“Boludo” Global
A alma libertária do sapiente Conan anda inquieta e agressiva. Milei, seu psicógrafo, resolveu expressá-la nada mais nada menos que em Davos.
A catilinária a favor do anarcocapitalismo, retirada dos idos do final do século XIX, quando a iluminação pública ainda era a gás, não teve o brilho esperado e causou risos estupefatos no segmento racional da seleta e esvaziada plateia de empresários e políticos.
Tal qual nosso folclórico ex-chanceler, Ernesto Araújo, Milei advertiu o mundo que o Ocidente está em perigo.
Seriam as mudanças climáticas? As crescentes desigualdades, talvez? As fake news? As ameaças à democracia?
Não, claro que não. A grande e principal ameaça viria das diversas correntes do “coletivismo” e do socialismo. Feminismo e ambientalismo, expressões do marxismo cultural, também seria ameaças.
Na exposição mirabolante, Milei também expôs sua cartilha maniqueísta e insana: empresários são “heróis” e os Estados são “vilões”.
O grande crescimento da economia mundial nos séculos XIX e XX teria ocorrido sem a intervenção do Estado, delira ele.
A desavergonhada demonstração de ignorância econômica e histórica não rendeu muito, além dos aplausos da sua claque e “do apoio” do empresário Elon Musk, alguém que, ironicamente, vive de recursos do Estado norte-americano à Tesla e à Space X.
Essa empresa automobilística recebeu um empréstimo” preferencial” de US$ 465 milhões do Departamento de Energia dos EUA, em 2010. Além disso, até pelo menos 2020, a empresa se beneficiou significativamente de créditos fiscais concedidos aos consumidores que compram carros elétricos, o que reduziu o custo dos veículos Tesla, entre US$ 4.000 e US$ 7.500.
Já a Space X recebeu, desde 2003, mais de US$ 15 bilhões em contratos com o governo norte-americano. Como se vê, “heroísmo” não falta.
Tivessem passado por bancos escolares sérios, Milei e Conan teriam aprendido que o Estado foi e é fundamental para o desenvolvimento do capitalismo. Foram os Estados modernos europeus, que surgiram antes da Revolução Industrial, que criaram as condições políticas e econômicas para o desenvolvimento do capitalismo, com o apoio ao mercantilismo e à constituição da acumulação primitiva.
Nos EUA, a abolição, pela guerra civil, da escravatura no Sul, bem como o decidido apoio financeiro do Estado norte-americano para a construção de grandes ferrovias, telégrafos, canais, portos etc. e para a povoação do interior do país foram cruciais para o desenvolvimento do capitalismo estadunidense.
Esse apoio decidido, crucial e geral do Estado para os “heróis” empresários também se deu no campo do comércio mundial, que passou a ser bastante regulado.
Henry Carey, conselheiro do presidente norte-americano Abraham Lincoln, classificava a ideia de “livre comércio” como “parte do sistema imperialista britânico que consignava aos EUA um papel de exportador de produtos primários”. Até a década de cinquenta do século passado, os EUA mantinham tarifas de importação de até 50% para alguns produtos sensíveis. A pressão pelo “livre comércio”, para os outros, veio depois.
No século XX, após a crise de 1929, causada um mercado muito desregulado, os empresários “heróis” foram salvos pelo Estado, quer via políticas keynesianas, quer pelos investimentos no esforço de guerra.
A mesmo se deu na grande crise de 2008, ao longo da qual o Estado norte-americano injetou centenas de bilhões de dólares do dinheiro público nos “heróis” financeiros que a causaram.
Milei é um mitômano. Acredita numa ideologia totalmente ultrapassada, na Guerra Fria e na lenda que a Argentina era a grande potência mundial no início do século XX. Na realidade, era a 13ª. E começou a ter crises mais recorrentes e profundas, após a “revolução liberal” de Martinez de Hoz, ministro de Economia da ditadura militar argentina, um dos seus “heróis”. Martínez de Hoz conseguiu a proeza de reduzir os salários reais dos argentinos em mais de 40%. Quem sabe ele não supera essa conquista heroica e histórica?
Curiosamente, Milei não sabe explicar por que a “comunista” China foi o país que mais cresceu nos últimos 50 anos, mas acredita em todos os “insights’ de Conan, o mastim inglês ultraneoliberal.
Ser discípulo de economistas mortos é normal, como assinalava Keynes. Mas ser discípulo de cachorro morto é um pouco demais.
Como diria Manuel Bandeira, só restaria aos “hermanos” tocar um tango argentino.
Marcelo Zero. É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado