Nesta edição
Brasil: uma estratégia em construção
José Luís Fiori
Lula, o holocausto e a “ordem baseada em regras”
José Luís Fiori


Brasil: uma estratégia em construção

José Luís Fiori

O Estado brasileiro não possui um documento que defina periodicamente sua “estratégia internacional”. Houve uma tentativa, durante o segundo governo Lula, mas o documento foi esquecido após o golpe de Estado de 2016, e mais ainda, durante o governo Bolsonaro, que era partidário de um alinhamento incondicional do Brasil ao lado dos Estados Unidos e de Israel, e chegou a defender, inclusive, o isolamento do país com relação à comunidade internacional. No entanto, esse quadro mudou radicalmente depois da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro de 2023. Mesmo assim, não existe um documento oficial que defina e explique a nova política externa do presidente Lula, apesar de que seja possível mapear seus objetivos, e sua estratégia, a partir de algumas inciativas do governo, e sobretudo, a partir de alguns pronunciamentos cruciais feitos pelo próprio, e de seus principais auxiliares no campo internacional.

Durante o ano de 2023, o presidente Lula fez 15 viagens internacionais e visitou 24 países em 5 continentes, fez grande número de discursos e pronunciamentos, e concedeu dezenas de entrevistas dentro e fora do país, definindo as linhas básicas do seu pensamento e da estratégia de sua política externa. Uma linha de pensamento que veio sendo reforçada por algumas entrevistas complementares, concedidas por Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República para Assunto Internacionais, e pelo próprio ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. Lula fez seus discursos mais importantes na ONU, na reunião do G20 da Índia, na reunião do G7 em Tóquio, na Liga das Nações Árabes, na União dos Estados Africanos, na CELAC, no CORICOM, quando assumiu a presidência do G20, em 2004, e a presidência da COP 30 que se realizará em Belém, em 2026, e também na reunião que teve com os presidentes sul-americanos, em Brasília, convocada pelo próprio Itamarati.

Em todas essas ocasiões, Lula e seus principais assessores internacionais demonstraram ter plena consciência de que o Brasil não é uma potência militar nem pretende sê-lo. É um grande país do ponto de vista do seu território, população e recursos naturais, mas não tem capacidade, nem a intenção, de projetar seu poder ou influência militar fora de suas fronteiras, mesmo no caso da América do Sul. Por outro lado, com relação à questão da segurança militar do país, todos têm plena consciência da relação histórica do Brasil com os Estados Unidos, e do fato de que o Brasil se encontra na “zona de proteção ou tutela nuclear” direta dos Estados Unidos. E é nesse contexto geopolítico e militar que o presidente Lula vem concebendo e construindo seu projeto de transformar o Brasil numa grande potência pacifista, com capacidade de influenciar e forjar ideias e consensos internacionais. É o caso da sua proposta de mobilização mundial contra a fome e a favor da igualdade e da sustentabilidade; junto com a ideia de fazer do Brasil um grande “mediador” e pacificador dos conflitos internacionais que se multiplicam ao redor de todo o mundo.

Lula é um humanista e um pacifista radical, e é um político carismático, mas ao mesmo tempo ele é um político hábil e pragmático. Seu projeto internacional não tem nada a ver com o “terceiro-mundismo” do século XX, nem parece que ele pretenda ser apenas uma liderança da “periferia mundial”, agora apelidada de “Sul Global”. Pelo contrário, todos os pronunciamentos do presidente Lula vêm sendo pautados por uma postura universalista, cosmopolita e igualitária, apesar de que ele tenha plena consciência de que o próprio “cosmopolitismo” ou universalismo é inseparável das hierarquias, das assimetrias e dos conflitos que fazem parte da luta dos países pelo poder e pela riqueza. A estratégia internacional de Lula considera que a “soberania das nações” é um fato, um direito e um objetivo, e propõe que o Brasil se mova entre as nações do norte e do sul, do leste e do oeste, sem fazer distinções ideológicas ou discriminar países em função de seus regimes políticos, afiliações ideológicas ou pertencimentos culturais e religiosos. Lula não esconde sua afinidade com os Estados Unidos de Joe Biden, nem sua proximidade da Rússia de Putin, da China de Xi Jinping, da França de Macron, da Turquia de Erdogan, do Irã de Ebrahim Raisi, da Alemanha de Scholz, ou mesmo da Inglaterra de Charles III. Ele não se mostra partidário de nenhum tipo de aliança estratégica fixa, no campo internacional, nem muito menos de blocos ideológicos polarizados. E talvez seja exatamente essa posição sui generis do presidente brasileiro que lhe permite fazer afirmações e críticas duras e realistas, que em geral são evitadas pelos grandes donos do poder mundial, que costumam esconder seu jogo duplo e sua moral contraditória, atrás de uma linguagem aparentemente neutra.

Segundo dados que foram apresentados pela delegação brasileira na última reunião do G20, realizada na cidade do Rio de Janeiro, houve 183 conflitos internacionais no ano de 2023, a grande maioria sem nenhum tipo de arbitragem. Agora mesmo, estamos assistindo a um massacre na Faixa de Gaza, que é condenado pela maioria da Humanidade mas ninguém consegue conter a fúria vingativa do governo de Israel, nem mesmo o governo americano, para que dizer, as Nações Unidas, cujas decisões são desrespeitadas por Israel há décadas. Esta paralisia decisória do sistema mundial é que vem sendo denunciada pelo presidente Lula, ao mesmo tempo em que ele insiste na necessidade urgente de construir um novo sistema de normas, regras e instituições capazes de administrar esses conflitos mundiais, antes que o mundo tome – uma vez mais – o caminho da “guerra mundial”, como forma de impor a primazia dos vitoriosos, dentro do sistema internacional, como aconteceu depois de Hiroshima e Nagasaki. Tudo indica que o presidente Lula tem plena consciência de que o problema do mundo hoje não é a falta de “regras” – as regras existem. É a ausência de instituições que sejam capazes de interpretá-las de forma consensual e que sejam aceitas pela comunidade intenracional. Este papel foi cumprido pelos europeus e norte-americanos nos últimos 300 anos, mas como disse recentemente o chefe da Política Externa da União Europeia, o espanhol Joseph Borrel, “a era do domínio global do Ocidente chegou ao fim”, como chegou ao fim o consenso ou a aceitação do arbítrio das potências ocidentais. Sabendo que a simples substituição da “unipolaridade” pela “multipolaridade” não resolverá automaticamente o problema da guerra e da paz, e o presidente Lula tem chamado atenção para este gigantesco desafio da Humanidade.

Por fim, voltemos ao continente americano, onde o governo Lula deu os primeiros passos de sua política externa na direção tradicional do Mercosul e da América Latina. Onde se propôs construir uma aliança estratégica com a Argentina, que se transformasse num ponto de referência e numa liderança econômica e política para todo o continente. Mas uma vez mais, como já havia acontecido no passado, esse projeto foi abortado por uma mudança política, que neste caso veio da Argentina. Parece que Lula compreendeu, então, que a correlação político-ideológica sul-americana havia mudado e que, além disso, seria impossível fazer o Mercosul avançar com três países governados por presidentes ultraliberais. E que mesmo dentro da esquerda existe uma enorme diferença entre sua visão internacional e a dos presidentes Boric e Petro, estando ele mais próximo de Petro do que do jovem presidente chileno.

Mais do que isto, entretanto, parece que o presidente Lula também já entendeu que o velho sonho da “integração latino-americana” foi sempre uma utopia, muito mais do que um projeto viável. Uma utopia tecnocrática, defendida pelos economistas da CEPAL desde os anos 50, e uma utopia ideológica defendida pelos governos bolivarianos do continente desde o final do século XX. Duas versões de um mesmo sonho que nunca se encaixou com a dura e crua realidade da economia primário-exportadora de quase todos os países sul-americanos, nem tampouco com a natureza descontínua do território e do povoamento litorâneo de todo o continente. Sem falar que essa ideia sempre teve a oposição da grande maioria das elites ultraliberais do continente, e sempre dependeu do fôlego da economia brasileira, que é a única com capacidade de empurrar esse projeto ladeira acima.

Entende-se, portanto, por que o presidente Lula escolheu a cidade de Addis Abeba, na Etiópia, e a reunião plenária da Organização dos Estados Africanos, para fazer um de seus discursos mais veementes de condenação do genocídio palestino, e de defesa da necessidade de uma nova ordem mundial, igual como havia acontecido no dia anterior, na cidade do Cairo, quando suas palavras também foram recebidas com entusiasmo pelos países-membros da Liga dos Países Árabes.


Lula, o holocausto e a “ordem baseada em regras”

José Luís Fiori

A entrevista do presidente brasileiro concedida na cidade de Adis Abeba, na Etiópia, no dia 18 de fevereiro de 2024, quando comparou o comportamento genocida do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu com Adolf Hitler e o genocídio alemão dos judeus, provocou uma pequena crise diplomática e uma grande reação da imprensa conservadora brasileira. A irritação do governo israelense é compreensível, devido à importância internacional do presidente Lula, porque esta comparação já havia sido feita por outros líderes de menor expressão global.

No entanto, fica mais difícil entender a reação em cadeia da imprensa brasileira, que não se deu ao trabalho de ler a entrevista e passou a repetir em conjunto as diatribes das autoridades israelenses, como se fossem órgãos subsidiários da extrema-direita israelense, decididos a provar a existência de uma espécie de hierarquia de genocídios, alguns mais importantes do que outros, dependendo da origem das populações atingidas pela violência assassina dos genocidas. Como se o assassinato coletivo dos judeus pelo Estado alemão tivesse uma superioridade trágica com relação aos 15 milhões de chineses que foram mortos pelos japoneses nos anos 30 e 40, no também chamado “holocausto asiático”; os 20 milhões de russos que foram assassinados pelos alemães entre 1941 e 1945; ou o genocídio de 2 milhões de armênios, pelo Império Otomano, durante a Primeira Guerra Mundial, também chamado de “holocausto armênio”; ou ainda o “genocídio tutsi” durante a Guerra Civil de Ruanda em 1994, entre outras tantas tragédias do século XX.

Mesmo assim, é importante refletir sobre a importância atribuída pelos conservadores às palavras e aos conceitos utilizados pelo presidente brasileiro. Os fatos são conhecidos. No dia 7 de outubro de 2023, um grupo de militantes ou combatentes do Hamas entrou no território israelense, matou cerca de 1.200 israelenses e raptou cerca de outras 280 pessoas. Em seguida, o governo de Israel sitiou o território de Gaza, habitado por cerca de dois milhões e meio de palestinos, bloqueou a entrada de água, comida, energia, medicamentos e comunicações, e começou um bombardeio aéreo e terrestre no território de Gaza que já dura cinco meses, matando, até agora, 30.000 palestinos (80% mulheres e crianças), ferindo e mutilando outros 80 mil e deixando cerca de um milhão e meio de pessoas desabrigadas, com fome e sem atenção médica. Os números e as imagens transmitidas pelos canais de televisão parecem falar por si mesmos, mas no campo da batalha política, as coisas não passam dessa maneira, porque as palavras não são neutras, e toda descrição da realidade envolve juízos de valor e tomadas de posição, políticas, diplomáticas, ou simplesmente ideológicas, como no caso da imprensa conservadora brasileira.

Portanto, neste sentido, não há dúvida de que as palavras utilizadas pelo presidente Lula (a hipótese de haver sido uma “gafe” é absolutamente ridícula) foram escolhidas rigorosamente e continham, sem dúvida, um juízo de valor e uma condenação radical do comportamento assassino do primeiro-ministro de Israel, e do holocausto do povo palestino que vem sendo cometido ao vivo e em cores, em frente aos olhos horrorizados da humanidade. Uma postura ainda mais corajosa quando se sabe que o ataque israelense foi apoiado e incentivado, desde os primeiros minutos, pelas potências ocidentais que se consideram criadoras e administradoras da moral internacional. Mesmo que esses países tenham mudado sua posição oficial, horrorizados com o genocídio diário transmitido pelas televisões, apesar de que sigam incapazes de parar sua própria criatura e sigam fornecendo as armas e os recursos utilizados pelos israelenses para executar a matança dos palestinos.

Uma coisa, entretanto, é o desacordo conceitual dentro desta “guerra de narrativas”; e outra completamente diferente, muito mais séria e complexa, é a impossibilidade de estabelecer regras e definir árbitros capazes de intervir de forma eficiente no caso dos conflitos internacionais contemporâneos. Os Estados Unidos têm insistido na ideia/proposta de uma “ordem internacional baseada em regras”, mas ninguém consegue definir quem julga, arbitra e pune dentro desta ordem. Segundo foi dito na recente reunião do G20 no Rio de Janeiro, em 2023 ocorreram 183 conflitos internacionais, que escaparam em sua quase totalidade ao controle clássico dos europeus e norte-americanos, criadores da “moral internacional” vigente nos últimos 200 ou 300 anos. E é a isto que se está assistindo neste momento, com a máxima força e crueldade, dentro do território palestino da Faixa de Gaza.

Um número cada vez maior de países de todo o mundo clama pelo “cessar-fogo”, e ninguém consegue parar a fúria destrutiva do governo israelense. Antes disso, nas últimas décadas, houve 180 resoluções aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas e 247 resoluções do seu Conselho de Segurança sobre a ocupação ilegal dos territórios palestinos, ou favoráveis à formação do próprio Estado Palestino, que foram rigorosamente desconhecidas e desconsideradas por Israel, sempre com o apoio dos Estados Unidos e da Inglaterra, que foram, afinal, os verdadeiros responsáveis pela criação do Estado de Israel em 1948. E agora de novo, por solicitação das Nações Unidas, a Corte Internacional de Justiça de Haia abriu um processo de julgamento da legalidade ou ilegalidade das ocupações judaicas do território palestino da Cisjordânia. Mais de 50 países e organizações regionais se apresentaram para prestar seu depoimento, entre os dias 19 e 26 de fevereiro, sobre “as políticas e práticas” do Estado de Israel.

A decisão que venha a tomar a Corte Internacional de Justiça não é vinculatória, mas assim mesmo, com exceção dos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra e Fiji, que propuseram que a Corte não se manifestasse sobre o assunto, todos os demais países, de todo o mundo, como também o Brasil, defenderam os direitos palestinos contra a invasão judaica. Mais do que isto, já quase no final dessas audiências, a China simplesmente “virou a mesa”, recolocando os termos do próprio julgamento. Com base nas regras do Direito Internacional estabelecido e reconhecidas pelas potências ocidentais, os chineses defenderam a tese de que o ataque militar do Hamas contra Israel é legítimo, uma vez reconhecido o direito de os povos oprimidos lutarem, mesmo que seja de forma violenta, contra sua dominação externa. E ao mesmo tempo, o representante da China sustentou que nenhum povo tem direito à autodefesa de territórios que tenham sido ocupados militarmente, e que este seria exatamente o caso de Israel na Palestina, e em particular na Cisjordânia e em Gaza. É fundamental sublinhar que os chineses procuram se manter absolutamente fiéis ao Direito Internacional estabelecido e reconhecido pelas potências ocidentais.

Portanto, o problema internacional contemporâneo não está na existência ou não de “regras”, ou de uma “ordem baseada em regras”. O problema está em saber quem interpreta essas regras, e quem julga e arbitra cada conflito internacional em particular. Nos últimos 300 anos, em geral, foram os europeus e seus descendentes que exerceram este papel, apoiados na superioridade de suas “canhoneiras”. Mas como afirmou, recentemente, o chefe da Política Externa da União Europeia, Joseph Borrel, “a era do domínio global do Ocidente chegou ao fim”. Ao mesmo tempo, caducaram as instituições criadas, depois da Segunda Guerra Mundial, para o exercício da “governança global”.

Em 1945, havia cerca de 60 países independentes, e hoje são quase 200 países com assento nas Nações Unidas. Portanto, o sistema interestatal aumentou muito o seu tamanho, e a “ordem internacional” tornou-se mais difícil e complexa de ser gerida. A consciência desse “vácuo de poder”, junto com o sentimento de impotência frente ao holocausto palestino, explica a emergência da proposta brasileira, levada à presidência do G 20, de reorganizar o “governo do mundo” para não precisar passar por uma nova grande “guerra mundial”.

Março de 2024