Como funcionam as eleições na Venezuela?
Os que se apegam aos argumentos da oposição venezuelana mostram que não estão preocupados com a higidez das eleições, mas com o único resultado que desejam: a mudança do país
Toda a análise sobre um país, feita a partir de outro, está inevitavelmente ligada às interpretações geopolíticas daquele que analisa.
Não há, portanto, nenhuma análise sobre a Venezuela que não seja estruturada pela concepção geopolítica de quem analisa. Temos lido e assistido a uma enxurrada de análises a partir da perspectiva liberal e associada à geopolítica dos EUA e seus aliados. Algumas exceções nos entregam análises profundas a partir do Sul Global, de forma crítica.
Dito isso, vamos tentar nesse texto observar as questões objetivas do processo eleitoral, optando por não estruturá-lo a partir do bloqueio estadunidense e europeu, bem como a partir dos ataques institucionais (o pseudogoverno paralelo de Guaidó), já que analistas mais bem informados já o fizeram aqui mesmo no Opera Mundi. Neste, pretendo trazer um panorama geral que permita ao leitor entender melhor o contexto em que se dá a disputa efervescente desses dias.
Modelo institucional
Na Venezuela são cinco os Poderes, independentes e autônomos. Os três bem conhecidos em outras Repúblicas (Executivo, Legislativo e Judiciário), um Conselho Eleitoral (CNE) e uma representação do povo (algo como a junção do Ministério Público, Defensoria Pública e as Controladorias daqui). Antes da reforma constitucional dos anos 1990, o CNE não era autônomo.
A oposição dominou a Assembleia Nacional (o poder Legislativo) e declarou que Guaidó tomava o poder Executivo ao mesmo tempo em que se omitiu de indicar representantes para o CNE, já que seus indicados teriam de dividir espaço com membros já presentes mais próximos do governo.
O TSJ (órgão máximo do Judiciário, semelhante ao STF) foi provocado a decidir sobre a vacância no CNE, e decidiu que houve omissão do Legislativo, indicando juízes (rectores) para suprir estas vagas.
Este CNE, Poder autônomo da República, é que organiza as eleições conforme determina a Constituição, tanto legislativas quanto executivas. Ele analisa a legalidade dos registros de candidatura, fiscaliza a campanha, cuida do sistema de votação e faz a apuração do resultado.
Candidaturas
O registro das candidaturas passa por um crivo legal, como no Brasil e em qualquer país democrático. É preciso analisar se o cidadão cumpre com os requisitos representativos exigidos na lei, bem como se não há impeditivos penais para pleitear a função pública.
As duas Corinas – María Corina e Corina Yoris – tinham restrições em um desses dois critérios, apesar de terem insistido em se colocar como concorrentes em prévias particulares da oposição. Ao fim, esse grupo registrou Edmundo González como candidato. Além dele, outros nove cidadãos conseguiram registrar suas candidaturas, entre eles Maduro, representando uma frente de partidos capitaneada pelo gigante PSUV.
As principais candidaturas eram, por óbvio, a de González e de Maduro. González amealhou a união dos diferentes grupos de oposição que apoiaram o golpe de Estado do pretenso governo paralelo de Juan Guaidó. Os principais empresários e os segmentos de mais alta renda do país apoiaram fortemente sua candidatura, bem como aparatos estrangeiros ligados aos EUA, União Europeia e grupos e governos de direita da América Latina.
Maduro por sua vez conta com o apoio da maior máquina político-partidária do continente, com entre 4,2 e 4,5 milhões de filiados ativos, que se reúnem em células locais por bairros, distritos, cidades e estados, debatendo todos os aspectos da vida pública, funcionando como mais que um partido como o entendemos, mas como um clube, uma associação, uma entidade terapêutica, de classe, de apoio mútuo, de amparo social, psicológico, etc.
O PSUV, como acontece também com países como a China e Cuba, tem um papel muito próximo do Estado, mas também de outras instituições entendidas como da “sociedade civil” em terminologia mais liberal. Assim, é um espaço de identificação e exercício cotidiano de mobilização. São mais que eleitores registrados, são mais até que meros filiados distantes e pouco ativos; são de fato membros atuantes de uma máquina política gigantesca. Há quem veja graves problemas nesse modelo, mas não vamos entrar nesse mérito aqui, bastando registrar que pertence ao mundo real e não pode ser ignorado.
O sistema de voto
O voto é concretizado em sessões eleitorais, com cerca de 30 mil urnas espalhadas por todo o país. Em cada uma delas, é prevista a presença de “fiscais” das candidaturas registradas, e são indicados pelo CNE, que executa as funções administrativas. Muito semelhante ao modelo brasileiro. O eleitor se identifica, é validado através de biometria, e se dirige à urna.
As urnas, por sua vez, são eletrônicas, e todo voto nela realizado é registrado para posterior envio ao CNE em sistema próprio, auditado por todas as candidaturas, e sem acesso à internet. Ao final do dia, emitem seu resultado final. Tudo parecido com o Brasil até aqui. A diferença está que, junto a cada voto digital, há também a emissão de uma comprovação física, em papel: um pleito de muitas forças políticas no Brasil, entre elas o PDT e apoiadores do Bolsonaro.
Com essa camada extra, é possível não apenas auditar o programa inserido nas urnas, para verificar se registram os votos fidedignamente ao digitado, como também auditar por amostragem algumas urnas após a votação para saber se permaneceram inalteradas em sua programação. É possível também comparar, em cada uma delas, o resultado digital obtido com a soma manual dos votos em papel. Grosso modo, dois modos de voto caminham lado a lado, dobrando as possibilidades e momentos de auditoria dos votos. Nesse ponto, Maduro estava certo na comparação conosco.
Apuração e resultado
Após encerrado o horário de votação, os funcionários do CNE emitem o resultado de cada urna, e os disponibilizam, assim como os comprovantes impressos, para os fiscais das candidaturas. Os fiscais de cada candidatura podem tomar registro e informar à sua coordenação de campanha. Um sistema próprio, fechado e auditado, de transmissão destes resultados é acionado, levando-os ao CNE, sem acesso à internet para evitar hackers.
Na sede do CNE são somados os votos informados por todas as urnas, de forma digital. Essa é a apuração padrão. Em paralelo, uma parte dessas urnas informadas, já auditadas nas sessões eleitorais, é novamente auditada no CNE, sendo comparados os resultados com os comprovantes impressos. A escolha dessas urnas é aleatória, para garantir que todas tenham o mesmo tratamento. Essa é mais uma etapa inexistente no Brasil.
O CNE divulgou, na madrugada da segunda-feira, que 80% das urnas já foram contabilizadas e que a vantagem de votos de Maduro para Gonzalez é tal que as urnas faltantes não permitiriam uma ultrapassagem. Essa prática é normal também no Brasil, mesmo sem boletins de urnas centralizados e disponíveis para consulta antes da totalização.
O CNE informou também que 54% das urnas foram auditadas, ou seja, tiveram os resultados digitais transmitidos comparados com aqueles impressos. Uma amostragem de mais de metade do universo total de votos!
Restam ainda para serem concluídos os procedimentos de apuração a contabilização do total de votos, chegando a 100%, e a divulgação dos boletins de urnas, ou seja, quantos votos cada candidato teve em cada sessão e urna, permitindo que as candidaturas e demais interessados comparem esses dados, do agregado, com os individuais de cada urna.
Esses últimos passos estão previstos e dentro da normalidade, sendo importantes para massacrar qualquer mínima suspeita, mas dispensáveis para o CNE informar o resultado, que é sua obrigação institucional: se dela se furtasse, geraria caos político e social.
O pós eleição
A suspeição sobre o informado pelo CNE é compreensível, dada a realidade política venezuelana, mas este vem cumprindo com suas funções, e somente após finaliza-las será possível qualquer vaticínio sobre correção ou desvio. O papel de qualquer democrata é respeitar a fé pública da instituição enquanto esta se mantiver nos limites da lei, que é o caso. Resta, portanto, questionar qual prazo para se ultimar a apuração.
Nesse sentido, uma apuração no Brasil costuma ser ultimada muitas horas após a divulgação dos resultados, dado problemas na transmissão de algumas urnas, distância, falhas, etc. Nos Estados Unidos leva-se mais de um mês. E não há qualquer dos mecanismos disponíveis no Brasil para auditoria, muito menos os existentes na Venezuela. Tanto é que a última eleição lá não foi reconhecida por relevante parte da população até hoje.
Na Venezuela o Poder Popular (“MP+DPU+CHU”) informa que há investigação em andamento de ataque feito ao sistema de transmissão de dados, aponta como sua origem a Macedônia do Norte, e o CNE informou, desde a divulgação do resultado, que o sistema estava sob ataque cibernético. Os dois Poderes apontam para as próximas horas a divulgação das etapas faltantes (conclusão da apuração e divulgação dos boletins).
Tratando-se de um país alvo de tentativas de invasões marítimas identificadas como financiadas por forças estrangeiras, que passou anos com um “governo” paralelo financiado por países europeus e norte-americanos, com bilhões de dólares usurpados em bancos estrangeiros, é plenamente plausível que tenha sofrido tal ataque alegado por mais de um dos Poderes.
Diante desse quadro, o Brasil tem tido a postura de aguardar o término dos procedimentos pelo CNE, dentro dos prazos soberanamente definidos pelo país vizinho, para então reconhecer o novo presidente eleito. É uma postura excessivamente cautelosa, no limite da não-beligerância, que, não fossem as condições especiais da Venezuela, seria tomada como afronta diplomática, mas sendo o Brasil reconhecido mediador do caso venezuelano, é importante que recobre as cautelas para sinalizar rigor e justiça na mediação.
Posições de pronto reconhecimento são também admissíveis, como foi o caso de uma dezena de países, como Rússia e China e tantos outros países sul-americanos. É o procedimento padrão em relação a todos os países, não se imiscuindo nas questões internas e tomando como válidas as informações das instituições oficiais.
Por fim, posições como as do Chile, que exigem medidas extras não previstas no ordenamento jurídico venezuelano, ou mesmo além do previsto no Acordo de Bárbaros, legitimamente negociados, são mais que uma agressão diplomática, demonstram desprezo pela busca da paz e da democracia na Venezuela. Se aproximam, na prática, de posições irresponsáveis e tresloucadas de líderes como Milei, de quem de antemão já não se esperava qualquer opinião considerável sobre o pleito.
Conclusão
O quadro institucional venezuelano não deixa dúvidas quanto à qualidade da democracia que se busca construir. Democracia que está muito mais próxima da efetiva participação no poder, com capacidade de decisão e execução das políticas públicas pelo cidadão comum, que da mera abertura para criticar inofensivamente o poder vigente (essa última a concepção liberal que já põe o poder real fora do agente poliárquico, passível apenas de crítica por esse).
É preciso, portanto, registrar ainda que a Venezuela, como Cuba, China e outros países que internalizam instâncias do Estado no partido e optam pelo modelo participativo, têm muito mais intensidade democrática que Brasil e EUA a partir de seus fóruns populares de análise, deliberação, execução e fiscalização de políticas públicas, bem como de preparação dos cidadãos para o exercício cotidiano dessas funções.
As acusações sobre a Venezuela ser ditadura estão, assim, muito mais ligadas à dominância de uma ideologia política que a desvios de fato do que é regra institucional. As Forças Armadas, a imprensa, o Legislativo, o Judiciário e o Executivo brasileiros têm excepcional alinhamento ideológico, a ponto de repetirem mantras totalmente anti-factuais (geralmente em economia, mas também em política e relações internacionais), dada a hegemonia ideológica no bloco no poder nacional. Na Venezuela se construiu historicamente, dos anos 90 pra cá, uma outra hegemonia ideológica, presente nos Poderes. Nem aqui nem lá se pode derivar que a hegemonia se trata de uma ditadura.
Historicamente, a hegemonia liberal, ideologia própria do capitalismo contemporâneo, é tratada como estado puro das coisas, o que de outra maneira implicaria reconhecer inúmeras ditaduras liberais pairando por sobre fachadas democráticas. E de fato esta é a crítica feita permanentemente pelos partidos comunistas em todos os países, e é em relação a isso, a uma ditadura do capital, que Marx já vinha a contrapor a ideia de ditadura do proletariado; não como mudança de regras institucionais e de voto, já que não seria isso o determinante numa democracia, mas à hegemonia que essas filigranas visíveis serviam.
Assim, o que se banalizou criticar na Venezuela não é uma institucionalidade despótica – até porque os mesmos que sugerem isso aceitam tranquilamente monarquias e outras formas de autocracias – ou a ausência dos ritos eleitorais – muito mais íntegros e transparentes na Venezuela que nos países centrais (EUA como maior exemplo). O estigma se constituiu sobre a ideia de que, apesar das instituições, apesar das eleições, apesar de tudo ser como deve ser, no final o resultado tende sempre a manter a mesma ideologia dominante.
Ora, essa é exatamente a mesma frustração de boa parte da esquerda em todo o mundo, mas pela hegemonia liberal, onde “tudo muda para se manter como estava”. E nem por isso se convenciona chamar esses países com hegemonia política liberal de ditaduras. O termo, assim, se esvaziou de conteúdo e virou uma adjetivação imutável, não passível de falseamento científico daquilo com o que não se concorda. Independente de procedimentos, se vencer é ditadura, se não, aí sim é uma democracia.
A partir dessa leitura, os países que se apegaram aos frágeis argumentos da oposição venezuelana mostram que não estão preocupados com a higidez das regras eleitorais ou com o respeito às instituições mundialmente aceitas, mas tão somente com o único resultado que desejam e aceitam: a mudança da hegemonia político-ideológica do país. Pois isso lhes convém geopoliticamente.
Longe de dar por certo tudo que vier da Venezuela por termos concordância geopolítica com a atual hegemonia daquele país (poderíamos ver vantagens geopolíticas sem dizer que se tratava de democracia), tratamos aqui de mostrar que os requisitos para a aceitação como democracia funcional estão presentes, e que por outro lado, são os interesses geopolíticos em contrário que abandonam o debate honesto sobre o que é uma democracia, que desestabilizam o país e jogam no caos a atual eleição.
(*) Samuel Braun é professor de políticas públicas na UERJ, doutorando em Economia Política Internacional (UFRJ), mestre em ciência política (UFRRJ) e cientista social (UERJ).