Líderes auditados por cachorros mortos
Nem os que votarem no louco merecem o que vai ocorrer na Argentina em caso de sua vitória, no segundo turno deste domingo
A transformação econômica e social da Revolução Francesa e da Revolução Americana modulou o chamado “progressismo político” para permitir, não só uma transição molecular de parcelas das massas – da base da sociedade em direção a sua cúpula – bem como para, gradativamente, incorporar as vastas massas do campo e da cidade na nova sociedade, com seus novos trabalhadores, consumidores e excluídos. Os irrelevantes, todavia, que tendem a se tornar maioria no reinado do capital são o “exército de reserva” da produção industrial moderna, mais os precários, intermitentes, sem identidade de classe, com poucos recursos para sobreviver: “os outsiders”, que vivem sua vida marginal fora das regras que não sejam as do mercado “perfeito”.
Assim como a Igreja pactuou com o Estado Moderno, para manter a sua influência e poder no novo mundo em surgimento, a necessidade de ceder em parte os poderes absolutos do Estado Moderno – através de regras mais democráticas – permitiram as “classes populares” buscarem compartilhamento da riqueza e da participação política, de forma paralela às ideias revolucionárias, que também emergiram ( e se esgotaram) no mundo capitalista ascendente. As máquinas eleitorais majoritárias e o controle midiático da opinião, porém, chamaram todos a aceitar qualquer coisa, menos o que está aí. Só que o “qualquer coisa” é principalmente a política como mero espetáculo e a vida comum como um delírio sociopático. Aí vem Miley e Bolsonaro.
As diversas formas de populismo que surgem neste vasto mundo são sempre compatíveis com as condições próprias do capitalismo em cada lugar, ora à direita, ora à esquerda do espectro político mais atrasado, ou mais “progressista”, mas sempre se opondo às Revoluções “destrutivas” do sistema do capital e provocando transigências naquilo que originou os momentos de especiais de raiva e fantasia, nas duas das grandes revoluções da modernidade: a americana e a francesa, pelas quais a democracia se evocava um um “valor universal”. O fracasso da Revolução Russa em criar um novo tipo democrático e a falência da social-democracia européia, como nova utopia democrática, agora é assaltada por um surto de populismos sociopáticos que, neste domingo, irão bater novamente à nossa porta.
Escrevo neste sábado melancólico e chuvoso algumas horas antes de iniciar a votação que escolherá o próximo Presidente da Argentina. Chuvas torrenciais das mudanças climáticas? Não sei, mas o alarme da História está ligado em todas as esferas do dia. Mas, por que “melancólico”? Aí é mais simples: quando os ideólogos mais preparados do liberal-rentismo nos meios de comunicação começam a colocar um sinal de igualdade entre Lula=Bolsonaro e Milei=Massa, é porque desapareceram todas as fronteiras entre a sanidade e a insanidade, entre civilização e barbárie, entre o sério e o lúdico. E quando chega o momento da verdade, no caso concreto, quando o teste dos conceitos desafia a inteligência, os monstros aterrissam e verifica-se que o “populismo” destes escribas é um recurso retórico de uma Teoria Política de araque.
Vamos supor que ambos -por exemplo – Milei e Massa – sejam populistas, mas aí a pergunta a seguir poderá ser: ambos são pessoas normais? De perto ninguém é normal, de longe também não. Tudo depende do que se espera da normalidade num determinado ciclo da História. O que me pergunto é se os articulistas, que tratam seguidamente de brandir a palavra “populismo” contra quaisquer pessoas sobre as quais eles dirigem seus preconceitos de classe não sabem – ou não estudaram para saber – que o populismo é, na verdade, não uma doença da democracia, mas uma sintoma evolutivo de ajustamento do capitalismo.
O populismo emerge na democracia política moderna como expressão da evolução capitalista, para mediar as desigualdades mantidas no seu longo curso de dominação, tanto em etapas sucessivas dentro do domínio geopolítico das grandes potências, como nos países da periferia do seu sistema. O populismo é forma política de integração das massas para o sistema funcionar com uma paz social que a criação das suas riquezas, espontaneamente não consegue impor. Nas crises graves do sistema-mundo capitalista como agora, o populismo então adoece e se torna, não um processo integrador ao sistema, mas uma denúncia da sua insanidade.
Para desviar da resposta se Milei é um sociopata ou não, os conceitos desaparecem no irracional e o vale-tudo se instala no inferno da incoerência. Tudo pode ser dito, porque o dito logo se desmancha no ar, o que significa consagrar como normal que um sociopata pode ser Presidente dos nossos vizinhos, pois iguala um candidato que se aconselha com um cachorro morto há dez anos (o anarco “libertário”) ao outro – político tradicional comprometido com a democracia liberal (o ex-peronista) – porque ambos seriam “populistas”. Tal exercício retórico, na prática indica que a democracia liberal está de tal forma destruída, que o estado de civilização está de tal forma acabado, que só restam duas saídas teóricas, mas somente uma saída “prática”.
As saídas teoricamente seriam, uma, a revolução, e a outra uma ditadura fascista, mas como não há nenhuma possibilidade de uma saída revolucionária, resta – na verdade – somente uma: a “via” do modelo do ultraliberalismo meritocrático, que certamente Jorge Lemann pode nos ensinar pacientemente, pois saiu muito bem no caso das americanas. Esta saída seria conduzida, e vitoriosa não por um político, mas por um “Síndico”, ou por um louco tirado à ferro e fogo das urnas ou de um golpe de Estado.
O sábado melancólico, portanto, está retratando a possibilidade da vitória de um Presidente auditado por cachorros mortos e a chuva torrencial do sábado pode ser uma anunciação das lágrimas da Terra em desequilíbrio, inundada, e, ao mesmo tempo, calcinada pelo ódio e pelo egoísmo. Nem os que votarão no louco merecem o que vai ocorrer na Argentina com a sua vitória, mas muito menos os que resistiram em nome da democracia e da dignidade humana.
*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.