Joel Zito Araújo
Ao longo deste século, pouca coisa mudou em relação ao preconceito contra os negros. Assim como os folhetins do período imediatamente posterior à escravidão, a televisão apresenta os negros como estereótipo da degeneração humana, ou como seres subalternos.
Possivelmente se fizéssemos uma pesquisa comparativa sobre as formas que o negro e a cultura negra aparecem na mídia televisiva na última década, com a imprensa e o folhetim no final do século passado, no fim da escravidão, não seria tão surpreendente e exagerado se a conclusão mostrasse que as representações atuais sobre a população e a cultura negra somente atualizam os preconceitos e os estereótipos tão assíduos naquele período. Os temas da violência e malandragem do negro, o estereótipo do negro degenerado ébrio e vagabundo, da deformação da família escrava, da feitiçaria e práticas bárbaras das religiões negras (Lilia Moritz Schwarcz, Retrato em branco e preto. Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no século XIX) continuam vivos, e sutilmente reafirmados na imprensa e na TV.
A diferença entre estes dois finais de século, que confunde a muitos, decorre do aumento da mestiçagem, fazendo com que, no Brasil de hoje, as práticas de discriminação racial misturem-se, associem-se e complementem-se com as práticas de discriminação de classe, e vice-versa. A ideologia do branqueamento tão em voga a partir da década de 30, como modelo para as classes populares, acabou por ampliar para os filhos mestiços os preconceitos enfrentados pelos pais negros. Hoje, ser negro é ser favelado, ser favelado é ser negro, ignorante, violento, vagabundo, marginal etc. Embora eu me detenha em um exemplo extremo, mas que se aplica a um segmento composto por quase metade da população brasileira excluída de uma moradia digna, a agressão contra a filha negro-mestiça do governador do Espírito Santo, ocorrida no primeiro semestre do ano passado, demonstra a universalização desta fusão de preconceitos no nosso país.
Que significação tem o negro e o negro-mestiço não ocuparem o lugar nobre da produção televisiva. Ser apresentador de telejornal, comentarista esportivo, galã de telenovela, ser animador de um programa de adultos ou infantil? Como podemos entender que eles estão em lugares secundários, nas ocorrências policiais, nos papéis subalternos, nas desgraças cotidianas do povo retratadas pela mídia televisiva? E que significações terá para o negro não ter semelhantes físicos, com traços e elementos de sua cultura, ocupando os postos nobres?
Em uma carta recente dirigida à Veja, uma leitora da Dinamarca mostrava, e demonstrava, que existem mais negros e menos louras nos comerciais daquele país do que no Brasil. O que faz com que os publicitários, as elites empresariais e governamentais, somados aos donos de canais de TV, correspondam só aos padrões da minoria branca, excluindo tão visivelmente a maioria negro-mestiça?
Na dramaturgia das telenovelas, encontramos a eterna retomada dos personagens estereotipados construídos no século passado. O mito da velha escrava servil e bondosa, sem marido e sem família, utilizada desde as novelas radiofônicas, e marcada pela mamãe Dolores, foi reatualizado na Inácia de Renascer empregada de bom coração e resignada, fiel ao patrãozinho e uma verdadeira mãe para os filhos da falecida patroa Santinha. Na mesma novela, a jovem negra Ritinha fez o contraponto da Inácia, fundindo os mitos da escrava imoral com a mulata boa, sempre querendo sexo. Inclusive trazendo a incrível semelhança no nome e na personalidade com a sensual e voluptuosa Rita Bahiana, do romance O cortiço, de Aluízio Azevedo.
No cinema nacional, o negro estuprador, a mãe preta, a mulata boa, o malandro, também foram tipos recorrentes (João Carlos Rodrigues, O negro nacional e o cinema). E nos programas infantis temos as louras apresentadas como modelo para a infância negro-mestiça brasileira. Uma delas, a Angélica, não por acaso, interpretou o papel de Ceci, do romance de José de Alencar, que é um personagem símbolo da tentativa de construção de um mito fundador de construção da brasilidade.
Renato Ortiz em Românticos folcloristas aponta que o romance deste período traduzia o desejo das elites de que o Brasil criasse sua identidade nacional através da fusão de duas raças míticas (índios e brancos), mas nunca como mistura de etnias realmente diversas. Não deve também ser nenhuma casualidade que a Mara Maravilha, sufocada pelas louras, tenha buscado destacar seus traços míticos indígenas.
Voltemos ao presente. Em que medida a mídia televisiva brasileira conseguiu superar os marcos sobre a construção da identidade nacional criada pelas elites, entre o final do século passado e a produção do Gilberto Freyre. Da fusão de duas raças míticas a ideologia do branqueamento contida na visão da mestiçagem como característica da identidade brasileira.
Não pretendemos negar que é bastante comum encontrar entre a população de origem africana no Brasil, que aqui também denominamos de afro brasileira [1] a ausência de um olhar crítico sobre os programas de TV, que também poderia refletir e contemplar os valores, a identidade e os interesses específicos desse imenso grupo étnico. A maioria dos afro-brasileiros está tão familiarizada com a ordem estabelecida da produção simbólica das redes de TV, marcada por referências eurocêntricas, como todos os outros segmentos étnicos do país. A resposta de audiência dos afro-brasileiros, e de toda população brasileira independente de sua origem, aos programas da TV marcadamente montados em uma perspectiva cultural eurocêntrica, com noções de beleza, temas, ênfase e estética branca (como Xuxa e Angélica) é uma com provação disso.
Entretanto, não podemos esquecer que, historicamente, vivemos um processo sistemático de desconstrução da identidade negra, que persiste por quase cinco séculos. Vivemos uma espécie de terceira fase dos comportamentos sociais discriminatórios em relação a etnia afro-brasileira. Nos quatro séculos de escravismo, o preconceito era manifestado abertamente nas relações sociais, na literatura e em todas as artes de um modo geral. Inclusive após a abolição, através da permanência do conceito de raças superiores e inferiores (vide Euclides da Cunha). A seguir, com a construção da ideologia do branqueamento e, posteriormente, a partir da obra de Gilberto Freyre, com a construção do mito de democracia racial, atitudes abertamente racistas perderam força progressivamente e o segmento mestiço começou a ter algum valor na medida em que apresentava um maior número de traços brancos.
O discurso mistificador da democracia racial — contemporâneo do crescimento de um mercado de bens culturais e da afirmação de sua mais poderosa indústria, a televisão —, embora tenha perdido a legitimidade social, passou a ser substituído por um silêncio contundente, que se traduz em indiferença pura e simples das elites e na omissão institucional. No entanto, esta nova atitude política, de se criar um campo de invisibilidade da discriminação racial é cheia de comportamentos contraditórios. Por um lado, não nega a existência do racismo, por outro, transfere para os próprios negros a responsabilidade pela situação, e isenta o poder branco. No terceiro tempo folcloriza as manifestações culturais com um manto de estereótipos, re-atualizados do século anterior, que dá o contorno à política da invisibilidade.
A lógica das grandes redes de TV, ressaltada por vários pesquisadores e produtores deste veículo [2], está voltada, por sua própria natureza global, a um público receptor indiferenciado, a pessoas abstratas. Ou, por suas características brasileiras – de propriedade altamente concentrada nas mãos de poucos, mesmo sendo concessões públicas -, essas redes têm sua produção e programação geridas pela e para a iniciativa privada, atendendo estritamente às necessidades do mercado publicitário. Com essa lógica, a mídia televisiva tende a assumir no país um aspecto perverso de reforço simbólico da política de invisibilidade da desigualdade racial, protegendo-se pela justificativa de uma norma neutra e genérica de tratamento do conteúdo dos seus programas. Ou pela atitude “moderna” de ser capaz de corresponder ao livre mercado.
Por outro lado, como afirma Arlindo Machado, em A arte do vídeo, “não se diz mais que a televisão ‘fala’ das coisas que acontecem, agora ela ‘fala’ exatamente porque as coisas acontecem nela”. A TV brasileira está instrumentalizada por homens de imaginário eurocêntrico, educados por posturas discriminatórias. Esses “senhores da comunicação” não só têm o controle da produção audiovisual, como buscam também o controle das interpretações sociais e da criação das identidades.
Um debate realizado entre representantes da população negra paulista e publicitários, em 1986 [3], revelou que as justificativas comuns oferecidas pelos publicitários para a ausência do negro nos comerciais, ou para a sua apresentação somente em lugares subalternos, como empregada doméstica, carregador etc, eram: a propaganda trabalha com um modelo de família média brasileira, e neste modelo quase não existem negros; o negro não é consumidor (sic! não consumimos sabonetes, roupas, sorvetes … ); os clientes não aceitavam a inclusão do negro no seu produto; a publicidade é um reflexo da sociedade, e como a sociedade é preconceituosa e racista…
Entramos em um círculo infernal sem culpas e sem responsabilidades estabelecidas para os donos das mídias, da publicidade, os homens públicos, as elites em geral. E justamente para a publicidade, que tem por função criar novos hábitos e novos padrões de consumo, criar novas atitudes e novos valores humanos parece ser uma aberração.
Contrariamente à tendência mundial de uso da TV segmentada [4], no Brasil, nem mesmo as possibilidades oferecidas pela ampliação das técnicas de emissão atendem a grupos étnicos da população, a exemplo de como são usadas as TVs em UHF e TVs a cabo, dos Estados Unidos, Canadá e Espanha. Aliás, a própria criação da TV Comunitária no Canadá na década de 70 foi motivada por razões étnicas. Nos Estados Unidos, a população negra constitui canais com programação voltada para a sua autovalorização, nas TVs a cabo, usa as TVs de Acesso Público, e participa de coalizões com outras minorias e ativistas em experiências de comunicação alternativa, como a Deep Dish TV Network.
Em suma, não conseguimos ver nenhum fato relevante que contrarie nossa hipótese de que a televisão no Brasil combina uma política de invisibilidade e desrespeito da identidade étnica da população negra com a apresentação de sua cultura de forma estereotipada, reafirmando preconceitos e reatualizando os estereótipos existentes na sociedade brasileira desde o período escravocrata. Aliás, a produção diversificada de programas voltados para os segmentos populares de baixa renda, moradores de bairros pobres e favelas, na sua imensa maioria afro-brasileiros, são os que estão mais estruturados na reafirmação dos estereótipos negativos quanto à religião, às manifestações culturais, às práticas comunitárias e aos comportamentos da população negra.
Constatamos com imenso prazer que, neste final de século, ao contrário dos desejos da ideologia do branqueamento, os negros não foram exterminados. Os afro-brasileiros, em especial sua juventude negra, lutam contra a exterminação e exclusão, reforçando as denúncias de segregação racial, social, cultural, e afirmando positivamente a sua identidade étnica em entidades políticas ou em grupos culturais como o Olodum, Ilê Ayê, o Rap (que proliferam nas periferias paulistas, cariocas, mineras) e na cultura do reggae do Maranhão. O crescimento político e eleitoral de Benedita da Silva, no Rio de Janeiro, por sua vez, destrói o mito de que negro não é capaz de votar em negro.
E a mídia televisiva, até quando fará de conta que não somos um país multiétnico? Até quando negará que a maioria negro-mestiça veja pessoas com sua cara, sua cor, com a diversidade de suas culturas regionais, ocupando também o espaço e os papéis nobres na telinha nacional? Até quando a possibilidade da TV segmentada, a ampliação de canais (permitidos pela TV a Cabo e as ondas UHF), serão exclusivas e voltadas para o deleite da classe média alta em ter canais específicos de filmes, esportes e notícia, ou para atender a atualização com os valores culturais de suas regiões de origem, com a apresentação de programas da Itália, Japão, Israel etc?
O desafio que se apresenta quando compreendemos este país como pluriracial, composto por distintas etnias e culturas, é buscar compreender e saber se opor a uma televisão que é tão moderna, em que múltiplas linguagens (do cinema, do rádio, das artes plásticas, do teatro etc.) interagem na produção de suas mensagens (Lucia Santaella, Cultura das Mídias), mas que atualiza e continua gerando códigos, signos e representações tão antigas e preconceituosas contra a etnia negra.
Por outro lado, esta reflexão não isenta o PT. Não podemos negar que os negros são bem recebidos na mídia como povo pobre e sofrido nas campanhas eleitorais. E até mesmo consigam ser contratados como apresentadores de TV. O exemplo mineiro, na última campanha para prefeito de Belo Horizonte, serve de ilustração e de reflexão para o partido. Foi curioso observar que somente os dois partidos conservadores, o PMDB e o PFL, tenham escolhido profissionais negros para apresentar os seus programas de TV, um ator ex-comunista que arrependido desfiava diariamente um rosário contra os perigos petistas e cantava as maravilhas do neoliberalismo, e uma jornalista linda e extremamente competente que dava toda graça ao programa do PMDB, buscando criar identidade entre o candidato peemedebista com a maioria afro-brasileira que habita a periferia da capital mineira.
Quando comentei este fato para os amigos da direção do PT local e perguntei por que o programa do partido não buscava refletir a cara da cidade, a única reação que vi foram olhos atônitos. O fenômeno eleitoral Benedita da Silva por aí é um capítulo especial que merece estudos e uma escuta atenta sobre o que ela tem para relatar sobre as pressões que recebeu durante a campanha.
“Os fatos não deixam de existir só porque são ignorados” (Tomas Huxley). A resistência negra frente a um século da ideologia do branqueamento, a combatividade política dos seus líderes atuais, ou a vitalidade musical dos seus filhos, demonstram um poder que não tardará a se confrontar com este pretenso espelho audiovisual da realidade nacional.
Joel Zito Araújo é videomaker e mestre em Sociologia da Educação.
Notas
[1] Preferimos este termo, afro-brasileiros, para os descendentes da África Negra, classificada pelos censos do IBGE como pretos e pardos, e que no levantamento nacional desta instituição em 1980, constituíam-se em 45% da população brasileira.
[2] Machado, Ana Rosa Tealdo, Paloma Valdeavellano, Lúcia Santaella.
[3] IBeac, “A imagem dos negros nos meios de comunicação”, mimeo, 1986.
[4] Conforme Nelson Hoineff, em TV em expansão, Record, 1991.
Fonte: Teoria e Debate, nº 23, 01 de fevereiro de 1994. Acervo: CSBH/FPA.
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