
Primeiro como Vietnã, depois como Ucrânia
Via portal https://operamundi.uol.com.br/
Joe Biden esperava transformar a Ucrânia em uma armadilha para os russos, como foi o Afeganistão. Ao fim, foram os EUA que caíram em uma armadilha como o Vietnã
Nas últimas semanas, o noticiário internacional foi tomado pelas negociações sobre o fim da guerra na Ucrânia. Donald Trump partiu primeiro para um diálogo direto com os russos, deixando Europa e Volodymir Zelensky de fora, em uma conduta inversa ao que fizeram democratas nos últimos anos, que insistentemente excluíram os russos de quaisquer conversações sobre a paz, enquanto financiavam e dirigiam a guerra.
Depois de produzir centenas de milhares de mortes no campo de batalha, destruição e um desastre econômico global, a guerra na Ucrânia entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e Rússia entra em seu limite – e a gestão Trump toma uma medida dramática nos três anos dos conflitos, desagradando o establishment liberal europeu: encerrar o conflito por meio de um entendimento cordial com a Rússia.
Em 2022, a aposta dos democratas, como admitiu expressamente Hillary Clinton, era repetir uma armadilha similar à de 1979 no Afeganistão para neutralizar a União Soviética: o resultado foi um misto de atoleiro militar com sanções econômicas que apressou o fim do gigante soviético. Mas na tentativa de repetir a História, os americanos se depararam com uma versão farsesca, em forma de proxy war, do que foi o Vietnã para si.
Ou como Marx disse que “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa” – na tentativa de escrever a História recriando cenários favoráveis, o tiro dos democratas saiu pela culatra quase como em uma fábula de Esopo.
A armadilha para urso do Afeganistão dos 1980 não funciona mais
Em 1978, a Revolução de Saur foi a derradeira tentativa revolucionária socialista do ciclo iniciado em 1917. Antes um império próspero na Rota da Seda, o Afeganistão terminou arrasado pelo imperialismo britânico entre 1878-1880, mas se levantava cem anos depois. No entanto, o governo revolucionário se viu acossado pelos senhores da guerra no interior do país, apoiados pelo Ocidente, o que o fez clamar por uma indecisa ajuda soviética.
O nome da Revolução se deve ao mês de Saur, isto é, Touro, uma vez que no calendário solar persa, ainda usado no Afeganistão, os meses do ano correspondiam aos signos do horóscopo. Os Estados Unidos rapidamente criaram os seus freedom fighters, os guerrilheiros fundamentalistas glorificados até em um filme do Rambo e que antecederam o Talibã – e depois de anos no Vietnã, os Estados Unidos se encontraram em situação oposta.
Zbigniew Brzezinski, o homem da geopolítica da administração de Jimmy Carter, planejou uma cuidadosa armadilha, induzindo os soviéticos a intervirem no país, pelo que se orgulhava publicamente. Os anciãos líderes soviéticos tampouco pareciam muito dispostos a lutar pela revolução internacional, mas terminaram forçados a intervir para manter a encenação, embora só o tenham feito depois da entrada dos americanos em campo.
Embora fosse a segunda maior economia mundial à época, a União Soviética amargava décadas de estagnação e de perda de qualidade de seu setor produtivo. Com uma agricultura em crise, e dependente de importar alimentos, comprados com o dinheiro da exportação de gás e petróleo, a União Soviética era a vítima perfeita de uma política de sanções como a que veio em seguida ao Afeganistão.
Em 2022, a Federação Russa era, relativamente à época, uma economia menos importante, só que mais resiliente e integrada à economia mundial, enquanto era exportadora de inúmeras commodities agrícolas, aí incluso o trigo – algo que escapou ao olhar nada atento, muito menos atualizado, dos líderes democratas. A política de sanções, ao contrário, poderia empurrar a Rússia a uma reindustrialização, o que Biden supunha ser impossível.
O desastre do Vietnã não era sobre tropas envolvidas
Joe Biden justificou, quando já era tarde, que a política americana para a Ucrânia era genial, pois a ajuda americana retornava, direta ou indiretamente, para o complexo bélico-industrial do país. Igualmente, afirmava que não haveria tropas americanas lá, o que anulava o eventual trauma público de ter caixões retornando com a bandeira americana. Mas algo escapou ao velho Joe.
Tudo parecia responder ao público americano sobre a Ucrânia não ser um novo Vietnã, mas isso ignorava parte das lições que aquela guerra deveria ter ensinado. Uma delas é que confrontar uma força que não representa ameaça direta gera, como qualquer guerra, colateralidades econômicas como inflação – mas não haverá o sentimento popular de sacrifício necessário, uma vez que ele realmente não existe.
Nesse sentido, ainda que o público americano apoiasse genericamente os esforços antirrussos, os efeitos da guerra não eram populares, e Biden não poderia sequer relacioná-los ao conflito que necessitava de apoio para financiar. Da inflação galopante de 2022 à alta dos juros entre 2023 e 2024 – que veio para conter a alta dos preços, mas elevou o endividamento familiar –, a popularidade de Biden caiu junto com os índices de crescimento econômico.
Só havia duas saídas para o conflito: vencer, o que significa a Ucrânia repelir o ataque russo e derrubar Putin – o que dependeria da leitura da opinião pública russa, inclusive de uma eventual derrota – ou sair dele, forçando Kiev a assinar um acordo de paz com Moscou – o que ela foi dissuadida a fazer em 2022. Biden se viu no seu momento Lyndon Johnson no Vietnã, diante de um mal-estar generalizado.
Some-se a isso que a realidade estratégica da Ucrânia terminou por unir ainda mais russos e chineses, seja por um vigoroso comércio entre os dois, quanto por uma política estratégia mais abrangente. Nos anos 1960, embora soviéticos e chineses vivessem às turras, não resta dúvida que eles colaboraram no Vietnã, e o conflito apenas tornava um afastamento mais difícil de acontecer.
Trump e seu momento Nixon na Ucrânia
O retorno de Donald Trump à Casa Branca vem, dentre outras coisas acompanhado pela vontade de desfazer arranjos anteriores: mas a Ucrânia, o grande alvo, era uma síntese perfeita do racha de elites nos Estados Unidos, uma vez que havia tanto uma vontade de desfazer a guerra, uma criação democrata, quanto a necessidade de levar isso adiante, pelo custo econômico do conflito.
Trump precisa do fim da guerra na Ucrânia para que o petróleo e o gás caiam de preço, propiciando juros menores. Mas também sonha em iniciar conversas de alto escalão com a Rússia para produzir um racha entre Moscou e Pequim – só que pela via inversa do que fez Richard Nixon nos anos 1970. A jovem embora envelhecida superpotência americana parece se perder nas suas repetições.
Do outro lado, se a Europa insiste em uma guerra que lhe impôs tantos sacrifícios econômicos, o ponto é que isso diz menos à opinião de seus países, mas o desejo das elites liberais hegemônicas em combaterem os republicanos americanos – que representam uma ameaça aos partidos do poder europeus, abrindo espaço para forças conservadoras ou de extrema direita, que hoje ainda são marginais no contexto europeu.
As enfadonhas cúpulas de líderes europeus petrificados por terem sido jogados na berlinda, e o périplo de Emmanuel Macron e Keir Starmer na Casa Branca, apenas ilustram esse pavor político. Enquanto isso, Zelensky, que soube das negociações pela imprensa, foi chamado aos Estados Unidos para assinar um acordo indecoroso pelo qual cederá minerais críticos e terras raras da Ucrânia para os Estados Unidos.
É certo que de repetição em repetição, e suas respectivas encenações farsescas, caminhamos para algo inteiramente novo: um racha entre americanos e europeus, atingindo em cheio a ordem pós-1945 e o arranjo imperialista como o conhecemos. Com isso, se espera, podem ir embora as ilusões imobilistas de grande parte das esquerdas com a ordem ocidental. A História ensina, o que ela não faz é perdoar.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.