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Posse da Ilha de Vera Cruz pela Coroa Portuguesa (1500); estreia da ópera “As Bodas de Fígaro”, de Mozart, na Áustria (1786); morte de Ayrton Senna (1994); ampliação da União Europeia, com 10 novos países (2004) e beatificação de João Paulo II (2011). São muitos os acontecimentos relevantes no dia 1° de maio ao longo da história da humanidade. Mas tem um que muita gente reconhece a existência, mas não sabe exatamente o motivo: o Dia do Trabalho.
Em um momento em que tantos trabalhadores estãoem suas casas, realizando suas atividades remotamente, em um esforço conjunto para tentarmos combater a pandemia do coronavírus, o Dia do Trabalho se aproxima.
Apesar de muita gente estar em casa, diversos outros trabalhadores não param. Profissionais das áreas da saúde, da segurança, da limpeza, do transporte, da distribuição, da alimentação, da comunicação. E que ajudam, dessa forma, a continuidade de nossas vidas, de quem não está na rua, mas, sim, dentro de casa.
Anualmente, em 1º de maio, em diversos lugares do mundo, milhares de trabalhadores, dos mais diversos setores, reúnem-se para eventos e festividades, em comemoração a um dos principais elementos que transforma e une a sociedade: o trabalho. A data, feriado nacional no Brasil, neste ano será celebrada com um certo distanciamento, trazendo também um questionamento sobre nossa força de trabalho, nossas conquistas ao longo do tempo, nossas relações com as pessoas e com as coisas. Sobre a nossa vida de uma forma geral.
1º de maio no Brasil1º de maio no Canadá1º de maio na França1º de maio na Itália1º de maio em Portugal1º de maio na Índia
Não vivemos normalmente, já que a normalidade deixou de existir desde a metade do mês de março – pelo menos aqui em São Paulo. Mas seguimos, nos adaptando às mudanças que um vírus trouxe às nossas vidas. Mudanças que são refletidas também nas relações de trabalho.
Com a publicação da Medida Provisória n° 927/2020, diversas formalidades legais foram renunciadas para que empregados e empregadores possam enfrentar os efeitos da paralisação das atividades empresariais, em uma ação rápida do governo para tentar mitigar as consequências econômicas. Uma for ma também de retirar alguns dos direitos dos trabalhadores. E aqui abro um parênteses para dizer que não faço juízo de valor, não questiono a necessidade da medida, não defendo qualquer posição. Apenas constato o fato de que direitos de trabalhadores foram retirados nesse momento tão sui generis da vida. Nada mais. Direitos conquistadosao longo de diversos anos, com muita luta e persistência. E os quais, em tese, celebramos no Dia do Trabalho.
Em qualquer ano, seria impossível não acompanhar pela televisão, em um noticiário, as comemorações ao Dia do Trabalho país afora. Não sabemos o que acontecerá. Mas é possível garantir que neste ano de 2020, em meio à pandemia do coronavírus, as coisas serão um pouco diferentes. E já que não existirão tantas celebrações, a data nos permite rever os acontecimentos, entender suas origens e compreender o sentido da existência de uma comemoração que tem caráter mundial. O Centro de Memória aproveita a oportunidade para contar um pouco dessa história.
As origens do Dia do Trabalho
Apesar de ter sido instituído em 1889, na França, o Dia do Trabalho remete a uma série de eventos que aconteceram três anos antes e começaram em 1° de maio de 1886, nos Estados Unidos, quando diversos trabalhadores foram às ruas para protestar contra jornadas diárias exaustivas e péssimas condições de trabalho. O dia do início das manifestações não tinha sido escolhido à toa, porém. A data, por diversas vezes, tinha sido referência para movimentos de trabalhadores ao longo o século XIX, nos Estados Unidos. Para chegarmos a 1886, precisamos voltar um pouco no tempo.
A cidade de Chicago e as consequências da Guerra Civil Americana
Entre 1861 e 1865, os Estados Unidos viveram o seu mais importante conflito interno: a Guerra Civil (ou Guerra de Secessão), que colocou os estados do norte (União) e do sul (Confederados) em polos opostos. Como grande ponto de controvérsia estava a escravidão. Depois de anos de batalhas, mais de 600 mil mortos e a abolição da escravidão em todo o país, com a promulgação da 13ª Emenda Constitucional, os Estados Unidos se recuperavam.
O presidente à época era Abraham Lincoln, nascido no estado do Kentucky, mas com forte ligação com o estado de Illinois. De origem humilde, Lincoln sonhava com um país livre e igualitário, tal qual os Estados Unidos tinham sido concebidos quando de sua independência, com um governo do povo, feito pelo povo e para o povo, como disse em seu famoso discurso em um cemitério militar de Gettysburg, na Pensilvânia, em 1863, logo após a batalha no mesmo local, vencida pela União.
O presidente norte-americano Abraham Lincoln ao lado de membros do exército da União, durante a Guerra Civil Americana.
” (…) que todos nós aqui presentes determinemos solenemente que esses mortos não morreram em vão — que esta nação, sob a proteção de Deus, renascerá para a liberdade — e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não desaparecerá da face da terra”. (Versão em português do discurso de ABRAHAM LINCOLN, em 1863 – presente no livro “Abraham Lincoln – um legado de liberdade”. )
A Guerra Civil teve um grande impacto na cidade de Chicago, que deu enorme apoio ao conflito, inclusive com a produção de suprimentos para as tropas que lutavam contra os separatistas do sul, além de ser sede do maior campo de prisioneiros da guerra, o Camp Douglas, local que abrigava, em 1864, cerca de 8 mil soldados confederados.
Foto de prisioneiros confederados em Camp Douglas, durante a Guerra Civil Americana.
A cidade, que já tinha, antes mesmo do início da guerra, um bom sistema de transporte, passou de um mero centro comercial para uma potência industrial, atuando como um importante ponto de conexão no sistema ferroviário nacional, além de se tornar sede do porto mais movimentado do país.
Ano após ano, grandes indústrias instalaram-se em Chicago, o que, ao lado do eficiente sistema de transporte de que dispunha, fez com que a cidade se tornasse um grande polo econômico no centro-oeste americano.
Trem em Chicago, no fim do século XIX.
Assim, Chicago, que já tinha começado a atrair americanos dos mais diversos cantos do país, passou a receber também milhares de imigrantes, em especial ingleses, irlandeses e alemães, que chegavam com a esperança de reconstruírem suas vidas, ganharem dinheiro e ascenderem socialmente. A chegada dos imigrantes foi favorecida ainda por uma lei, publicada em 1864, que incentivava a contratação de estrangeiros.
Imigrantes irlandeses chegam aos Estados Unidos, no século XIX.
A população local rapidamente cresceu. Para se ter uma ideia, em 1850 a cidade tinha um total de pouco mais de 29 mil habitantes. Em 1860, eram 112 mil. Em 1870, 298 mil. Em 1880, 503 mil. Em 1890, a população de Chicago já ultrapassava 1 milhão e 100 mil habitantes.
A cidade, porém, não conseguia dar emprego a todos eles. Começou a crescer a quantidade de imigrantes desempregadose sem-teto, vivendo na fome e na miséria.
Rapidamente os contrastes sociais começaram a ser percebidos. Mansões de capitalistas industriais eram encontradas pouco distantes de núcleos pobres e superpopulosos, onde habitavam trabalhadores. Pobreza e riqueza estavam lado a lado. Não demorou muito para que as tensões também começassem a aparecer.
Paralelamente, naquele mesmo ano de 1864, foi criada a International Workingmen’s Association, IWA (Associação Internacional dos Trabalhadores), em Londres.
A Primeira Internacional, ocorrida em 1864.
Conhecida como Primeira Internacional Socialista, a associação contava com um conselho-geral do qual Karl Marx fazia parte, e conclamava os trabalhadores a tomar o poder. Para a Primeira Internacional, o passo inicial para a emancipação operária seria a redução da jornada de trabalho.
Karl Marx e Friedrich EngelsMarx e Engels na gráfica do jornal Die Neue Rheinische Zeitung (A Nova Gazeta Renana).
Reunindo representantes de diversos países do mundo, além de filosofias das mais variadas, como socialistas, comunistas, anarquistas e sindicalistas, foi a associação que emprestou seus princípios à Comuna de Paris, primeiro governo operário da história, que durou entre março e maio de 1871, na França.
Tomada do poder pela classe operária, em 26 de março de 1871, que marcou o início da Comuna de Paris. A experiência inédita de um governo de trabalhadores duraria até maio de 1871, quando seria definitivamente derrotada.
Naquele momento, a vida operária não era fácil. Os trabalhadores eram submetidos a longas jornadas, de 10, 12, 14 horas diárias, seis dias na semana, e ainda em péssimas condições. Trabalhavam de igual maneira homens, mulheres e crianças. Os dois últimos ganhando ainda menos.
Crianças trabalhadoras no fim do século XIX.
Não é difícil imaginar que o aumento da quantidade de imigrantes nos Estados Unidos, e em especial em Chicago, teve como reflexo também a chegada de novas ideias, provenientes de diversos cantos do mundo. Não demorou para os ideais propostas na Primeira Internacional chegassem a Chicago. A cidade tornou-se aos poucos o centro do movimento operário norte-americano.
O início da organização operária nos Estados Unidos
Até o início da Guerra Civil, o movimento sindical era muito pequeno nos Estados Unidos. Quase não existiam organizações de caráter nacional. A maior parte dos trabalhadores estava organizada localmente. Eram artesãos que sonhavam crescer e ter suas próprias lojas e seus próprios funcionários. Usavam um discurso mais radical para denunciar capitalistas e banqueiros. Criticavam o monopólio. Suas lutas não envolviam mulheres, crianças ou imigrantes. As greves eram pacíficas e geralmente giravam em torno de movimentos contra reduções salariais.
Uma causa, no entanto, conseguiu unificar trabalhadores de diversos setores: a luta pela jornada de dez horas. Não durou muito, porém.
Iniciada em 1835 por carpinteiros que trabalhavam por jornada e mulheres de fábricas têxteis, o movimento ganhou a adesão de centenas de trabalhadores em lojas e fábricas do norte dos Estados Unidos. Políticos da classe média tentaram levar a causa para o Legislativo, mas não houve qualquer avanço. O debate deixou de existir na década de 1850.
Com o início da Guerra Civil, em 1861, e a ida de artesãos e mecânicos para as Forças Armadas, os poucos sindicatos existentes desapareceram. Ao fim da guerra, quase metade do exército era formado por trabalhadores assalariados. Os poucos que restaram trabalhando, em especial fornecendo insumos para a guerra, laboravam ainda mais do que o usual: a jornada era longa, a quantidade de trabalho era maior (afinal, não tinham tantos trabalhadores) e o custo de vida aumentava – o salário, não.
Em 1863, o americano William Sylvis, que trabalhava com fundição, tornou-se presidente do Iron Molders’ International Union. Ele conhecia a situação dos trabalhadores assalariados de seu setor e estava determinado a levar o sindicato de volta às fundições, ainda que tivesse que fazer isso sozinho.
Naquele ano, Sylvis visitou 100 fundições, discursando em cada uma delas, conseguindo novas adesões e organizando associações locais. Foi assim que ele transformou seu sindicato no mais poderoso do país, criando a primeira organização com uma administração nacional, com sistema de recolhimento de receita e até mesmo um fundo de greve.
Sua categoria era tão forte e unida que praticamente todos os proprietários de fundições dos Estados Unidos tinham acordado contratar apenas trabalhadores sindicalizados. Em Chicago, trabalhadores sindicalizados da principal fábrica da cidade, a McCormick’s Reaper Factory, haviam feito greve por quatro vezes entre 1863 e 1864, pleiteando aumentos salariais. Obtiveram sucesso em cada uma delas. Os trabalhadores das fundições estavam bem organizados e começavam a ser percebidos.
Na tentativa de combater os sindicatos e resistir a suas demandas, ainda durante a Guerra Civil, industriais começaram a se unir. Fizeram uso, inclusive, do pagamento de policiais para o combate aos sindicatos. Como resultado, tralhadores sindicalizados eram demitidos e fichados. Muitos eram contratados com uma cláusula que exigia a não sindicalização. O futuro dos trabalhadores era incerto e não parecia haver uma rápida solução.
McCormick’s Reaper Factory, a maior fábrica de Chicago, em 1867.
O enterro de Abraham Lincoln e do sonho de igualdade e liberdade entre os trabalhadores
Segundo o historiador James Green (1944-2016), autor do livro “Death in the Haymarket“, a situação dos trabalhadores começou a mudar em Chicago a partir do ano de 1865, logo após o funeral do presidente Abraham Lincoln, assassinado no mês de abril. Lincoln, que havia sido deputado pelo estado de Illinois, era adorado pela população local.
De origem humilde, com apenas um ano de educação formal, mas com uma oratória invejável, Lincoln tinha sido um trabalhador. Determinado, aprendeu gramática, matemática, topografa e legislação sozinho. Tornou-se advogado aos 27 anos de idade, enveredou-se para a política e “venceu na vida”. Em 1860, tornou-se o 16º presidente dos Estados Unidos.
Como chefe da nação, liderou o país na mais grave crise pela qual passaria, salvando-o da dissolução. Com o fim da Guerra Civil, em 1865, o fim da escravidão também chegou. Lincoln acreditava na liberdade e na igualdade dos homens. E no trabalho livre.
Hoje em dia é adorado pelos americanos. De acordo com o jornalista Andrew Ferguson, há mais de 14 mil livros escritos sobre Abraham Lincoln – o próprio Ferguson é autor de um deles: “Terras de Lincoln: aventuras no país de Abe”. O encantamento é tão grande que existe até uma associação de seus personificadores. Em seus tempos de presidente, porém, as coisas não eram bem assim. Lincoln era odiado por muitos, em especial pelos escravistas dos estados do sul (Confederados). Foi um deles o responsável pelo tiro fatal: em 14 de abril, uma Sexta-feira Santa, Lincoln foi alvejado na cabeça. Fazia apenas cinco dias que os confederados tinham se rendido, marcando o fim da Guerra Civil.
Ilustração mostra o momento do assassinato do presidente norte-americano Abraham Lincoln.
O presidente estava na plateia do Teatro Ford, em Washington. O autor do disparo foi John Wilkes Booth, um ator sulista, inconformado com a derrota na Guerra Civil e com a abolição da escravidão. Lincoln faleceu na manhã seguinte, em 15 de abril. O país entrou em luto. Seu caixão foi levado de trem de Washington a Springfield, cidade na qual havia residido nos 17 anos anteriores à sua eleição presidencial. Parou, porém, em diversas cidades pelo caminho, onde milhares de cidadãos prestaram homenagens ao presidente libertador, ao mártir da pátria.
No dia 1º de maio, o corpo do presidente assassinado chegou a Chicago. Segundo Joseph Medill, amigo e aliado de Lincoln, e também editor do jornal Chicago Tribune, aquele foi o 1º de maio mais sombrio que Chicago já tinha visto – em oposição à data costumeiramente alegre, celebrada por marcar a aproximação da primavera. Foi assim que ele próprio descreveu aquele dia em seu jornal.
À esquerda: fotografia de um dos eventos do funeral do presidente Abraham Lincoln. À direita: ilustração do funeral.
Milhares de pessoas, das mais diferentes classes, origens e religiões, acompanharam o funeral em Chicago. No dia seguinte, o corpo de Lincoln foi trasladado para Springfield, onde seria enterrado.
Os anos que seguiram à morte do presidente Lincoln trouxeram diversos questionamentos para parte da população. Os escravos libertos questionavam sua própria liberdade, já que a cor de suas peles havia se tornado um grande problema na “sociedade branca”. Paralelamente, trabalhadores, que tinham sido beneficiados pelo sistema de trabalho livre que Lincoln preconizava, também começavam a questionar a natureza dessa liberdade. Continuavam trabalhando longas horas, à margem da sociedade, sem vislumbrarem melhoras. Eram também escravos, de certa forma.
Em 1865, pouco antes do fim da guerra, William Sylvis, que já havia se tornado, naquele momento, o mais influente líder sindical do país, em visita à cidade de Chicago, denunciou o uso da verba emergencial paga pelo governo às indústrias para aumentar seus lucros e continuar pagando baixos salários a seus funcionários.
Centenas de trabalhadores protestaram e entraram em greve. Chamados de traidores pelos políticos, foram acompanhados por soldados de volta ao trabalho. Muitos dos sindicalizados foram demitidos, vários deles foram listados pelos chefes, como uma forma de retaliação. Protestar havia se tornado um delito. Para Sylvis, os direitos republicanos dos trabalhadores estavam sendo violados. Como poderia Lincoln, que tinha sido eleito também graças aos votos dos trabalhadores, permitir isso?
Para o líder sindical, o tripé que sustentava a vida dos trabalhadores assalariados, longas jornadas de trabalho, baixos salários e poucos direitos, precisava ser derrubado. Segundo Sylvis, apenas com a união dos trabalhadores seria possível obter independência e competência individual para então poderem ascender e alcançar a liberdade.
O sindicato que ele próprio representava era um grande exemplo disso. E mostrava o quanto era necessária a união nacional dos trabalhadores – para obtenção de direitos e combate aos empregadores. Mas os trabalhadores pareciam não acreditar mais nessa possibilidade.
A realidade é que existiam, naquele momento, duas classes antagônicas: trabalhadores assalariados e empregadores. E o primeiro passo a ser dado para evitar a colisão desses mundos e começar a buscar a emancipação social da classe trabalhadora era conseguir uma jornada de trabalho mais humana.
O início das mobilizações
O ano de 1867 foi marcado por um dos primeiros grandes movimentos pela jornada de trabalho de oito horas. Os sindicatos voltavam a se organizar, o movimento dos trabalhadores renascia. Com ele, uma grande pressão no Legislativo de Illinois, tanto em relação aos republicanos quanto em relação aos democratas, foi feita para conseguir que as oito horas se tornassem lei.
Foi assim que, em 2 de março de 1867, Illinois tornou-se o primeiro estado a assinar uma lei definindo a jornada de trabalho em oito horas diárias. A lei deveria vigorar a partir do dia 1º de maio daquele ano.
A ideia central era que, trabalhando menos horas, os trabalhadores teriam mais tempo para descanso, poderiam consumir mais e assim poder ganhar melhores salários. Os empregadores não pensavam dessa forma: 70 deles se uniram para resistir à nova lei.
Oito horas para o trabalho, oito horas para descanso e oito horas para fazer o que quiser.
Na tentativa de forçar seus patrões a cumprirem a lei, os trabalhadores organizaram uma greve em 1º de maio de 1867, que praticamente parou a economia da cidade de Chicago por uma semana. O movimento foi violentamente reprimido. Ao fim da greve, a lei também caiu como que no esquecimento. Era o começo de uma relação nada amigável entre trabalhadores e empregadores – e a polícia.
Em 1869, o mais obstinado defensor dos direitos dos trabalhadores, William Sylvis, faleceu de câncer no estômago. As ideias de uma jornada de oito horas que traria independência aos trabalhadores assalariados e a criação de um grande movimento de trabalhadores que unisse a classe operária foram seu legado.
O aumento das desigualdades
A situação dos trabalhadores, que já era ruim, começou a piorar na década de 1870.
Em 1871, um grande incêndio atingiu a cidade de Chicago, deixando milhares de pessoas sem casa – a maior parte trabalhadores, moradores de casas de baixo custo, feitas em madeira de pinho, que rapidamente viraram cinzas. Ao todo, 17.450 edifícios foram destruídos.
A cidade especulava a respeito das causas daquele incêndio. E não demorou para que fossem encontrados possíveis culpados: cidadãos pobres, trabalhadores, imigrantes, comunistas.
Ilustração do grande incêndio de Chicago, em 1871.First National Bank, em Chicago: antes (esquerda) e após (direita) o incêndio de 1871. Foto: Chicago History Museum
A população sem recursos aumentava. A fome e a pobreza dominava grande parte da cidade. Faltava emprego.
Dois anos depois, uma grande depressão ampliou a quantidade de desempregados. Vinte bancos faliram.
Em dezembro de 1873, cinco mil trabalhadores uniram-se para pedir emprego para o governo da cidade. Na reunião seguinte já eram 20 mil. Eram imigrantes de diversas origens, unidos pela vontade de trabalhar, pela necessidade de alimentar suas famílias. Nas reuniões, falavam em inglês, alemão, francês… Eles queriam exercer seu direito de trabalhar, uma “nova e perigosa ideia socialista”, segundo o jornal Tribune.
Os empregadores de Chicago não se curvariam a isso. E foi assim que começaram a criar suas próprias milícias para combater os trabalhadores socialistas.
A combinação de todos esses fatores explica o clima de tensão na cidade. E também de como foi fácil a aceitação de um movimento mais radical de trabalhadores que pregasse ações mais diretas, como armar-se e ir à guerra contra os capitalistas para conseguir seus direitos – e alcançar a realização de seus sonhos.
O surgimento de ideias mais radicais
Apesar do incêndio e de todas as consequências econômicas devido à depressão, Chicago não parava de receber novos moradores. Foi assim que o casal Albert e Lucy Parsons chegou à cidade.
Nascido no estado do Alabama, Parsons ficou órfão de pai e mãe quando ainda era menino, tendo sido criado por uma escrava até a adolescência. Durante a Guerra Civil, alistou-se e lutou pelos Confederados. Paradoxalmente com o fim da guerra, mudou-se para o Texas, onde seria um árduo defensor dos direitos dos ex-escravos. Chegou a criar um jornal com o objetivo de advogar pelos direitos políticos dos negros – dizia que era em razão do amor e do respeito que tinha por quem o havia criado. Perseguido até pela Ku Klux Klan, teve que fechar o jornal e fugir.
Albert e Lucy Parsons.
Em 1869, conheceu Lucy González, que viria a ser sua grande companheira – de vida e de luta – e mãe de seus dois filhos. Nascida no estado do Texas, em 1853 (ou da Virgínia, em 1851 – de acordo com a certidão de nascimento de seus filhos), dizia ser filha de mãe mexicana e pai indígena. Suas origens, no entanto, são questionadas por historiadores e biógrafos, que atribuem a ela uma ascendência africana: teria, na verdade, sido filha de uma escrava.
Albert e Lucy casaram-se em 1872 (ou 1871, segundo algumas fontes), em uma época em que eram proibidos os casamentos inter-raciais no Texas (talvez o motivo para sua dita origem mexicana).
Em 1873, mudaram-se para Chicago, a cidade que havia ressurgido das cinzas, onde arranjou emprego em um jornal, como gráfico. Foi nesse momento que entrou em contato com a luta pelos direitos dos trabalhadores. E com os milhares de estrangeiros residentes em Chicago.
Imigrantes alemães chegam aos Estados Unidos no fim do século XIX.
Na década de 1880, Chicago recebeu cerca de 250 mil imigrantes. Desses, 163 mil eram alemães. Um deles era August Spies, que chegou aos Estados Unidos em 1872. Spies não entendia como trabalhadores assalariados poderiam tornar-se escravos do trabalho, como não resistiam, como não protestavam por seus direitos.
August Spies, no entanto, ainda não tinha tido contato com as ideias de Karl Marx. Isso aconteceria em solo americano, mais especificamente em Chicago.
August Spies: vindo da Alemanha, chegou aos Estados Unidos em 1872.
Naquela década de 1870, o desespero tomava conta dos trabalhadores: falta de emprego, baixos salários, consecutivas reduções salariais, longas jornadas, fome, miséria, falta de oportunidade. Eram muitos os problemas. Quando tentavam protestar, eram fortemente reprimidos e obrigados a retornar a seus empregos. Muitas vezes ganhando menos do que ganhavam antes do início da greve. Ou eram fichados, passando a fazer parte de uma terrível lista, nada justa – e sendo substituídos por trabalhadores não sindicalizados.
As ideias socialistas que rondavam a cidade pareciam ser a solução para os problemas dos trabalhadores. O Partido dos Trabalhadores (Workingmen’s Party, que mais tarde viraria o Socialist Labor Party – Partido Socialista Trabalhista) parecia um sonho: liberdade e oportunidade para os trabalhadores, que seriam recompensados de acordo com o tempo e a energia dispensados em seu trabalho. Foi nesse contexto que August Spies e Albert Parsons entraram em contato com os socialistas. E, em 1877, se conheceram.
Manifestação de trabalhadores no fim do século XIX.
No ano de 1881, foi a vez de August Spies, que agora comandava o jornal socialista Arbeiter-Zeitung conhecer o americano Oscar Neebe, contratado como seu assistente. Neebe tinha chegado pela primeira vez em Chicago em 1866 e, depois de um tempo, arranjou um emprego como garçom. O local em que trabalhava ficava próximo ao McCormick Reaper’s Factory, e recebia diversos de seus trabalhadores. Foi lá que Neebe ouviu histórias sobre a exploração dos trabalhadores – e também sobre seus pleitos. Entre idas e vindas, Neebe retornou a Chicago em 1877, mesmo ano em que passou a integrar o Socialist Labor Party. Pouco depois já estava envolvido nos movimentos dos trabalhadores.
O jornal Arbeiter-Zeitung, quase falido, em pouco tempo tornou-se um sucesso entre os imigrantes alemães. Spies usava os editoriais como palanque, divulgando a injustiça vivida por milhares de trabalhadores. O editor do jornal em breve seria o alemão Paul Grottakau, famoso socialista que fugiu da Alemanha de Bismarck, em 1878 e chegou a Chicago para inflamar ainda mais seus conterrâneos.
O americano Oscar Neebe: parceiro de August Spies no jornal Arbeiter-Zeitung.
Outro que se juntaria ao jornal é o também alemão Michael Schwab. Schwab começou a trabalhar aos 16 anos, quando ficou órfão. Era aprendiz de encadernador e trabalhava 16 horas por dia. Leitor voraz, não demorou muito para entrar para o movimento sindical. Em 1879 mudou-se para os Estados Unidos, onde percebeu que as condições que tinha visto em seu país (o cenário de fome, miséria e abuso) não eram ali muito diferentes. No Arbeiter-Zeitung era repórter.
O alemão Michael Schwab: inconformismo com a repetição dos cenários de miséria e exploração vividos pelos trabalhadores na Alemanha e nos Estados Unidos.
Ideias e movimentos mais radicais
Assim como os migrantes e imigrantes, as novas ideias continuavam a aparecer em Chicago. Não vinham mais da Primeira Internacional, mas em decorrência dela. Isso porque, em 1876, devido aos diversos conflitos entre seus representantes, a Primeira Internacional foi dissolvida. Novas organizações surgiram daí, colocando em evidência a rivalidade entre marxistas (vermelho) e anarquistas (preto).
Em 1881, em Londres, a dissidência preta fundou a International Working People’s Association (também chamada Black International). Com viés anarquista, queriam o fim da exploração dos trabalhadores. Como teoria central, a estratégia de propaganda pelo ato (propaganda by deed): seriam as ações que divulgariam os princípios da associação. Mas não seriam quaisquer ações: elas deveriam chocar, provocar, inspirar. Bem diferente daquilo que acontecia em Chicago – e a organização Knights of Labor era um exemplo.
Criada em 1869, na Philadelphia, como Noble and Holy Order of the Knights of Labor, era uma sociedade secreta que tinha como objetivo proteger seus membros, buscando melhores condições para os trabalhadores. Pleiteavam jornada de oito horas, igualdade salarial para trabalhadores que desempenhassem as mesmas funções, fim do trabalho infantil, além de reformas políticas. Acima de tudo, estava a ideia de proteção: tanto que o slogan da organização era “an injury to one is the concern of all“, algo como “a lesão a um é uma preocupação de todos”. Além disso, era uma sociedade inclusiva, que aceitava trabalhadores de todas as raças e nacionalidades, fossem qualificados ou não.
A organização cresceu de fato a partir de 1879, quando deixou de ser secreta, já sob a liderança de Terence Powderly, figura extremamente contrária a movimentos grevistas e manifestações de força contra empregadores – mas que também foi de extrema importância para sua ampliação. Na década de 1880, chegou a ter 700 mil filiados. As manifestações, inicialmente, eram organizadas e pacíficas. Impressionavam quem via. Albert Parsons tornou-se membro em 1876.
O símbolo da organização Knights of Labor.
O cenário pacífico começou a mudar a partir de 1882, quando o alemão Johann Most chegou a Chicago. Seu discurso furioso atraía grandes audiências. Ele falava em barricadas, ataques a postos policiais, dinamites… Ele incitava os ouvintes. E conclamava para a ação direta – com o uso de armas e de violência.
Nesse contexto, em 1883, foi fundada a International Working People’s Association, nos Estados Unidos, IWPA , sendo Albert Parsons, e August Spies dois de seus líderes (o manifesto publicado quando de sua formação pode ser lido aqui). A associação anarquista advogava pelo uso da força (ou a ameaça de seu uso) para a obtenção de seus objetivos em prol dos trabalhadores menos favorecidos (sobretudo pela jornada de oito horas). Para eles, a história mostrava que o movimento pacífico era infrutífero. O objetivo da associação era promover uma revolução social e empoderar a classe trabalhadora.
Convite para evento com a presença de Albert Parsons, o grande agitador operário de Chicago.
Em 1884, o jornal Arbeiter-Zeitung tinha tiragem de 20 mil exemplares, sendo lido por praticamente todos os trabalhadores filiados à IWPA – em sua maior parte imigrantes alemães; dentre eles, Adolph Fischer, um de seus mais intelectualizados membros. Fischer aprendera sobre o socialismo com seu pai, ainda criança. Ao longo dos anos, leu ainda mais sobre o assunto. Em Chicago, onde chegou em 1883, tornou-se tipógrafo do Arbeiter-Zeitung.
O alemão Adolph Fischer.
Fischer era um forte defensor da luta armada: acreditava que os grandes proprietários defenderiam seus interesses e suas propriedades com unhas e dentes, por isso, apenas a guerra resolveria. Existiam outros que pensavam como ele: o também alemão George Engel, era um dos grandes líderes desse grupo “ultra militante”. Para Engel, era hora de os trabalhadores se prepararem para uma revolução violenta, que viria em breve. Engel acreditava em uma guerra iminente entre capitalistas e trabalhadores.
O alemão George Engel: um dos mais velhos militantes, defensor da luta armada contra os capitalistas.
Além do Arbeiter-Zeitung, escrito em alemão, a IWPA ainda editava o jornal The Alarm, sob responsabilidade de Albert e Lucy Parsons. Em 1885, os discursos do casal, que eram publicados no jornal, começaram a ser lidos por trabalhadores cuja língua materna era o inglês. Foi assim que o britânico Samuel Fielden chegou à associação. Ele, que desde 1871 estava nos Estados Unidos, seria o mais inflamado divulgador dos ideias anarquistas em Chicago.
O britânico Samuel Fielden.
Um outro fator que contribuiu muito para o cenário de insatisfação da classe operária foi o início da mecanização. Diversas fábricas, para diminuir seus gastos com os trabalhadores, começaram a substituir mão de obra por máquinas, que passaram a ser operadas por pessoas que recebiam valores muito menores, em especial jovens adolescentes. A corrida pelo lucro, que já causava reduções salariais e demissões, agora ganhava um novo elemento.
Incitados a tomar uma atitude, os trabalhadores viam-se conclamados a se unir e a se armar para o combate às forças que cada vez mais reprimiam os movimentos sociais. Frustrados diante da situação, diversos militantes estavam prontos para a ação armada. Um deles era o alemão Louis Lingg.
Lingg viveu uma infância muito pobre e viu em casa, desde muito cedo, a exploração de trabalhadores. Seu pai fora um deles: forçado por seu chefe a retirar um grande carvalho que estava sobre um rio congelado, quase morreu afogado quando o gelo quebrou. Antes mesmo de se recuperar, foi demitido. Lingg começou a trabalhar muito jovem e rapidamente viu-se no meio do movimento sindical. Chegou a Chicago em 1885, aos 21 anos. Alimentava um ódio pela sociedade e por todas as injustiças que aconteciam. Não se importava com o movimento pela jornada de oito horas, mas sim com a possibilidade do uso de explosivos nos movimentos.
O jovem Louis Lingg: infância pobre na Alemanha, raiva da sociedade e dos abusos sofridos pelos trabalhadores.
Preparativos para um dia histórico
Na década de 1880, a agitação dos trabalhadores já era grande em todo o país e em Chicago, em especial. Os trabalhadores voltavam a se organizar. Os sindicatos aumentavam, assim como as associações.
Criada em 1881, a Federation of Organized Trades and Labour Unions of the United States and Canada (FOTLU) surgiu como uma federação para unir trabalhadores descontentes com as associações existentes, como a Knights of Labor. Aos poucos, foi ganhando força e reunindo sindicatos das mais diversas categorias e lugares do país. Mas, ao contrário da inclusiva Knights of Labor, só participavam da nova federação trabalhadores qualificados. Em comum: eles também lutavam pelos direitos de seus trabalhadores. E tinham como objetivo a jornada de oito horas.
Em outubro de 1884, a FOTLU realizou uma convenção na qual ficou decidido que o dia 1º de maio de 1886 marcaria o início da jornada de oito horas. Chegaria finalmente o dia em que as pessoas não viveriam apenas para trabalhar. Músicas começaram a ser escritas e entoadas, em alusão à nova jornada. Aos poucos, também, as demais associações e sindicatos começavam a apoiar a grande data de 1886.
Publicação de 1885 fala sobre as decisões da Federation of Organized Trades and Labour Unions.
Enquanto uns (como Terence Powderly e a Knights of Labor) acreditavam que a nova jornada seria voluntariamente aceita pelos empregadores, outros previam uma massiva oposição. Para eles (e aqui encontram-se Parsons, Spies e Neebe), a vitória viria apenas com uma agressiva greve geral no dia 1º de maio. A própria FOTLU já previa realizar uma grande greve caso a jornada de oito horas não fosse implantada no dia 1º de maio.
O movimento crescia e os trabalhadores afiliavam-se às organizações existentes. Apesar de suas desavenças, todos tinham um objetivo comum: a jornada que tornaria a vida desses trabalhadores mais humana.
Movimento pela jornada de oito horas: trabalhando menos horas, os trabalhadores teriam mais tempo para descanso, poderiam consumir mais e assim poderiam ganhar melhores salários.
Ao longo dos primeiros meses de 1886, diversas empresas começaram a oferecer a seus trabalhadores a tão almejada jornada de oito horas. Algumas, inclusive, atendendo às demandas da IPWA, com manutenção do salário equivalente às dez horas de trabalho. Mas não foram todas. Os trabalhadores começaram a se preparar.
No dia 1º de maio de 1886, as manifestações começaram. Com epicentro na cidade de Chicago, onde reuniu cerca de 30 mil trabalhadores (alguns livros falam em 90 mil), o movimento espalhou-se pelas principais cidades do país, culminando em uma greve geral. Falam em um total entre 300 e 500 mil trabalhadores no país todo. Todos estavam ali unidos pelo mesmo objetivo.
Ilustração das manifestações do dia 1º de maio de 1886.
Dia após dia, os movimentos continuaram. No dia 3 de maio, o confronto foi forte. E dessa vez a polícia estava envolvida. Na noite daquele dia, trabalhadores discutiam sobre a greve em frente à fábrica McCormick’S Reaper Factory (a mesma mencionada anos antes por Sylvis). August Spies discursava. Em determinado momento, as sirenes da fábrica tocaram: era o momento da saída dos trabalhadores que furavam a greve. A revolta tomou conta dos manifestantes, que correram em direção aos portões da McCormick. Foi nesse momento que cerca de 200 policiais chegaram ao local. Eles bateram nos trabalhadores e atiraram nas pessoas ali presentes – elas estavam desarmadas. Alguns militantes morreram no conflito (alguns jornais falavam em cinco trabalhadores. Outros mencionam números maiores).
August Spies, membro da International Working People’s Association, companheiro de Albert Parsons, e editor do jornal radical Arbeiter Zeiting, ficou inconformado com a situação. Retornou para o jornal e imprimiu a convocação para o encontro na praça Haymarket, no dia seguinte, às 19h30, em protesto ao que havia acontecido no dia anterior. Para ele, os trabalhadores não poderiam aguentar mais humilhações. Já aguentavam a fome, as jornadas exaustivas. Sacrificavam suas crianças pela necessidade de se sustentar. Era preciso tomar parte daquilo. Era preciso agir.
O jornal pedia para que os trabalhadores comparecessem armados ao local. Mais tarde, outra versão do panfleto foi impressa. Dessa vez sem a frase que poderia inflamar os operários. Foram, portanto, duas versões do panfleto convocatório. E há também duas versões para essa história. Na primeira, falam que, noite adentro, o prefeito da cidade de Chicago concordou com a manifestação, desde que fosse pacífica, por isso a impressão de uma nova versão do panfleto. Na segunda, Adolph Fischer tinha sido o responsável por colocar a frase que fazia referência às armas. Quando Spies viu o panfleto, ficou furioso. Temia que aquela frase pudesse fazer com que as pessoas tivessem medo e até diminuísse a quantidade de participantes do evento que era convocado. Recusava-se a discursar naquele encontro se aquelas palavras não fossem retiradas do panfleto. E assim aconteceu.
A primeira versão (à esquerda) do flyer, com a convocação dos trabalhadores. A segunda versão (direita) do flyer, mais pacífica.
No dia 4 de maio, os trabalhadores novamente se encontraram para mais uma manifestação. Desta vez, na praça de Haymarket. Discursaram August Spies, Albert Parsons e Samuel Fielden.
Para a polícia, era um momento de apreensão: a sensação era de que a cidade enfrentava um movimento radical de trabalhadores, que ganhava corpo. Ainda havia o temor em relação ao que tinha acontecido na França, com a Comuna de Paris e seu consequente governo operário, pouco mais de uma década antes.
Naquela noite de 4 de maio, eram esperadas 20 mil pessoas. Cerca de 3 mil compareceram (alguns livros falam em 1200), dentre homens, mulheres e crianças. Já ao fim daquele encontro, começava a chover. Muitos já tinham ido embora. Um deles era Albert Parsons, que tinha comparecido com esposa e filhos e já tinha discursado no evento.
O encontro, até então, tinha sido pacífico. O próprio prefeito da cidade de Chicago, Carter Harrison, tinha feito questão de comparecer. Para ele, sua presença seria importante no caso de algum problema surgir. Seria ele o responsável por dispersar a multidão. Mas não tinha sido necessário. Tanto que, antes de ir embora, avisou ao inspetor John Bonfield – personagem de extrema importância na luta dos empresários e da cidade de Chicago contra os movimentos dos trabalhadores, conhecido por seu jeito duro e cruel – que poderiam ficar tranquilos, o movimento era pacífico, não haveria necessidade de intervenção, que poderiam ir embora (segundo o prefeito Harrison, dias depois aos eventos, Bonfield concordou com ele).
Restavam cerca de 500 pessoas, quando Samuel Fielden discursava de forma enérgica e raivosa. Foi nesse momento que 176 policiais, armados, chegaram ao local. Imediatamente, a polícia ordenou que as pessoas se dispersassem. Ao que Fielden retrucou: “Mas é uma manifestação pacífica”. Nova ordem foi dada para que as pessoas se dispersassem. Fielden aceitou. Foi nesse cenário que foi lançada – o que é considerada – a primeira bomba de dinamite na história dos Estados Unidos.
O momento em que a bomba explode, Adolph Fischer discursava. Imagem: Chicago History Museum.
Instaurado o pânico, e na escuridão, policiais atiraram sem rumo, inclusive contra seus próprios colegas. Sete policiais morreram (apenas um, Mathias Degan, em decorrência da bomba). Assim como ao menos três manifestantes, como a imprensa divulgou dias depois. Inúmeras outras aconteceram, segundo contaram os policiais ao superintendente da polícia, naquele mesmo dia, mas jamais foram mencionadas pela imprensa, que manteve aquela contagem de três manifestantes.
Sete policiais morreram em consequência dos eventos. Apenas um deles, Mathias Degan, foi atingido pela bomba. Dezenas de pessoas ficaram feridas. Ilustração de Frank Leslie.
No dia seguinte à revolta de Haymarket, a lei marcial foi implementada em diversas cidades pelos Estados Unidos. Era a oportunidade perfeita para passar uma mensagem àqueles que buscavam melhores condições de trabalho, em especial às alas radicais. A população começou a ficar contrária aos sindicatos. Os jornais começaram a promover o medo, diversas histórias sensacionalistas foram publicadas. A imprensa teve papel de extrema importância na divulgação de histórias – e versões delas.
Jornal de 6 de maio de 1886 fala sobre as consequências do episódio.
A imprensa e os empresários culpavam também o prefeito Carter Harrisson, pelo excesso de liberdade de expressão dado aos trabalhadores, em especial àqueles anarquistas. Harrisson, que estava em seu quarto mandato e até então era um dos mais queridos políticos de Chicago, rejeitava a afirmação. Para ele, a liberdade de expressão era um princípio que jamais poderia ser violado. De qualquer forma, o prefeito proibiu qualquer manifestação ou reunião pública de pessoas (todas eram potencialmente perigosas), além de determinar o fechamento de jornais sindicais, como o Arbeiter-Zeitung.
Ato do prefeito Carter Harrison, do dia 5 de maio de 1886, proíbe a realização de manifestações na cidade de Chicago.
Anarquistas, comunistas, socialistas, juntos, incitariam a violência dentro dos sindicatos. Era preciso proteger a população daqueles radicais que conspiravam. O anarquismo, que antes era visto pela sociedade americana como sinônimo de caos, violência ou desordem, passava a significar qualquer luta por direitos dos trabalhadores – e não seria mais tolerado.
Assim como os anarquistas, os estrangeiros passaram a ser perseguidos, em especial os de origem alemã.
Até mesmo o Knights of Labor tomou partido, mas contrário aos manifestantes: estavam indignados com a situação, com aqueles anarquistas, assassinos covardes, que instigavam estrangeiros ignorantes, causando tumultos e derramamento de sangue.
Enquanto isso, os trabalhadores honestos também eram prejudicados.
As pessoas pediam a morte daqueles agitadores, fossem quem fossem. Uma antipatia pelos anarquistas crescia rapidamente. Mas também por qualquer um que tentasse lutar por seus direitos como trabalhador.
Também como consequência, aqueles que haviam conquistado a jornada de oito horas, voltaram a trabalhar dez. Muitos foram demitidos e substituídos por trabalhadores não sindicalizados. O movimento sindical começava a perder forças. Era arriscado demais tentar qualquer coisa naquele momento.
Enquanto isso, os policiais, até então não muito bem vistos pelos moradores locais, eram transformados em heróis.
Responsável pelo caso, o promotor Jullius Grinnel, precisava agir e começar a identificar envolvidos e culpados. Conhecidos líderes sindicais foram presos, casas foram invadidas. Lucy Parsons foi presa três vezes, na tentativa de obrigá-la a contar o paradeiro de seu marido, Albert, que depois de alguns dias acabou se entregando.
Mesmo sem provas quanto à autoria do lançamento da bomba, oito homens foram indiciados e processados, todos ligados ao movimento sindical: os alemães Adolph Fischer, George Engel, Louis Lingg, Michael Schawab e August Spies, o inglês Samuel Fielden e os norte-americanos Albert Parsons e Oscar Neebe.
Sob a presidência do juiz Joseph E. Gary, o julgamento começou no dia 21 de junho de 1886. As três primeiras semanas serviram apenas para a seleção dos 12 integrantes do júri. Ao todo, 981 potenciais jurados foram questionados. Nenhum era da classe operária.
Os personagens envolvidos no julgamento do evento de Haymarket.
O promotor queria provar que os acusados não só tinham conspirado para atacar a polícia no evento em Haymarket, mas também para criar anarquia, em uma tentativa de derrubar a autoridade do governo. Diversas testemunhas foram ouvidas. Reiteradamente, apenas comprovaram que os acusados tinham, em algum momento da vida, proferido discursos inflamatórios pró-anarquismo ou pró-sindicatos. Nunca encontraram o responsável pelo lançamento da bomba.
A plateia participava entusiasticamente, aplaudindo o promotor em suas alegações e pontuações. Não era reprimida pelo juiz que, contam, cercou-se por mulheres ao longo do julgamento, rindo, comendo doces e desenhando… enquanto era definido o destino de oito trabalhadores.
O julgamento dos acusados de Haymarket.
Durante todo o julgamento, o juiz Joseph Gary funcionava como um maestro para os jurados, orientando, dando instruções e opiniões. Em determinado momento, disse que se o júri acreditasse que, sem sombra de dúvidas, os acusados eram culpados por conspiração ou anarquia, eles poderiam também ser culpados por assassinato. Foi como uma sentença.
Assim, no dia 20 de agosto de 1886, em meio a um julgamento tendencioso e movido a paixão, preconceitos e até um pouco de ódio e medo, estimulados pela imprensa, os oito anarquistas foram condenados. Sete deles foram acusados de conspiração e assassinato e condenados à forca (leia aqui um pouco sobre os oito condenados). Um, porém, Oscar Neebe, foi condenado a 15 anos de prisão.
Imagens dos oito homens condenados pelo Massacre de Haymaket.
Em uma sociedade com pouca paciência para trabalhadores pleiteando seus direitos – muito menos trabalhadores estrangeiros (afinal, seis dos oito condenados eram imigrantes europeus), o resultado era esperado. Já tinha sido até antecipado pela imprensa. A decisão já tinha sido tomada no mesmo dia da ocorrência dos eventos em Haymarket. Já se sabia quem seria culpado pelos acontecimentos. Tanto que não importava se não tinham encontrado quem havia atirado a bomba. Ou se alguns dos sentenciados sequer estavam no local do evento.
Era o caso, por sinal, de Oscar Neebe. Em seu discurso, ao final do julgamento, ele enumerou seus crimes: um revólver encontrado em sua casa, uma bandeira vermelha, um passado de movimento sindical, a defesa pela redução da jornada de trabalho, os direitos ao ensino dos trabalhadores e a reorganização do jornal sindical Arbeiter-Zeitung. Mas nenhuma evidência de qualquer ligação com os acontecimentos, nenhuma evidência de sua presença perto do local do atentado.
“Eu tenho uma família, tenho filhos. E se eles sabem que seu pai está morto, eles irão enterrá-lo. Eles poderão visitar seu túmulo, poderão se ajoelhar ao lado dele. Mas não poderão ir à penitenciária e ver seu pai, que foi sentenciado por um crime com o qual ele não tinha qualquer relação. É apenas isso o que tenho a dizer. Meritíssimo, eu sinto muito por não ser enforcado com os outros homens”.OSCAR NEEBE, em seu julgamento, em tradução livre. Confira aqui a íntegra, em sua versão original em inglês.
Outro que não estava presente era o carpinteiro de 21 anos Louis Lingg, que tinha sido acusado de jogar a bomba naquele 4 de maio. Ele tinha provas, porém, de que estava a quase 1 km do local, no momento da explosão. No entanto, em seu apartamento, foram encontrados materiais para confecção de bombas de dinamite. A polícia afirmou que o material encontrado era similar ao usado no dia do atentado – especialistas ouvidos durante o julgamento disseram que havia alguma semelhança, mas as medidas eram diferentes. Um policial afirmou que o próprio Lingg disse que estava no evento, quando ele afirmava não estar. Durante o julgamento, o juiz chegou a afirmar que o promotor não havia conseguido ligar Lingg à bomba. Mas, ainda assim ele foi condenado por conspiração. A principal testemunha de acusação afirmou, tempos depois, que tanto ele quanto a esposa receberam dinheiro da polícia. Além disso, após o julgamento, foram enviados para a Alemanha, às expensas da polícia de Chicago.
“Eu aceito a concessão (de pronunciar um discurso final, ao término do julgamento), mas com o único propósito de expor a injustiça, as calúnias e os ultrajes que caíram sobre mim. (…) Não é assassinato, apesar de ter sido condenado por isso. O juiz declarou ainda nesta manhã, no relatório do caso, e Grinnel (o promotor do caso) repetidamente afirmou que estávamos sendo julgados não por assassinato, mas por anarquia. É essa minha condenação: sou um anarquista.
“(…) Ele me acusa de conspirador. Mas como prova isso? Simplesmente declarando a Associação Internacional dos Trabalhadores (International Working People’s Association) uma conspiração. Eu fui um membro dessa instituição. Então a acusação acaba caindo como uma luva”.LOUIS LINGG, em seu discurso final, proferido ao término do julgamento. Confira aqui a íntegra em inglês.
Era um julgamento com viés político – talvez o maior da história dos Estados Unidos, segundo o historiador James Green.
Após a sentença, Lucy Parsons viajou pelos Estados Unidos na tentativa de buscar apoio e arrecadar fundos para a defesa dos condenados. Conseguiu não só mostrar as injustiças do julgamento, mas também chamar a atenção para as ideias dos anarquistas. Naquele momento, no entanto, o sindicalismo já tinha se dividido, em grande parte como consequência dos eventos de Haymarket, em conservadores e radicais. Lucy não conseguiu apoio do primeiro grupo.
A história de Haymarket, nas palavras de Lucy Parsons (“The Story of Haymarket”, 1886).
De qualquer forma, chegaram a apelar à Suprema Corte do Estado de Illinois, pedindo um novo julgamento. Um movimento internacional formou-se para tentar salvar a vida dos sentenciados. Mas não teve jeito. Em 14 de setembro de 1887, por decisão unânime, o pedido foi negado.
Nova apelação foi feita à Suprema Corte Americana, mas também sem sucesso: não se tratava de um assunto federal (apesar de críticos apontarem que, durante as prisões e o julgamento, tinha acontecido a violação de direitos constitucionais, como liberdade de expressão e reunião, proteção contra buscas ilegais e devido processo legal). A decisão saiu no dia 2 de novembro de 1887.
Dois deles chegaram a pedir clemência ao governador Richard J. Oglesby e conseguiram a comutação de suas penas (a sentença de morte passou a prisão): Michael Schwab e Samuel Fielden. Os demais nem tentaram. Adolph Fischer, George Engel, August Spies, e Albert Parsons recusaram-se. Afirmavam que não tinham feito nada de errado, não pediriam clemência por um crime que não cometeram. Ia contrário aos pensamentos anarquistas de se submeter ao Estado.
Os cinco anarquistas mortos em 1887. Imagem: John Joergen Kanberg/Library of Congress/Corbis.
Lucy Parsons conta, em um de seus livros, que, em uma última desesperada tentativa, conseguiu permissão do chefe da polícia local para colocar mesas na calçada, no centro da cidade, para angariar assinaturas para um pedido de comutação de pena.
Cidadãos das mais diversas classes sociais assinaram. Mas foi em vão. Ainda de acordo com o relato de Lucy, no dia 8 de novembro, os jornais traziam na manchete: “Bombas encontradas na cadeia”. As reportagens diziam que os condenados do atentado de Haymarket tinham o objetivo de explodir a cadeia e que Lingg, aquele acusado de ter jogado a bomba, acidentalmente, explodiu sua própria cabeça (ele teria agonizado por seis horas, antes de morrer). Imediatamente, as mesas foram retiradas das calçadas. Qualquer pessoa que estivesse com a petição em mãos seria presa. Alguns livros contam que o suicídio de Lingg teria acontecido no dia 10 de novembro, um dia antes, portanto, da execução.
Edição do jornal “Police Gazette” mostra os últimos dias dos condenados.
Em 11 de novembro de 1887, quatro dos sete homens condenados à morte foram executados, nove dias após a decisão da Suprema Corte Americana: Adolph Fischer, George Engel, August Spies e Albert Parsons (cuja carta de despedida a sua esposa, Lucy, também militante e organizadora das manifestações, pode ser lida na íntegra, em inglês). O dia ficou conhecido para anarquistas como Sexta-feira Negra (Black Friday).
Adolph Fischer, George Engel, August Spies e Albert Parsons caminham para a morte.
Naquele 11 de novembro de 1887, pouco antes da execução de seu marido, Lucy e seus dois filhos tentaram visitar Albert na prisão. Alegando que não levava armas ou bombas, pediu para se despedir de seu marido, para que seus filhos pudessem dizer adeus ao pai. A polícia não apenas proibiu, como prendeu os três.
A carta de despedida feita por Albert Parsons a seus filhos.
Lucy contou sua história em diversos artigos e livros, publicados ao longo dos anos, como parte de uma missão pessoal de jamais deixar a história cair no esquecimento, de limpar a imagem de seu marido e, sobretudo, de impedir que a luta e a injustiça cometida contra eles fossem em vão (em contraposição a tantos livros e reportagens publicados, mostrando a vitória da justiça sobre anarquistas perigosos).
Ilustração do dia do enforcamento de quatro dos oito condenados pelo Massacre de Haymarket.
O funeral dos quatro trabalhadores executados pelo governo de Chicago foi acompanhado por um público estimado de 200 mil pessoas. Acusados de assassinato e condenados por conspiração anarquista, buscavam melhores condições para os trabalhadores, pediam liberdade de expressão, liberdade de imprensa. Ficaram conhecidos como os mártires de Haymarket.
Em 1893, o governador recém-eleito John Peter Altgeld, atendendo a um anseio de uma pequena – mas barulhenta – parte da população, que começava a questionar as condições do julgamento, perdoou os homens condenados. Três deles ainda estavam vivos, na cadeia (Michael Schwab, Samuel Fielden e Oscar Neebe). Altgled reconheceu que os acusados não tinham recebido um julgamento justo.
Para o governador, o júri tinha sido parcial, com perfis escolhidos especificamente para aquele julgamento. Um deles era amigo de um dos policiais mortos. Além disso, não havia provas substanciais que evidenciassem a participação dos condenados. Havia mais: testemunhas eram colocadas na cadeia e torturadas caso não concordassem em mentir em seus depoimentos; as que concordavam, recebiam em troca dinheiro e emprego. Uma das principais testemunha de acusação era, de acordo com dez “proeminentes cidadãos de Chicago”, ouvidos posteriormente, um mentiroso inveterado. A polícia ainda tinha fabricado conspirações apenas para “desvendá-las”. E a imprensa cumpria seu papel de incendiar a população com os “novos fatos”.
O governador John Peter Altgeld.
A postura do juiz também não foi deixada de lado pelo governador Altgeld. Segundo ele, a condução foi feita com uma ferocidade maliciosa, permitindo que questões que não tinham qualquer relação com o processo fossem debatidas e ainda, ao longo de todo o julgamento, fez insinuações na frente do júri, manipulando, de certa forma, o que os jurados pensariam sobre o julgamento. Os acusados foram declarados inocentes. Aqueles ainda vivos foram libertos. Cinco deles, porém, tinham morrido por um crime que não tinham cometido. Três haviam passado sete anos de suas vidas pagando o preço de estarem do lado oposto a uma classe rica e poderosa que queria, assim, colocar o povo – e a classe trabalhadora – em seu devido lugar.
A mensagem do perdão foi entregue por E.S. Dreyer, banqueiro que integrou o júri de 1887 e foi o responsável por dar o veredito do caso. Dreyer tinha se tornado um grande defensor da anistia aos condenados.
O governador, que reconheceu a grande falha do sistema judicial naquele caso em uma mensagem de 18 mil palavras, de acordo com o jornal The New York Times (em edição de 4 de maio de 1986, em homenagem ao centenário do evento), e publicado depois por Lucy Parsons, foi bastante criticado, em especial por empresários e pela imprensa conservadora. Contrários a ele, estavam órgãos como New York Times e Chicago Tribune.
Uma caricatura publicada no jornal Chicago Tribune retratou-o como “amigo dos cachorros loucos“. Na imagem, o governador, com um olhar obscuro, cínico, em frente à estátua em homenagem aos policiais mortos no dia 4 de maio (que nada podem fazer), corta (com uma faca, na qual é possível ler a palavra “perdão”) a coleira de três cachorros bravos e perigosos, que rosnam e tentam correr em direção a uma família desprotegida (a mulher é Columbia, a deusa que representa os Estados Unidos). Na coleira, os nomes: Murder (Assassinato), Anarchy (Anarquia), Socialism (Socialismo). A carreira política do governador foi, ali, precocemente encerrada.
Ilustração “The Friend of mad dogs”.
Dez anos após sua morte, Altgeld foi homenageado em Chicago. Em meio ao Lincoln Park, uma estátua foi inaugurada. Nela, Altgeld, com um olhar firme no horizonte, tem a seus pés uma pequena família proletária – a quem protege (uma compilação de reportagens publicadas em 1915 pode ser lida aqui).
Estátua em homenagem ao governador Altgeld, em Chicago.
Até hoje não se sabe quem jogou a bomba. Ou a quantidade de mortos e feridos naquele 3 de maio de 1886.
Os eventos tiveram rapidamente sua importância reconhecida, apesar de hoje em dia não se falar muito sobre isso. Segundo o norte-americano William J. Adelman (1922-2009), pesquisador da história do trabalho e autor do livro “Haymarket Revisited”, “nenhum outro evento influenciou mais a história do trabalho em Illinois, nos Estados Unidos, ou mesmo ao redor do mundo, do que o ocorrido em Haymarket”. Segundo ele, tudo começou com uma manifestação no dia 4 de maio de 1886, “mas as consequências são sentidas até hoje”.
O professor William J. Adelman em foto durante a criação da Illinois Labor History Society (ILHS). Foto: acervo ILHS.
Adelman afirma que, apesar de o evento constar em livros de histórias, poucos apontam sua importância e significado. O pesquisador dedicou sua carreira para contar essa história. Ele foi o fundador da Illinois Labor History Society, com o objetivo de estimular a preservação e a divulgação da história do trabalho no estado de Ilinois e ainda ensina professores sobre a importância do ensino desse tipo de conteúdo em sala de aula.
As consequências dos eventos de maio de 1886
Como tudo na vida, os eventos podem ser interpretados e enxergados de diversas formas. Não foi diferente com o episódio de Haymarket. De um lado, trabalhadores de todo o mundo viram-se representados por um grupo que estava em uma feroz luta por seus direitos. E que não poderiam morrer em vão. De outro, o governo havia vencido a ameaça anarquista e dado um recado à nação. A partir desses dois vieses as consequências começaram a aparecer.
Uma das consequências mais imediatas foi o medo causado pelo movimento anarquista na população (em grande parte “financiado” por imprensa, que teve papel fundamental nessa história, e governo). Isso causou sérios problemas para a organização do movimento sindical. Sindicalistas e anarquistas eram vistos como um único conceito. Aproveitando-se da situação, diversos estados criaram leis tentando dificultar a organização dos trabalhadores. Trabalhadores sindicalizados eram colocados em listas, como se estivessem fichados. Empregadores muitas vezes faziam com que os trabalhadores jurassem não fazer parte de sindicatos ou prometessem a não sindicalização como regra para a contratação.
Mas o movimento operário continuaria. Novas greves aconteceriam. Novos grupos e associações se formariam. Não seria o fim. A luta não seria em vão.
Em 14 de julho 1889, no Congresso Internacional de Paris (a Segunda Internacional), um delegado da Federação Norte-Americana do Trabalho sugeriu que o dia 1° de maio fosse considerado o Dia Internacional dos Trabalhadores, em memória aos mártires de Haymarket e para que aquela injustiça não fosse esquecida. A proposta foi aceita.
Mesmo não sendo algo institucionalizado, diversos trabalhadores ao redor do mundo celebraram pela primeira vez, em 1º de maio de 1890, o Dia do Trabalho. É o caso de operários em Portugal, que ganharam folga dos proprietários de algumas das grandes fábricas do país. A luta pela jornada de oito horas ganhava força pelo mundo. E a Segunda Internacional ajudava a internacionalizá-la.
Lucy Parsons, que com Albert conheceu os movimentos dos trabalhadores, o socialismo e o anarquismo, também continuava a divulgar a história e as injustiças cometidas.
Para o governo de Chicago, porém, os grandes heróis que deveriam ser homenageados, eram os policiais. Assim, no mesmo ano em que foi aprovado o Dia Internacional dos Trabalhadores, em homenagem aos trabalhadores mortos, foi também construída uma estátua em homenagem aos policiais que morreram na revolta, bem no local do acontecimento. Um policial, com a mão para cima, pedindo paz. A “vida” desse monumento não seria fácil, no entanto: vandalismo e reposicionamentos a acompanhariam ao longo do tempo.
Estátua em homenagem aos policiais mortos no massacre de Haymarket.
Foram diversos os acontecimentos, incluindo sete mudanças de local. Em 1927, um motorista, cansado daquele policial com o braço levantado no meio do tráfego, pegou seu carro e dirigiu em direção a ele, destruindo-a em partes. A estátua foi restaurada no ano seguinte e colocada em novo endereço. Em 1957, o monumento foi movido de lugar novamente, para dar espaço à construção de uma rodovia. Em 1968, durante um conflito entre policiais e pessoas contrárias à Guerra do Vietnã, novamente a estátua foi alvo de protestos, tendo sido tingida de preto.
Em 1969, pouco antes dos “Dias de Fúria”, primeira manifestação pública do grupo de extrema esquerda Weather Underground, contrários à Guerra do Vietnã e ao imperialismo do governo norte-americano, a estátua foi destruída em um atentado a bomba, reivindicado pelo grupo. Reconstruída e reinaugurada em maio de 1970, ela foi novamente alvo de ação do grupo Weather Undergroung, em outubro do mesmo ano. Pedaços dela foram encontrados em diversos lugares. Cansado da situação, o prefeito da cidade de Chicago não só a restaurou novamente, como manteve no local um policial para guardá-la, 24 horas por dia.
A estátua seria ainda reposicionada em 1972, depois em 1976 e, finalmente, pela sétima e última vez, em 2007, onde permanece até hoje, mas na parte interna do prédio da polícia de Chicago.
Lucy não deixaria as coisas daquele jeito. Em 1893, então, foi a vez de homenagear o outro lado dos participantes daquela tragédia, com a construção de um monumento em memória às vítimas da revolta de Haymarket, no German Waldheim, cemitério em que foram enterradas, conhecido por sua política de não discriminação, em especial a imigrantes.
Monumento construído em memória dos mártires de Haymarket.
O monumento foi construído pelo escultor Albert Weinert e pago com recursos obtidos por Lucy. Ele traz uma escultura em bronze que representa a justiça colocando uma coroa de louros na cabeça de um trabalhador morto. Nas inscrições, as últimas palavras de Albert Spies:
“Chegará o dia em que nosso silêncio será mais eloquente que as vozes que hoje vocês estrangulam”
(ALBERT SPIES)
O cemitério, hoje chamado Forest Home, transformou-se em um espaço de peregrinação para anarquistas e socialistas.
Em 2004, um novo monumento foi erguido na cidade de Chicago, no exato ponto onde estavam os oradores do movimento do dia 4 de maio. A escultura de autoria Mary Brogger, representa a cena vista pelos trabalhadores que participavam da manifestação, pouco antes da explosão que mudou o curso da história.
No mesmo ano, em Chicago, após muitas discussões, foi inaugurado um parque que leva o nome de Lucy Parsons. Exímia oradora e feroz defensora do movimento revolucionário anarquista, Lucy dedicou-se à causa até sua morte, em 1942, aos 89 anos, em um incêndio acidental. Estava cega e debilitada. Seu marido, George Markstall, tentou, mas não conseguiu salvá-las das chamas. Ele faleceu no dia seguinte. Considerada uma inimiga do Estado, teve sua biblioteca de mais de 1500 livros apreendida após sua morte. Nela estavam também seus escritos. É possível assistir a um curta de animação feito sobre Lucy, lançado em 2016, aqui.
Parque em homenagem a Lucy Parsons, na cidade de Chicago.
A celebração ao redor do mundo
Os eventos de 1886 já mexiam com a história do trabalho no mundo. O Dia Internacional do Trabalhador passou a ser celebrado em diversos lugares do planeta, com uma difusão mais rápida no mundo socialista.
Em 23 de abril de 1919, o Senado francês ratificou a jornada de oito horas e proclamou o dia 1º de maio como feriado nacional, em 1947. Diversos países passaram a tomar a mesma medida.
George Clemenceau (segundo da direita para a esquerda), presidente do Parlamento francês, em foto de abril de 1919, momento da assinatura da lei que definia a jornada de oito horas para os trabalhadores franceses. A lei foi votada no contexto da Conferência da Paz de Paris, que selou o fim da Primeira Guerra Mundial, com o Tratado de Versalhes.
Alguns lugares, porém, tem histórias interessantes em relação esse dia. A Alemanha é um exemplo. Em 1º de maio de 1933, Hitler “permitiu” sua celebração. A data foi denominada Dia Nacional dos Trabalhadores Alemães. No dia seguinte, no entanto, dissolveu todos os sindicatos livres do país. Outro é a Itália: Mussolini considerava o 1º de maio um dia subversivo demais. Por isso trocou a comemoração para a data de aniversário da fundação de Roma, 21 de abril.
Assim como aconteceu em diversas fases da história norte-americana, de propostas aceitas e não participações, a ironia aqui também existe. Apesar de terem sugerido, eles próprios não utilizam o 1° de maio como Dia do Trabalho, mas a primeira segunda-feira de setembro, da forma como havia sido proposto pela Federation of Organized Trades and Labor Unions of the United States and Canada (a mesma que tinha definido o 1º de maio de 1886 como a data de mudança da jornada de trabalho), em 1892 (por sinal, a homenagem ao governador Altgeld, de 1915, foi inaugurada no Labor Day). Desde a Revolução Russa, a data é associada ao comunismo. Em 1958, no contexto da Guerra Fria, o 1º de maio tornou-se o Law Day (Dia da Lei, em uma tradução literal). A jornada de oito horas para os trabalhadores norte-americanos, porém, viria apenas em 1940, após uma emenda ao Fair Labor Standards Act (de 1938, que previa 44 horas semanais).
Em 1954, o Papa Pio XII declarou o 1º de maio data da festa de São José Obreiro, associando o santo às comemorações.
No Brasil, o Dia do Trabalho foi oficializado apenas em 1924, pelo presidente Artur da Silva Bernardes (1922-1926), por meio do Decreto n° 4.859, de 26 de setembro de 1924. Inicialmente, a data era marcada por greves e reivindicações. O tom comemorativo viria apenas mais tarde, com o presidente Getúlio Vargas, que transformou o Dia do Trabalho em uma data de grandes celebrações, inclusive como data de criação da Justiça do Trabalho.
Capa da edição de 2 de maio de 1939 do jornal “Correio Paulistano”.
Mais de um século depois e tantas semelhanças
Apesar de ser um trecho da história norte-americana, a Revolta de Haymarket é também um capítulo muito importante para a história mundial do trabalho – e mostra o quanto nossas trajetórias como cidadãos do mundo estão bastante conectadas.
Meus colegas das ciências sociais, observando o contexto e os acontecimentos, imediatamente apontam os nítidos paralelos de tal enredo com a Revolução de 1930 no Brasil e os discursos anti-sindical e anti-anarquista da época – e o quanto a elite industrial nacional foi, naquele momento, uma cópia da elite industrial norte-americana (não que isso não tenha acontecido depois).
Mas não é só com a década de 1930 que podemos traçar paralelos, enxergar semelhanças. Não é preciso ir muito longe. A história da Revolta de Haymarket é, 134 anos depois, nada além do que uma história atual, com elementos que vemos todos os dias nos noticiários, que observamos nas redes sociais, que enxergamos dentro da nossa Justiça do Trabalho.
Tirada toda a parte ideológica, Haymarket é uma história que fala sobre sonhos, sobre sacrifícios, sobre lutas de trabalhadores por direitos. Fala sobre famílias e a tentativa de sustentá-las, por piores que sejam as circunstâncias. Fala também sobre injustiças e trapaças. Sobre imigração e preconceitos. Fala sobre o uso da mídia para a manipulação de histórias e de pessoas. Não seria tudo isso atual?
Ainda hoje temos trabalho infantil, baixas remunerações, grandes diferenças salariais entre trabalhadores (em especial negros e mulheres). Temos trabalho escravo, ou não teríamos uma data anual para lembrarmos que é preciso combatê-lo. Temos ainda longas jornadas de trabalho. E mesmo para quem não tem, temos horas extras, temos o “bater o ponto e continuar a trabalhar”, temos o trabalho no fim de semana com o cancelamento do descanso semanal remunerado. Temos o “chegar cedo no trabalho depois de encerrar uma jornada quase na madrugada e não bater o ponto porque o chefe pediu – para não descumprir o intervalo inter jornada”. Ainda hoje temos leis que são ignoradas. Empregadores que acham que estão acima de tudo. Empresas que ainda manipulam o governo com seu poder e dinheiro. Trabalhadores mais experientes substituídos por mão de obra mais barata. Temos aqueles que não se queixam na Justiça do Trabalho por terem medo de ficarem “marcados” entre os empregadores (não é o efeito da mesma listinha?).
Foto: S.Moraes / Reuters.
E temos ainda tensão entre classes, polarização. O radicalismo do “eu contra eles”. Se não é dos meus, está contrário a mim – não existe um caminho intermediário, ainda que você não esteja lá nem cá. Intolerância, preconceito (de gênero, de classe, de origem), falta de respeito, de solidariedade, de empatia. O poder, o capital acima das vidas. E o medo.
134 anos depois, a minha (humilde) impressão é de que estamos no mesmo lugar. Em um mundo maior, com mais pessoas, com mais histórias a serem contadas, com mais tecnologia envolvida, com mais experiência, com mais direitos conquistados, mas com uma triste sensação de que a mudança não foi tão grande assim. Talvez seja o efeito do isolamento, mas temos em mãos uma grande oportunidade de repensarmos quem somos, como lidamos com os outros e para onde vamos. E aprendermos com a nossa própria história. Quem sabe podemos sair desse caos em que atualmente vivemos como seres – um pouco mais – humanos.
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