentais do Homem, como todos sabem, é o direito de ir e vir. O professor Darcy Ribeiro, que estava no Brasil, quis ir ao México, mas Eles disseram não. O professor Paulo Freire, que estava em Genebra, queria vir ao Brasil, mas Eles disseram não. Ora, ocorre que, antes de cá estar, o professor Ribeiro estava fora, quis para aqui vir e veio; antes de estar lá fora, o professor Freire aqui estava, quis ir para fora e foi. Só que agora um quis vir e não pôde e o outro quis ir e também não pôde. Eis aí o que é uma democracia relativa. Eles asseguraram o direito de ir (para o professor Freire) e o de vir (para o professor Ribeiro); é bem verdade que não garantiram ao professor Freire todo o direito (o de vir) nem ao professor Ribeiro o direito todo (o de ir). Mas, afinal, nada é perfeito neste mundo. E agora Eles, que aplicaram aos dois professores doses tão equilibradas de liberdade com responsabilidade, poderão proclamar, nas conferências jurídicas internacionais, entre orgulhosos e modestos, que aqui vigora plenamente o direito de ir e vir, para qualquer cidadão.

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Mas talvez estejamos equivocados, e não se trate de ir e vir, e sim do de liberdade de opinião. Vejamos. O futuro presidente da República [general João Figueiredo] diz que a Arena [Aliança Renovadora Nacional, partido de apoio ao regime militar] ganhou as eleições; o futuro vice-presidente da República [Aureliano Chaves] diz que a Arena perdeu as eleições. Afinal, quem ganhou as eleições? Depende. Numa democracia absolutamente relativa, a liberdade é absoluta, mas a opinião é relativa. Na opinião do presidente, ganhou a Arena; na do vice-presidente, a Arena perdeu. Não se sabe quem ganhou as eleições, mas está garantida a liberdade de opinião.

Mas isso é exceção, dirão os cautelosos. E os sibilinos: Será? Parece que não. Vejamos ainda: em Pernambuco o candidato Um, ao Senado, da Arena, diz que venceu, o que é negado pela Arena 2; e o candidato Dois, ao Senado, pela Arena, diz que quem venceu foi ele, no que é contestado pela Arena 1. Em que ficamos? Se vivêssemos numa Ditadura absolutamente absoluta, essa liberdade de opinião seria inconcebível.. Não é o caso, portanto. Então, não nos resta outro caminho que ficar com as duas opiniões: perderam os dois.

A liberdade de opinião, entre nós, é tão imensa e abrangente que não se restringe às pessoas: atinge também os objetos inanimados. Quando Eles quiseram saber se poderiam permitir ao professor Ribeiro viajar, pediram a opinião do computador do Rio, e este disse que sim; aí, num rasgo de abertura e distensão, pediram a opinião do computador de Brasília. E este disse que não. Atônitos, pediram desculpas ao professor e tornaram a indagar dos computadores ? sim ou não? Não, respondeu o de Brasília; o do Rio ripostou: sim. E nisso se passaram seis horas. Afinal, liberdade é liberdade.

É possível, todavia, que ainda estejamos sendo injustos. Vai ver que não se trata nem do direito de ir e vir e nem de liberdade de opinião. Trata-se, é provável, de uma questão de imagem. Eles podem ter ficado temerosos de que o professor Darcy Ribeiro, indo ao México, se dedicasse a denegrir a imagem do Brasil no Exterior; e de que o professor Paulo Freire, vindo a Campinas, se divertisse em branquejar no Brasil a imagem do Exterior. Se as leis da ética não explicam o fato, talvez o façam as da ótica. Quando espelhada, uma imagem é o seu reverso. No Brasil, o professor Paulo Freire não poderia denegrir qualquer imagem no Exterior; então, por que deixá-lo no Exterior? No Exterior, o professor Darcy Ribeiro não poderia branquejar qualquer imagem no Brasil; por que então deixá-lo no Brasil? Só que, agindo como agiram, eles provocaram a seguinte situação: no México, todos estão sabendo que para lá não pode ir o professor Darcy Ribeiro, e lá estará sendo denegrida a imagem do Brasil, enquanto cá permanece o professor; em Campinas, todos estão sabendo que para cá não pode vir o professor Paulo Freire, e aí estará sendo denegrida a imagem do Brasil, enquanto o professor cá não permanece. Enfim, são os azares da sorte.

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Mas vai ver que tudo são conjecturas vãs, e o problema reside tão somente no nível da Educação. O professor Paulo Freire, como todos sabem, é um especialista em Educação de base. Se para cá viesse perceberia imediatamente que nossa base não tem Educação, e acabaria por concluir que o nosso ensino está em frangalhos. O professor Darcy Ribeiro, sabem-no todos, é um especialista em Educação universitária. Se fosse ao México, lá poderia dizer que não há universalidade na nossa Educação, e seus ouvintes concluiriam que o nosso ensino está em frangalhos. Mas, se é assim, porque então não convidar para cá e aqui manter o professor Paulo Freire, que poderia resolver os nossos problemas da Educação de base? E o Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização], como ficaria? ? perguntam logo Eles, que estão sempre alertas e vigilantes. Ou, assim sendo, porque não permitir que o professor Darcy Ribeiro vá ao México debater com seus colegas os problemas da Educação superior? Mas Eles, que sempre estão vigilantes e alertas, perguntam logo: E como ficaria a lei 5.540? Realmente, são dilemas que Eles ainda não estão preparados para resolver. Não os atormentemos mais, pois, com questões tão delicadas e essenciais.

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Ora, pode dar-se que nada disso seja verdadeiro, e que a razão pela qual a um não se permitiu vir e ao outro se proibiu ir resida totalmente em outra esfera: a da burocracia. Todos sabem como são essa coisas: papéis, carimbos, assinaturas, selos e estampilhas. Mas ocorre que o professor Paulo Freire foi convidado para cá vir por uma entidade oficial, que é a Universidade de Campinas. E que o professor Darcy Ribeiro foi convidado para ir a um país que tem, com o Brasil, relações diplomáticas, através do Ministério do Exterior, que também é uma repartição oficial. E acontece, ainda, que é essa mesma repartição a que concede os passaportes com os seus respectivos vistos de entrada, ou de saída. Em outras palavras, essa repartição, entre os milhões de repartições oficiais do Brasil, é a única que detém o poder de aplicar, ou de aplicar lenta e gradualmente, o direito de ir e vir. Ao professor Freire, exclamou: não venha! Ao professor Ribeiro obtemperou: não vá! E eis que de repente percebemos que a burocracia, que supúnhamos tão fria e desumana, revela que tem sentimentos, e tem preferências e tem idiossincrasias! Certamente ela não gosta do professor Freire, pois não o quer perto de si. Mas ao professor Ribeiro, que de si não quer distante, certamente ela dedica algum afeto. Pelo professor Freire ela deve guardar recôndita repulsa, pois não o quer próximo nem pelos fugidios instantes de um Seminário; já pelo professor Ribeiro, ela deve alimentar secreta admiração, pois não o deseja longe nem pelos momentos fugazes de uma Conferência. As fotografias indicam que o professor Paulo é calvo mas ostenta bela e vasta barba; e que o professor Darcy é glabro mas sustenta basta e bela cabeleira. Será isso?
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Deixemos, enfim, as conjecturas.
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O professor Darcy Ribeiro e o professor Paulo Freire são dois dos brasileiros mais ilustres de sua geração. São dois educadores brasileiros dos mais respeitados do mundo todo. Sua passagem pela História da Nação já está marcada, e ficará na memória dos povos. Os pequenos e os grandes dissabores que os dois professores já enfrentaram e ainda terão de enfrentar também fazem parte de sua história, da história de sua Nação e da de seu povo. Para o anedotário ficarão as histórias dos outros, dos que lhes engendram e perpetram os dissabores. Quando a arrogância monta o cavalo do arbítrio e o conduz a galope pela senda da mediocridade, cai inexoravelmente pelo despenhadeiro do ridículo incontrolável.