O PT E A QUESTÃO RACIAL: UMA CONVERSA QUE NÃO PODE FICAR SÓ ENTRE NEGROS – 1987

Hédio Silva Júnior

Membro da Comissão de Negros do PT/SP

O surgimento do partido dos Trabalhadores representou, no limite, o rompimento do caráter vanguardista, elitista e dogmático da maioria das propostas que se reivindicam socialistas e marxistas-leninistas registradas pela nossa História.

No entanto, para que o nosso Partido seja capaz de levar a cabo a proposta de uma sociedade justa e igualitária é preciso que esteja intimamente ligado à realidade da nossa sociedade e a todas as contradições vivenciadas pelo conjunto de população brasileira; isto é, é fundamental que o PT se faça em torno de um projeto de Brasil que os trabalhadores, as forças democráticas e o conjunto do povo desejam.

Para tanto, nós negros – que somamos pelo menos 44,5% da população brasileira – temos uma imensa contribuição a dar: no que diz respeito à questão do racismo e da discriminação racial, nosso Partido não avançou na visão tradicional da esquerda, que aponta a emancipação da classe operária como panacéia para todas as contradições experimentadas pelo nosso povo. Não avançou no sentido de compreender o papel que a discriminação contra os negros desempenha na super exploração capitalista e na forma de dominação do autoritarismo brasileiro. Consequentemente, nosso Partido não percebeu ainda a dimensão da questão racial na luta contra a opressão e, portanto não atribui à luta contra o racismo o peso político que lhe é devido. Ainda que em seu manifesto o PT afirme solidariedade à luta dos negros, essa solidariedade não tem-se manifestado a nível da sua prática política.

A população negra constitui um dos pilares da sociedade brasileira; forma 44,5% da população (IBGE-1980) e integra de maneira visível o segmento mais explorado da sociedade. Apesar disso, não existe no movimento operário e popular uma tradição de debate e busca de resposta à realidade socioeconômica do negro no Brasil. Assim, como constata o jornalista Hamilton Cardoso, “a vida e as contradições que afligem a população negra trabalhadora têm sido tratadas à margem das grandes contradições nacionais, ao mesmo tempo em que o debate sobre as principais contradições e crises brasileiras tem sido feito como se estas estivessem divorciadas da vida e da condição racial de metade da população brasileira”. É preciso dar fim a esse desvio.

Este é o sentido deste artigo, que esperamos seja o pontapé inicial de um debate amplo, na perspectiva de construirmos um PT que considere efetivamente a discriminação contra os negros, as mulheres, a dizimação dos índios, e todas as demais contradições presentes em nossa sociedade. Sobretudo aos negros petistas cabe o papel de demonstrar ao PT o quanto o racismo, como sistema de dominação, atravanca o movimento de libertação do nosso povo.

Evidentemente não se trata de colocar a contradição racial como contradição fundamental da nossa sociedade, capitalista. Trata-se de compreender que tal contradição atinge pelo menos 40,2% da força de trabalho do País, segundo a PNAD de 1976, sendo que, de acordo com essa pesquisa, os negros e as negras somam 54,1% dos trabalhadores no setor da agropecuária e da produção extrativa vegetal e animal; 37,3% dos trabalhadores da indústria de transformação e da produção extrativa mineral; 52,7% dos trabalhadores da construção civil; 30,8% dos trabalhadores do comércio; 50,8% dos que trabalham em prestação de serviços e ainda, 36,6% dos trabalhadores do setor de transportes são negros.

É também significativo o resultado da PNAD de 82 que comprova que os negros somam 54,5% dos que ganham até um salário mínimo (SM) e 3,8% dos que ganham mais de 5 SM, ao passo que entre os trabalhadores brancos esses números são 31,4 e 15,6, respectivamente.

Igualmente reveladores são os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego na Grande São Paulo, realizada pelo DIEESE/SEADE: um chefe de família branca recebe por hora trabalhada o equivalente ao dobro do que recebe um chefe de família negra, o mesmo acontecendo com trabalhadores negros e brancos com formação universitária.

O fato é que, em se tratando de emprego, salário, condições de trabalho, ascensão profissional, jornada de trabalho e desemprego, a situação do negro é flagrantemente pior que a dos brancos; ou seja, temos uma série de dados da realidade do negro no Brasil que derrubam alguns mitos e estimulam velhas questões a serem respondidas pelo Partido dos Trabalhadores.

O primeiro mito a cair por terra foi o de que a classe trabalhadora é uma massa homogênea composta por homens brancos e que, portanto toda ela recebe um tratamento uniformizado por parte do capital. Há desigualdade não só no processo seletivo e nas condições de trabalho, como também na distribuição de renda, na capacitação dos trabalhadores, na especialização de mão-de- obra e, finalmente, na capacidade de organização de trabalhadores negros e brancos. Portanto, não podemos mais admitir o velho discurso de que os trabalhadores são explorados independentemente de sua origem racial. É a queda total – em todos os níveis da sociedade – do mito da democracia racial.

Ora, como então se explica que em seus planos de ação o PT ignore questões de tal importância?

1) Porque a militância petista continua sendo submetida aos ditames da ideologia racista, via tese da democracia racial brasileira, que no limite cumpre o papel de dificultar a compreensão da nossa realidade com o objetivo de perpetuá-la. Portanto, cabe às Comissões de Negros do PT desarticular a influência que o mito da democracia racial exerce no pensamento petista.

2) Porque o pensamento petista, no que diz respeito à questão racial, é norteado pelo marxismo ortodoxo, ideologia eurocentrista formulada basicamente a partir das experiências históricas dos países da Europa, essencialmente brancos. Assim, as Comissões de Negros devem estimular o estudo criativo e sistematizado da teoria, a partir da nossa condição de sociedade multirracial, da nossa história e da experiência concreta das nossas lutas.

3) Porque, incapaz de formular resposta às duas primeiras questões, nosso Partido vem-se cristalizando dentro de uma visão em que se relega a luta contra o racismo a um plano insignificante; e, ao contrário de buscar compreender e ter políticas para a questão, optou pela posição nada transformadora de apoio descomprometido, ou de fechar os olhos ao problema, ou de responsabilizar somente os negros por aquela luta, ou ainda, em alguns casos, de afirmar que a luta contra o racismo divide os trabalhadores. Neste particular, aos trabalhadores negros não serve a idéia de solidariedade automática de classe que ignore seus problemas específicos. Isto é, ou a idéia de solidariedade de classe contempla as nossas especificidades ou para nós, negros, tal pregação não passará de uma falácia. É nosso papel, então, trabalhar para que o PT reconheça a questão dos negros como problema nacional e assuma efetivamente a luta contra o racismo, entendendo-a como de responsabilidade de todos aqueles que lutam por uma sociedade justa; e, neste sentido, é fundamental que demonstremos ao PT que o combate ao racismo não divide os trabalhadores, ao contrário, legitima e fortalece a solidariedade de classe.

4) Porque o movimento negro brasileiro – do qual as Comissões de Negros são parte – não conseguiu ainda elaborar uma ideologia anti-racismo que fustigue e leve ao colapso o mito da democracia racial e que sirva para colocar a luta contra o racismo no contexto da luta de classes e como parte integral da luta política por uma sociedade socialista. Nossa tarefa, enquanto negros petistas, passa então por lutar pelo crescimento da consciência do povo negro, das nossas raízes e da nossa história; e, ao mesmo tempo, trabalhar para que o Partido dos Trabalhadores tenha a dimensão da questão racial nos seus diversos níveis, do econômico ao cultural, e tenha a nitidez de que não haverá democracia efetiva neste País sem democracia racial.

Finalizando: é de grande importância que na Constituinte a bancada petista tenha propostas concretas de combate ao racismo nas áreas do trabalho, educação, cultura, saúde, enfim, em todas em que este se manifeste.

Fonte: Boletim Nacional do PT, nº 27, maio de 1987, p. 04-05. Acervo: CSBH/FPA.

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