
Esqueça Steve Bannon, a nova figura chave de Trump é Peter Thiel
Via portal https://jacobin.com.br/
O novo governo americano une bilionários e as big techs à CIA, mas a principal figura intelectual no seu bastidor está passando despercebido na cobertura da imprensa – assim como se ignora o que está realmente em jogo na geopolítica mundial e na nova onda conservadora.
Peter Thiel é um homem chave quando se fala das big techs. Quando todas as atenções se voltavam para Mark Zuckerberg se tornando o único dono do Facebook – e em seguida construindo o império da Meta – pouca gente notou quem articulou isso. Quando Elon Musk batalhava para se tornar o dono do Twitter, quase ninguém prestava atenção em uma sombra nos bastidores. Em ambos os casos, era Thiel, essa enigmática e paradoxal figura.
Durante muito tempo, a ascensão de Donald Trump era creditada à estratégia, e à “mente genial”, de Steve Bannon, mas isso não passou de uma conveniente cortina de fumaça. Com poderes limitados, e uma meteórica passagem pelo primeiro governo Trump, o velho Bannon nunca teve poder – nem dinheiro – para ser a eminência parda de ninguém. No máximo, forneceu algumas ideias que necessitavam de players muito poderosos para funcionar.
Isso é diferente do americano e neozelandês, de origem alemã, Peter Thiel: bilionário, filósofo, fundador do PayPal e dono de inúmeras empresas de tecnologia – algumas delas, como a Palantir, financiada e fornecedora da CIA, a poderosa agência de inteligência americana. Muitas das empresas de Thiel têm nomes que remetem à obra de JRR Tolkien, criador de Senhor dos Aneis e seu universo de fantasia, com inúmeras referências cristãs.
Embora seja consideravelmente menos rico do que figuras como Elon Musk, o poder político de Thiel sobre as big techs o torna uma figura chave, capaz de transitar entre o Estado profundo – apesar da defesa hipócrita do Estado mínimo – e as grandes corporações de tecnologia e seus líderes, cada vez mais convertidos em celebridades, ou talvez garotos propaganda, de um modo de vida cada vez mais cafona dos ultrarricos globais.
Do périplo do apartheid à máfia do PayPal, passando pela Era Reagan
Nascido na Alemanha Ocidental, Thiel migrou ainda na infância para os Estados Unidos, mas passou alguns anos de sua infância na África do Sul do Apartheid, graças ao trabalho intinerante de seu pai – o que é um detalhe biográfico que coincide com Elon Musk, sobre quem exerce uma espécie de mentoria. Estabelecido na Califórnia desde a adolescência, foi estudar filosofia em Stanford, animado com o conservadorismo da Era Reagan.
Pós-graduado em direito, trabalhou nas grandes corporações de tecnologia no boom dos anos 1990. E dali em diante, sua carreira foi para o alto e além, principalmente quando ajudou a fundar o PayPal, o que lhe catapultou no Vale do Silício, região californiana que sedia a indústria de alta tecnologia americana – e inicia nessa época sua colaboração com Elon Musk.
Mesmo tendo vendido a empresa poucos anos depois, a fundação da empresa gerou prestígio para eles e os demais sócios originais, que passaram a formar a máfia do PayPal: um grupo de yuppies enriquecidos, com bons contatos e que usavam de métodos nada ortodoxos na área de tecnologia, em tempos que o mercado de internet mais se parecia com as cenas selvagens da National Geographic.
Nos anos 2000, ele ganha mais proeminência ajudando Mark Zuckerberg a se tornar o cara do Facebook em meio a operações suspeitas – que depois culminam na formação da Meta e logo geram as primeiras diatribes do capital americano de tecnologia com a China, mesmo que fosse tempos de lua de mel entre os dois países. É dessa época que vem a proibição do Facebook na China por desafiar a soberania de Pequim.
“Na medida em que não acreditam na democracia e sequer gostam das ideias do Iluminismo, de que diabos estariam reclamando quando o outro lado exerce, digamos, seus hobbesianos direitos de soberania?”
Ainda que com relações com os republicanos, desde a juventude, e a colaboração nos anos 1990 com o ex-ministro da Educação de Reagan, os anos Obama não foram ruins para gente como ele. Nas últimas décadas, todo novo presidente americano derrama quantias incalculáveis de subsídios públicos nas grandes corporações de internet, que passaram, cada vez mais, ao cabresto estatal.
Caindo de paraquedas na política
Em país no qual o grosso da produção tecnológica é não apenas estatal como, ainda por cima militar, as corporações de tecnologia são, por outro lado, civis e privadas, formando uma grande corporação barroca. Entre um mundo e outro, figuras híbridas como Thiel surgem como elementos necessários para a articulação desses dois mundos, que no fim tem apenas um objetivo.
Na penumbra de 2015-2016, quando o velho Partido Republicano se desfazia, inúmeros populistas disputavam seu espólio, Trump foi o vencedor e levou o butim. Thiel rapidamente aderiu ao movimento, por mais que ele fosse na contracorrente do grosso do capitalismo americano, que apoiou ali – como em 2020 e 2024 – o establishment democrata, que recebeu gigantescas doações para seus candidatos.
Antes, no entanto, Thiel aderiu à candidatura da magnata Carly Fiorina nas prévias republicanas para 2016, mas com a rápida derrota dela, ele aderiu a Trump, de quem se tornou próximo nos últimos anos. A parceria entre eles foi um sucesso para ambos, sobretudo para Thiel, que passou anos apoiando candidaturas fracassadas de libertários como de Ron Paul.
Atribuir ao trabalho da Cambridge Analytica ou dizer que foram os hackers russos que levaram Hillary Clinton à derrota em 2016, esconde que as grandes redes sociais colaboraram com o crescimento da extrema direita, tornando-a mais popular que os liberais. Nas três ocasiões em que disputou a presidência, Trump teve menos dinheiro do que seus rivais, mas ele teve apoios que não têm preço.
“O pretenso gênio que problematiza o voto feminino e a assistência social é, por sua vez, um empresário profundamente subsidiado pelo contribuinte americano.”
Thiel é o grande “cardeal Richelieu de Trump”, aparecendo como deus ex-machina no contexto de seu quase assassinato em 2024: é aí que o atual presidente americano resolveu, finalmente, parar de adiar a escolha do vice de sua chapa, tendo optado por JD Vance, um jovem ex-crítico do trumpismo que é protegido de Thiel na política – e surge como um sucessor possível para Trump dentro do contexto e objetivos do Maga.
Um militante peculiar da Alt Right e o Iluminismo das trevas
Filósofo de formação e homossexual, Thiel tem um perfil pouco convencional para um homem forte de extrema direita. Muitas das recentes investidas de Trump contra políticas de inclusão e diversidade já eram atacadas há anos por Thiel, quando fazia parte de iniciativas gays conservadoras que ele apoiava. O mesmo se pode dizer da sua obsessão por Tolkien, um escritor reativo à tecnologia e que construiu um universo de fantasia com uma temática cristã de fundo.
Nos tempos de faculdade, sua aproximação com a obra do antropólogo e filósofo francês René Girard parece o nexo que une os estranhos paradoxos de Thiel. Girard produziu uma extensa e sofisticada obra, mas embora não possamos reduzi-la, ela acaba por ser, em último caso, algo religiosa e transcendente: por trás da noção do desejo mimético, reside uma visão teológica e, em certa medida, esotérica que atrai Thiel em suas inconstâncias.
É parte do charme de Thiel se colocar como um grande gênio, mas ainda que não restem dúvidas que ele é uma eminência parda habilidosa – entretanto, a realidade está bem longe disso. Trump se tornou um aliado importante, porque em um momento em que o Partido Republicano perdia sua força, o bilionário americano conseguiu, a uma tacada só, ser um plutocrata e um personagem popularesco, cultivado por anos de televisão.
“Esse arranjo, tão gigantesco como instável, força os limites do meio-ambiente e das sociedades humanas, demandando um Estado forte e bastante militarizado.”
Seu ensaio The Education of a Libertarian [A educação de um libertário], que responde ao artigo de Patri Friedman, apresentou sua temática central: a oposição entre a “liberdade” e a democracia, chegando a apontar o direito ao voto das mulheres e as políticas de assistência social como causa de uma crise que ecoaria até hoje. Thiel ganhou o aplauso de neorreacionários como Nick Land e Curtis Yarvin. Esse ensaio, inclusive, ajudou Land a esboçar seu conceito de Dark Enlightenment [Iluminismo das Trevas].
Esse estranho paradoxo, que une o iluminismo às trevas, conduz à defesa de ideias reacionárias como a monarquia absolutista e a negação radical da modernidade iluminista, para apelar ao seu lado mais obscuro, em uma leitura dos piores aspectos da obra de Thomas Hobbes e na apologia ao Estado Prussiano – este último ponto, uma abordagem elogiosa do conjunto de ideias que resultam no perseverante autoritarismo germânico.
O governo dos fundos trilionários e seus bilionários amestrados
Muito embora gostem de se imaginar como figuras maiores do que são, bilionários como Thiel e Trump são atores e propagandistas de um capitalismo hegemonizado por fundos trilionários como a Black Rock – e seus gestores tecnocráticos. Esse arranjo, tão gigantesco como instável, força os limites do meio-ambiente e das sociedades humanas, demandando um Estado forte e bastante militarizado.
Apesar do verniz ideológico e intelectual, evidentemente, as teorias de Thiel são verdadeiras quimeras e não param em pé. O pretenso gênio que problematiza o voto feminino e a assistência social é, por sua vez, um empresário profundamente subsidiado pelo contribuinte americano – como no caso da sua Palantir, que se sabe publicamente ter sido impulsionada pela CIA, sua cliente.
Nesse sentido, é sintomático o assombro e a catatonia de Thiel diante de uma reles pergunta, feita pelo insuspeito Piers Morgan, sobre Luigi Mangioni, que foi transformado em celebridade ao justiçar um executivo da inclemente indústria de saúde privada: e se isso se tornar, por assim dizer, uma tendência? Que se poderia fazer ou dizer? O que fazer com o poder político que escapa pelas mãos como água.
“Nada disso realmente importa para o capitalismo distópico, em tempos de emergência climática e crise socioeconômica aguda.”
Enquanto questionam a “liberdade” e posam de vítimas quando, por exemplo, a justiça brasileira impõe limites ao X/Twitter, os homens forte das big techs como Thiel caem em uma outra contradição performática: na medida em que não acreditam na democracia e sequer gostam das ideias do Iluminismo, de que diabos estariam reclamando quando o outro lado exerce, digamos, seus hobbesianos direitos de soberania?
Nada disso realmente importa para o capitalismo distópico, em tempos de emergência climática e crise socioeconômica aguda. Apenas que Thiel, assim como Trump, são marionetes úteis para a conjuntura, embora os rachas e fissuras na grande oligarquia ocidental – e americana – não sejam uma simulação, mas a realidade de seu desespero. Temos de estar prontos para enfrentar esse desafio com as armas que forem necessárias.
Sobre os autores
Hugo Albuquerque é publisher da Revista Jacobina, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP e advogado.