Nani Stuart
“Hasta la Victoria, siempre!”
Por Marco Aurélio Garcia
A trajetória de Nani Stuart deve inspirar comportamentos e atitudes
Na Cerimônia do Adeus, obra em que Simone de Beauvoir narra os últimos dez anos de convivência com seu companheiro de toda a vida – Jean Paul Sartre –, ela conclui seu texto com duas frases pungentes:
“Sua morte nos separa. Minha morte não nos reunirá”.
Simone explicita o drama daqueles que, como eu, não acreditam na vida eterna. A perplexidade daqueles que, confrontados com o absurdo de nossa finitude, com a transitoriedade de nossa existência, não podem aceitar com conformismo a morte.
Engana-se quem pensa que renunciamos à idéia de transcendência. Simplesmente a entendemos de forma distinta.
Aqui estamos reunidos, os companheiros e as companheiras, os amigos e amigas de Ana Maria Stuart – a nossa querida Nani –, que, contra nossa vontade, nos deixou há poucos dias.
Aqueles que crêem na vida eterna e os que nela não acreditam estão convencidos, no entanto, de que há sobradas razões para celebrarmos sua memória e afirmar que o exemplo extraordinário de sua trajetória lhe permitirá transcender sua existência material.
Não pude estar presente na cerimônia do adeus a Nani.
Meus compromissos políticos – aqueles mesmos que nossa companheira sempre honrou – me impediram de compartilhar com Robert, Celina, Júlia e Mateus, e com todos os seus muitos – muitos! – amigos e companheiros, a dor da sua perda.
Hoje estamos reunidos para homenageá-la. Não se trata da homenagem ritual normalmente prestada aos que se vão.
Gostaria que nossas palavras – as minhas e a de todos que aqui falarem – possam expressar mais do que nossa dor, nossa saudade, nossa perda.
Quero que, ao evocar a trajetória de Ana Maria Stuart, sejamos capazes de reencontrar-nos com sua inteligência, com seu compromisso, com sua doçura.
Se o conseguirmos – e não há por que não fazê-lo –, estaremos transcendendo sua morte, concedendo-lhe um tipo especial de vida eterna, aquela que resulta de sua lembrança, das lições que nos deixou.
A Direção Nacional do PT qualificou a trajetória de Nani como exemplar. Exemplar quer dizer paradigmática, que deve inspirar comportamentos e atitudes.
Por que essa qualificação? Talvez seja necessário – para quem não conhece – evocar o caminho percorrido por Nani de Rosário, na sua Argentina natal até São Paulo. Dessa Rosário que ela abandonou fugindo, após o assassinato de seu companheiro pela repressão da ditadura argentina.
Clandestina, trazendo nos braços sua filha Celina, ela chega ao Brasil. Um país que transitava lenta e penosamente para a democracia, mas ainda oferecia perigo aos que aqui chegavam, perseguidos em seu país.
Ela consegue trabalho. Refaz sua vida emocional. Renova seus compromissos políticos, na luta pelos direitos humanos e, pouco depois, na construção do Partido dos Trabalhadores.
Nani inicia também uma exitosa carreira intelectual. Com a mesma disciplina e inteligência que impregnou sua atividade militante, ela escreveu e defendeu sua dissertação de mestrado e, mais tarde, seu doutoramento. As portas da academia foram-se abrindo para essa qualificada pesquisadora das relações internacionais.
Ela soube unir uma reflexão acurada à experiência política que sua militância lhe proporcionava.
Tive o privilégio de tê-la como minha principal colaboradora nos dez anos em que ocupei a Secretaria de Relações Internacionais do PT. Quando assumi o posto, beneficiei-me do trabalho que ela havia realizado anteriormente. Quando deixei o cargo, pude observar, na continuidade que Nani deu às tarefas, o quanto eu – e o partido – lhe éramos devedores.
Nani foi decisiva na construção da política externa do PT. À medida que Lula e o partido se aproximavam da vitória nas eleições – que finalmente ocorreria em 2002 –, deu sua contribuição para as formulações programáticas do PT em política externa, essa política externa que se transformou em um dos pontos-chave do atual governo.
A Nani – e a todos nós – tocou viver em um mundo em profunda e radical mutação: o fim da Guerra Fria, a debacle do socialismo burocrático na URSS e na Europa do Leste, a crise da socialdemocracia, a hegemonia norte-americana e suas intervenções militares, a aventura neoliberal na maior parte da América Latina.
Mas a ela também tocou viver estes dias luminosos para as esquerdas sul-americanas: da vitória de Lula no Brasil, de Chávez na Venezuela, de Néstor e, mais tarde, Cristina Kirchner na Argentina, de Tabaré no Uruguai, de Bachelet no Chile, de Evo Morales na Bolívia e de Rafael Correa no Equador.
O entusiasmo que essas vitórias nos provocaram não confundiu seu olhar, onde conviviam o ceticismo da razão e o otimismo da ação.
Nani tinha presente a persistência da crise da cultura política de esquerda e a necessidade de superá-la.
Da mesma forma, a integração sul-americana se transformou em uma de suas paixões. Ela confrontou-a intelectualmente com a experiência européia. Apostou na aliança estratégica entre Brasil e Argentina como elemento-chave da integração continental.
Seu coração e sua cabeça argentina e brasileira, ao mesmo tempo, talvez tenham antecipado a aliança que hoje se consolida entre nossos países, dando-lhe uma dimensão humana indispensável.
Golpeada por cruel enfermidade, Nani enfrentou-a com coragem, dignidade e realismo. Na forma com que viveu seus males, não havia autoengano. Antes, uma discrição, que sempre a caracterizou e com a qual talvez buscasse aplacar as inquietações crescentes de seus amigos.
Foi essa nobreza de caráter, aliada à importância de sua contribuição intelectual e política, que fez com que o desaparecimento de Nani tenha provocado reações de pesar em todo o mundo – na América Latina, nos Estados Unidos, na Europa.
Em nossas trajetórias perdemos muitos companheiros e companheiras. Há anos, muitos nos deixaram combatendo nossos inimigos comuns. Mais recentemente, os acidentes, as enfermidades, nos subtraíram muitos daqueles com quem compartilhamos sonhos, esperanças.
De todos nos despedíamos dizendo: “Hasta la Victoria, siempre!”
Mas vitória com V, maiúsculo, talvez não exista. E esperá-la, como algo fixo no horizonte, pode nos impedir de desfrutar as pequenas vitórias cotidianas que colhemos em nossa trajetória política. A vida dos militantes de esquerda é feita de vitórias e de derrotas.
Não é resultado de uma marcha inevitável ao socialismo, mas a consequência de uma construção humana cheia de obstáculos.
Nani viveu derrotas e vitórias. E nós queremos que sua presença se faça sentir no futuro entre nós. Para melhor entendermos nossas derrotas e com elas aprendermos. Mas também para celebrarmos nossas vitórias.
Internacionais da Presidência da República.
Ana Maria Stuart – Nani – nasceu na cidade de Rosário (Argentina) no dia 12 de setembro de 1945 e faleceu no dia 11 de fevereiro de 2008, em São Paulo (Brasil), cidade na qual se exilou do no final da década de 1970 fugindo da ditadura argentina.
Licenciada em Ciência Políticas e Diplomáticas na Universidade Nacional de Rosário, continuou sua formação na Universidade de São Paulo (USP), onde cursou mestrado e doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).
Nani foi docente de Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista (UNESP-FRANCA), pesquisadora do Centro de Estudos Contemporâneos (CEDEC), integrante do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI-USP), membro titular do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional (GACINT-USP) e do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), integrante do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate e como coordenadora da Secretaria de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores (PT) do Brasil, no qual teve um papel destacado na sua construção, e na qual dedicou mais de duas décadas de trabalho. Teve também um papel importante na consolidação do Foro de São Paulo desde sua criação.