Palestinos são as cobaias humanas dos softwares espiões de Israel
A revelação de que Jair Bolsonaro, durante seu mandato presidencial, utilizou a Agência Brasileira de Informação (ABIN) para espionar opositores, aliados, jornalistas, magistrados e procuradores trouxe a público o uso de ferramentas cibernéticas criadas em Israel para espionagem em escala industrial. Essa tecnologia, que em tese seria desenvolvida para segurança cibernética em favor de sociedade e empresas, em realidade se tornou uma ferramenta de vasculhamento, burlando a privacidade de pessoas e gerando, sobretudo, controle social.
“As ações de contrainteligência, de um modo geral, influenciam a forma como se organizam as medidas no campo informacional e estas tecnologias são decisivas para a prática de operações psicológicas. A geolocalização é uma arma muito efetiva, inclusive via ERBs (equipamentos que fazem a conexão entre os telefones celulares e a companhia telefônica, ou mais precisamente a Central de Comutação e Controle), para determinar a presença de alvos pré-selecionados, com grau de segurança próximo à excelência”, explica Rogério Anitablian, jornalista e analista geopolítico.
Israel, o “vale do silício” da espionagem cibernética
Empresas israelenses, ao longo dos anos, adquiriram expertise no segmento de segurança cibernética, desenvolvendo ferramentas de espionagem. Duas ganharam notoriedade, NSO Group e a Cognyte, que, respectivamente, são proprietárias do Pegasus e do FirstMile, softwares capazes de invadir telefones celulares para realização de rastreamento.
Segundo o BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), um movimento global que pede boicote econômico, cultural e científico contra Israel, com objetivo de acabar com a ocupação da Palestina, os militares de Israel, em parceria com as suas universidades e centros de investigação, desenvolveram não somente uma tecnologia e a metodologia para subjugar e oprimir os palestinos, mas criaram um sistema elaborado que canaliza a sua tecnologia militar e de vigilância em massa, “testada no terreno”, para o lucrativo mercado global da indústria de vigilância.
Para Bruno Beaklini, jornalista, cientista político e professor de relações internacionais, “o Estado sionista tem um complexo industrial militar dedicado à exportação de tecnologia de segurança. Tanto o ministério da Defesa como o de Assuntos Estratégicos operam redes com ex- militares figurando como ‘executivos’ e fornecem equipamentos testados na vigilância sobre a Cisjordânia, Gaza e as vilas árabes nos Territórios de 1948, e assim realizam a sua versão de comércio de longa distância”.
Assim, transformou a sua Unidade de Inteligência Militar 8200, integrante do Corpo de Inteligência
das Forças de Defesa, em uma incubadora de startups. De lá desenvolve e promove especialistas
que já têm enraizadas as ideais de opressão ao povo palestino.
A campanha “Stop the Wall” (https://www.stopthewall.org/digitalwalls/#Israeloffers ), uma iniciativa internacional de apoio à Palestina, produziu um relatório em que afirma que o ambiente tecnológico de Israel, do qual os gigantes da Big Tech e outros colonizadores tecnológicos estão tão interessados em tirar vantagem, é nada mais que uma extensão do regime de apartheid, colonialismo e ocupação de Israel sobre o povo palestino. O relatório deixa claro que a Big Tech integra a tecnologia desenvolvida para manter este regime, obtendo lucros e financiando o desenvolvimento de produtos.
Ainda segundo Beaklini, “como toda economia de base colonial, é impossível retirar o modelo de exploração do território ocupado da própria presença do imperialismo e a marca da invasão de terras alheias. Não se trata mais de um regime de plantation (monocultura de exportação), como o algodão no sul dos EUA, a cana-de-açúcar no Haiti, a prata na Bolívia ou o charque na região do Pampa. O projeto sionista sempre foi militarizado e a area core de seu desenvolvimento econômico está sempre diretamente vinculado à expansão e dominação”.
Palestinos como cobaias
“Uma grande parte da tecnologia e dos novos empreendedores provém diretamente da investigação militar de Israel e é testada no terreno em palestinos. Isto é o que o torna tão único”, afirma categoricamente Aharon Aharon, CEO da Autoridade de Inovação de Israel, a principal agência de fomento para desenvolvimento de plataformas digitais (https://innovationisrael.org.il/en/article/attack-is-the-best-form-of-defense/#).
O Who Profits (https://www.whoprofits.org/), centro de pesquisa independente dedicado a expor o papel do setor privado na economia da ocupação israelense, informa, em um relatório, que em 2020 as empresas cibernéticas israelenses receberam aproximadamente 31% do investimento global no setor. As aquisições de empresas cibernéticas em Israel geraram cerca de 4,7 bilhões de dólares e as exportações cibernéticas israelenses cresceram a 6,85 bilhões de dólares. Israel tornou-se líder no mercado de spyware e vigilância, fornecendo conhecimentos especializados para recolhimento e processamento de dados, incluindo spyware, reconhecimento facial, “ferramentas de rastreio de utilizadores” que são usadas para policiamento, até para possível manipulação eleitoral e muito mais.
NSO – Pegasus
Essa tecnologia é vendida para governos formalmente democráticos, contribuindo para a erosão constante dos direitos civis, e a regimes autoritários, permitindo e agravando os abusos existentes dos direitos humanos, como confirmam as revelações do Projeto Pegasus, uma investigação coletiva apoiada pelo Laboratório de Segurança da Anistia Internacional, que se debruça sobre o software espião Pegasus, que é de propriedade da empresa israelense NSO.
A iniciativa envolve mais de 80 repórteres de 17 organizações de mídia em 10 países, que tiveram acesso a uma lista com 50 mil números de telefone que estavam sendo espionados, dentre os quais números de pessoas em altos cargos de grandes e tradicionais veículos de comunicação, como os franceses Le Monde, France Télévisions, Le Figaro e AFP.
Essas investigações revelam sobre seu uso da tecnologia da NSO por estados repressivos, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos ou Azerbaijão, assim como, também, para atingir advogados, ativistas e jornalistas de direitos humanos que levantam questões sobre Israel.
“A escala da espionagem é essa mesma: dezenas de milhares de pessoas que podem ser influenciadoras do cenário político, formadoras ideológicas, ou essencialmente tomadores de decisão. A meta do estado sionista é fornecer esse tipo de serviço para países amigos, ou, ao menos, para elites dirgentes e instituições que sirvam para classes dominantes com algum grau de amizade com o projeto colonialista”, diz Beaklini.
A ditadura da Arábia Saudita usou o spyware Pegasus para rastrear o jornalista dissidente saudita Jamal Kashoggi, que foi assassinado na embaixada saudita na Turquia, em 2018. Também foi utilizado no rastreamento das famílias dos 43 estudantes do ensino médio de Ayotzinapa, no México, que foram assassinados e desapareceram em 2014, um crime de grande repercussão na sociedade mexicana. Depois foram igualmente alvos do programa espião israelense enquanto lutavam por justiça. O Pegasus também foi utilizado na perseguição de ativistas e advogados no caso Bhima Koregaon, na Índia, como afirma uma repoortagem do site indiano The Wire (https://thewire.in/rights/elgar-parishad-case-surveillance-pegasus).
A investigação sobre o Grupo NSO, o seu spyware Pegasus e os menos conhecidos, como o Circles, revelou a estreita cooperação entre os militares, o estado e as empresas dentro do regime de apartheid de Israel, expondo a porta giratória que o complexo industrial militar israelense criou com o setor privado.
O estado de Israel, através do seu Ministério da Defesa, regula de perto o Grupo NSO, concedendo licenças de exportação individuais. Por sua vez, a NSO está pronta para vender sua tecnologia quando o governo israelense estiver interessado em promover os laços diplomáticos, apoiando regimes repressivos e autoritários no mundo árabe, na África, na Ásia e na América Latina.
“É simplesmente impossível e impensável a exportação de um sistema de vigilância eletrônica e espionagem cibernética sem o aval das autoridades de defesa do Apartheid Sionista. Se já é difícil pensar no comércio exterior sem guia de exportação quando se trata de tâmaras (outro produto roubado pelo invasor dos territórios árabes), é fora de cogitação um ‘contrabando’ de softwares espiões. O alto comando do Ministério da Defesa sabe e as mais altas autoridades em Tel Aviv têm um mecanismo de autorização destas exportações”, conta Bruno Beaklini.
Em 20 de julho de 2021, o The Guardian publicava uma reportagem em que dizia que a comunidade de inteligência dos EUA assumia que Israel tem acesso aos dados recolhidos ilegalmente através do Pegasus.
Em maio de 2021, uma reportagem do portal UOL mostrou que o filho do presidente Jair Bolsonaro, o vereador da cidade do Rio Janeiro Carlos Bolsonaro, tentou intervir em um edital federal para comprar o serviço da Pegasus. Segundo a reportagem, isso gerou insatisfação em militares que integravam o Gabinete de Segurança Institucional e a Abin, que teriam sido deixados de fora das tratativas. Segundo o veículo, dias após a reportagem, a empresa israelense deixou a licitação.
Cognyte-FirtsMile
Em 20 de novembro de 2023, a Agência Pública disponibilizou uma reportagem em que mostrava que governos estaduais do Brasil, principalmente do campo ideologicamente à direita, como os de Goiás, São Paulo, Amazonas e Mato Grosso, a PRF (Polícia Rodoviária Federal), então sob a gestão do bolsonarista Silvinei Vasques, e setores das Forças Armadas também compraram ou renovaram contratos para obtenção de produtos da empresa Cognyte, detentora do software espião FirstMile.
Na mesma reportagem era informado que Caio Cruz seria seu representante comercial no Brasil. Ele é filho do então secretário nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, o general da reserva do Exército Carlos Alberto dos Santos Cruz, que depois integrou o governo Bolsonaro por cinco meses como ministro-chefe da Secretaria de Governo da gestão.
O filho de Santos Cruz cuidou das vendas da filial brasileira da Verint até fevereiro de 2021, quando a empresa desmembrou seu setor de inteligência para uma nova empresa, a Cognyte Software Ltd.
De acordo com seu perfil na rede profissional Linkedin, verificado por esta reportagem, Caio Cruz integrou o grupo Cognyte no Brasil, atuando como gerente de vendas, entre os anos de 2021 e 2023.
Inclusive Bolsonaro, na gravação obtida pela Polícia Federal da reunião realizada em 5/07/22, no Palácio do Planalto, que tramava um golpe de Estado, cujo material foi liberado do segredo de justiça pelo ministro do STF Alexandre Moraes, faz menção aos negócios do filho de Santos Cruz com a Cognyte. “Então, um militar, general (Santos Cruz), tinha interesse lá na compra de armamento de Israel, ao menos o respectivo filho”, dando a entender que havia um lobby de Israel em seu governo.
No exterior há um rastro de abusos ligados a governos que já recorreram a ferramentas de espionagem da companhia. Reportagem do jornal israelense Haaretz revelou que a Cognyte vendeu softwares de localização de alvos em tempo real, via GPS, para o governo de Mianmar um mês antes de um violento golpe de Estado no país. De acordo com a Anistia Internacional, o governo do Sudão do Sul também usou produtos do grupo israelense para perseguir e violar direitos de opositores políticos.
O fato é que o povo palestino, ao longo de todos esses anos de ocupação sionista, foi e segue sendo alvo de experimentos sociais, armamentistas e cibernéticos. Um processo absurdamente colonial que agora usa ferramentas das novas tecnologias, previamente testadas nos palestinos, como mercadorias a serem vendidas com selo excelência de mercado porque “testadas em campo”.