1. O Congresso Mundial contra o Fascismo, Neofascismo e expressões similares

Junto com mais três militantes do Núcleo do PT em Portugal (Evonês Santos, Rafael Condack Barcelos e Camillo Júnior) estive em Caracas a convite da Embaixada da República Bolivariana da Venezuela em Portugal, acompanhando o Congresso Mundial contra o Fascismo, Neofascismo e expressões similares, convocado pelo presidente Nicolás Maduro, que ocorreu dias 10 e 11 de setembro. O evento reuniu delegados internacionais; convidados nacionais; e convidados internacionais, em que se integrou nossa delegação. Ao longo dos dois dias de debates, as mesas gerais e temáticas abordaram diversas perspectivas sobre o enfrentamento ao fascismo e à extrema-direita, incluindo abordagens feministas, anti-racistas e da juventude, assim como estratégias na mobilização e nas redes.

Diversas lideranças do Governo venezuelano e do PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela) discursaram ao longo do Congresso, incluindo a vice-presidenta executiva Delcy Rodríguez, o primeiro vice-presidente do PSUV e ministro Diosdado Cabello, e o presidente da Assembleia Nacional, Jorge Rodríguez. No encerramento do Congresso, o presidente Nicolás Maduro anunciou a criação de uma Internacional Antifascista, com sede em Caracas, cujos termos e articulações não ficaram definidos. Além das conferências e dos debates, o Congresso permitiu o diálogo informal e a troca de contatos com parlamentares e lideranças de movimentos sociais venezuelanos e com representantes de partidos de vários países, incluindo Argentina, Colômbia, Espanha, Portugal e Uruguai.

O Núcleo do PT-Lisboa também realizou uma reunião com a companheira Simone Magalhães, da Brigada do MST na Venezuela, que vem atuando junto das Comunas no aprimoramento das técnicas de produção agrícola. Nesse sentido, foi lançado na semana passada um novo projeto conjunto entre o Governo da Venezuela e o MST-Brasil para cultivo de mais 10 mil hectares no estado Bolívar, no sul do país, visando o aumento da produção de alimentos e da agricultura familiar. Segundo o Governo, a Venezuela produz atualmente 97% dos alimentos que consome.

  1. A realidade venezuelana

Além da agenda do Congresso, a visita permitiu conhecer de perto a realidade venezuelana, muito diferente de algumas distorções que vêm sendo difundidas em certa imprensa.

Caracas é uma cidade imponente e, ao mesmo tempo, magnética. Sua arquitetura imensa é rodeada de uma serra envolvente e o espaço público é cheio de símbolos nacionais e murais de esquerda, mas também de grandes cartazes de multinacionais como McDonald’s, Whirlpool e outras. Em certas ocasiões, parece uma cidade brasileira. Seu povo é tranquilo e acolhedor, com excepção do trânsito. O tempo corre mais devagar, as filas e os serviços levam mais tempo.

A normalidade e o fascínio de Caracas são interrompidas por elementos de escassez, como a reutilização das embalagens de sabonete líquido no hotel. Existe pobreza, existe periferia e existem morros. Apesar de possuir as maiores reservas mundiais de petróleo, a Venezuela é um país sob um criminoso bloqueio que afeta sua economia e o bem-estar da população. Também vem sofrendo sucessivas tentativas de desestabilização e de golpe. Mas é um país que, entre erros e acertos, busca resistir a esse processo.

Não houve oportunidade de sair da capital, devido à escassez de tempo, mas foi possível conhecer Caracas fora da bolha do Congresso. No último dia da visita, caminhamos pelas ruas junto com companheiros do PCE (Partido Comunista de Espanha) e conhecemos dois mercados públicos, um shopping e um café. Tivemos a percepção de uma capital segura, com significativo esforço na segurança pública. Observamos a existência de abastecimento alimentar, com oferta de bens como carne, peixe, verduras, frutas, doces, leite e café. Notamos a presença de políticas sociais em elementos como a acessibilidade para cadeirantes nas avenidas e avisos sobre a proibição de discriminação racial afixados nas lojas.

Buscamos conversar com trabalhadoras/es e pequenos empresários nesses espaços, entender como vivem e o que pensam. Geralmente, a preocupação é com a paz, a tranquilidade e melhores condições de vida. Alguns se mostraram mais politizados, outros menos. Alguns expressaram maior otimismo, enquanto outros colocaram críticas. Um trabalhador elogiou o Governo pela construção da nova Praça da Juventude. Ali perto, o dono de um boteco não quis conversar, só que acertássemos a conta da cerveja. Um empreendedor falou sobre o seu negócio e que sua expectativa é de crescimento. Uma trabalhadora no mercado disse que a vida já foi melhor em Caracas.

Talvez o momento mais impactante em toda a visita tenha sido quando um guarda bolivariano, em vez de nos dar ordens, veio conversar, perguntou o que achávamos do seu país e como era o nosso país. Quando lhe respondemos que nos surpreendeu a beleza de Caracas e a hospitalidade dos venezuelanos e que a realidade não tem nada a ver com o que assistimos na TV, pediu que disséssemos para eles que “somos um povo bom”. E é verdade. A Venezuela é um país tocante de uma forma que ultrapassa a razão. É impossível conter a emoção diante de um povo que, diante de tudo, mantém uma tranquilidade no trato e uma resiliência notáveis.

  1. Dilemas políticos na Venezuela

É importante observar que a Venezuela é um país sob processo revolucionário, o que é visível desde o desembarque no Aeroporto Internacional de Maiquetía – Simón Bolívar. Alguns cartazes representam trabalhadores venezuelanos e fazem referências sobre o histórico libertador; as fardas dos policiais e dos guardas possuem emblemas revolucionários. Mas não se trata de um processo revolucionário de tipo cubano. Ao lado do setor público, da gigante PDVSA (Petróleos de Venezuela) e das políticas públicas e sociais, grandes empresas e multinacionais operam no país. O dólar circula junto do bolívar. O sistema político é multipartidário. Embora a presidência concentre crescente poder, setores da oposição atuam na Assembleia Nacional e governam em vários estados e municípios.

Entre erros e acertos do Governo, as sanções e os ataques externos são determinantes em suas consequências econômicas e políticas, contribuindo na maior agressividade dos enfrentamentos. Nos últimos meses, a Venezuela voltou para as capas dos jornais e para os assuntos mais comentados nas redes devido à controvérsia em torno do processo eleitoral de 28 de julho. O PT reconheceu o resultado e a reeleição do presidente Maduro, realçando o caráter soberano das instituições venezuelanas. O Governo brasileiro vem demandando a apresentação de resultados detalhados pelo Conselho Nacional Eleitoral venezuelano (CNE).

Nesse contexto, persistem desafios importantes na Venezuela. De acordo com os resultados gerais divulgados pelo CNE, posteriormente confirmados pelo Trubunal Supremo de Justiça (TSJ), Nicolás Maduro alcançou a reeleição com 51,95% dos votos. Seu Governo é sustentado pela aliança Gran Polo Patriótico Simon Bolívar (GPP), liderado pelo PSUV, mas que também integra vários partidos e forças políticas do campo da esquerda e centro-esquerda – o campo do chavismo.

O candidato da extrema-direita, Edmundo González, obteve 43,18% dos votos válidos, segundo o CNE. A extrema-direita possui uma dimensão significativa e é quem polariza politicamente com o Governo – um problema que, apesar das diferenças entre os dois países, também ocorre no Brasil. Esse setor coloca em causa a Constituição bolivariana, os direitos sociais nela inscritos e a soberania sobre o petróleo. Existem outros setores da oposição que defendem a soberania do país, respeitam a Constituição bolivariana e reconhecem o resultado da eleição, mas seus vários candidatos totalizaram apenas 4,86% dos votos na apuração.

Nesse sentido, pudemos identificar alguns pontos fundamentais nas perspectivas políticas venezuelanas. Em primeiro lugar, não se vislumbra atualmente a passagem para um modelo de tipo cubano. O que existe é um esforço para reforçar organizações que se traduzem num maior empoderamento de produtores/as e trabalhadores/as, notadamente, o processo das Comunas. Por um lado, no âmbito econômico, procura-se desenvolver essas formas de produção em modelo cooperativo; por outro lado, busca-se o envolvimento dos Conselhos Comunais no processo político, em paralelo à atuação das instituições representativas.

Em segundo lugar, no âmbito político-institucional, é notória uma reiterada indisponibilidade do campo da esquerda chavista para uma partilha do poder ou um acordo de governo com a extrema-direita. Mas também se evidencia a existência de diálogo com a oposição democrática e a disponibilidade para reforçá-lo, permanecendo em aberto que tipo de envolvimento poderá ser realizado e como fortalecer esse campo hoje tão enfraquecido eleitoralmente. São questões a serem resolvidas soberanamente pelos venezuelanos.

  1. Desafios regionais

Ao longo desses dias na Venezuela, fomos recordados da importância da soberania dos países, da solidariedade internacional e do diálogo para a compreensão mútua nas nossas diferenças. Existiu a sensação compartilhada do risco de novos golpes contra processos desenvolvimentistas e soberanistas em países da América Latina. Isso se materializou ainda durante a visita, com o alerta dado pelo presidente Gustavo Petro para um possível golpe na Colômbia. O mesmo alerta para um possível golpe foi dado recentemente pela presidenta Xiomara Castro em Honduras.

Esse é um cenário para o qual as forças políticas do campo popular na região precisarão estar preparadas e articuladas, o que exige diálogo entre as Relações Internacionais de nossos Partidos e articulações no âmbito de organizações como o Foro de São Paulo. Em seu discurso, o presidente Maduro lembrou o apoio que deu ao presidente Lula e a outras lideranças da região na última onda golpista que sofremos. Devemos ter presente a memória da solidariedade mútua em nossas lutas passadas nos caminhos que traçarmos no futuro em defesa da democracia, do desenvolvimento e da paz.

Ausente dos debates no Congresso, a integração regional é absolutamente fundamental para concretizar esses objetivos de democracia, desenvolvimento e paz. Mas apenas será possível alcançá-la no diálogo entre os países da região, no respeito por suas soberanias e diferenças, na afirmação de processos de desenvolvimento que envolvam as populações e no aprofundamento dos direitos sociais, em vez de uma integração econômica feita de cima para baixo e sustentada na desregulação dos mercados.