Lira Alli tem 37 anos — e já 22 de militância. Começou a fazer trabalho de base muito jovem, ainda secundarista. Passou pelo movimento estudantil e hoje é dirigente sindical do Sindsep – SP / CUT. Artista e professore de artes na prefeitura de São Paulo, sempre procurou combinar a sensibilidade (e a subversão) da expressão artística com a urgência de “mudar o mundo” — um dos resultados é o coletivo Arrastão dos Blocos, que atua no Carnaval e em outras festas dee rua de São Paulo. Atualmente, ela também abraçou a causa ambinetal e passou a fazer parte do coletivo Gente Joia que cuida do Parque da Joia (@parquedajoia). Nessa entrevista, ela destaca a importância da criação de um senso de comunidade, com forma de cultivar a solidariedade “um dos valores mais importantes e que pode dar mais frutos no processo de a gente construir uma sociedade diferente.

Como você iniciou seu trabalho de base?

No grêmio da escola. Eu estava no oitavo ano do Ensino Fundamental, entrei na gestão do Grêmio da Escola e comecei a fazer trabalho de base na minha escola. A gente passava nas salas de aula, conversava com as pessoas… Aí tiveram uns meninos do MST que foram na minha escola e convidaram a gente para participar do primeiro Encontro Estadual de Jovens do Campo e da Cidade. A partir disso, a gente começou a conectar as discussões que a gente fazia na escola com alguns assuntos que o MST trazia. A gente organizou o plebiscito popular contra a Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA.

Isso foi em 2002, faz bastante tempo. Mas foi a partir desse debate, a gente fazia o debate sobre o que é o imperialismo, o que a gente pode fazer para enfrentar o imperialismo. Então, acho que foi um processo bem legal. Acho que foi um processo bem legal.

Quais foram os principais desafios no início?

Acho que no começo, acho que um dos desafios era conseguir vencer a vergonha e também a formação. Eu sentia, às vezes, um pouco de insegurança para falar de umas coisas que eu não sabia, então eu fui também atrás de formação política para conseguir fazer o trabalho de base, porque acho que essas duas coisas elas precisam andar bastante juntas.

Depois de um tempo, teve um desafio também que eu fui percebendo, que era o desafio de conseguir, apesar de ser militante, apesar de fazer trabalho de base, por um lado, não deixar me iludir com os cargos. Não deixar esse lugar de ter algum tipo de pequeno poder dentro da militância me fizesse achar que eu sou melhor do que alguém, ou me fizesse achar que era aí que eu precisava estar, porque eu não acho que o cargo é uma coisa pela qual a gente precisa procurar. Ele pode vir como consequência de responsabilidades, mas eu não acho que ninguém é melhor ou pior do que alguém porque está em um lugar ou outro.

E por outro lado, tem esse desafio de conseguir fazer um trabalho de base que seja gostoso, que faça sentido com as coisas que eu gosto de fazer. Eu sou artista, então, para mim, esse desafio de misturar o trabalho de base com o fazer artístico sempre foi uma coisa muito importante.

Você adotou ou se inspirou em alguma metodologia que já conhecia? Ou teve de desenvolver a sua própria?

Acho que minha principal inspiração é o MST e o trabalho de base que o MST faz e as formações sobre trabalho de base, não só com o MST, mas também com as organizações que andam ali junto com o movimento sobre trabalho de base. É importante estudar o trabalho de base, mas eu acho que também colocar o seu jeito de fazer as coisas. Eu estudei também bastante as técnicas de agit-prop, de agitação e propaganda. como eu sempre estudei várias linguagens artísticas, eu sempre procurei misturar as coisas que eu gosto de fazer com o trabalho de base.

Por exemplo, a batucada, tocar instrumento junto, é uma ótima forma de fazer trabalho de base. Primeiro, por que que é gostoso, segundo que você apresenta para as pessoas a possibilidade de aprender a fazer uma coisa. Você não fica só no debate, na discussão de ideias, você faz atividades práticas junto e isso é uma coisa que educa muito.

E é uma conexão com uma forma das nossas ancestralidades, negras, indígenas. Tocar um instrumento em praça pública por si só já é questionar a ordem. E aí eu fui aprendendo outras formas de fazer isso. A galera do MAB, por exemplo, faz o processo com as artilheiras, que é um processo de costura com mulheres para fazer trabalho de base, que é muito bonito também.

Hoje em dia também eu participo de um movimento ambientalista ali no meu bairro, que a gente faz compostagem comunitária, cuida de nascente junto. Eu acho que o trabalho de base, quando ele está conectado à prática, ele faz mais sentido.

Em termos de resultados práticos, quais já foram as principais conquistas de sua luta?

Nesses 22 anos que eu sou militante, eu já vi muitas conquistas, desde conquistas pequenas na escola, quando eu era adolescente e gente conseguiu realizar um festival que conseguiu mudar um pouco a forma da escola se relacionar com os estudantes. Depois no movimento estudantil, que na minha época a gente tinha uma quantidade de festas e discursos machistas dentro do movimento estudantil, e a gente conseguiu mudar essa realidade. E também a luta por cotas nas universidades estaduais paulistas, que foi uma luta grande que a gente construiu. Foram coisas muito importantes. Hoje as universidades estaduais têm outra cara, e a gente lutou muito para isso. Acho que tiveram vários processos.

No sindicato — faz dois anos que eu virei dirigente sindical –, eu vejo várias conquistas. Tem algumas conquistas que são muito pequenas, mas que fazem muita diferença para a vida das pessoas. Por exemplo, recentemente a gente conquistou que em todas as unidades de vigilância sanitária da cidade agora tem bebedor gelado. Pode parecer pequeno, mas você ter direito à água fresca durante o seu período de trabalho fa diferença, ainda mais para a galera dos agentes de endemias, que trabalham o dia inteiro andando na rua.

Poxa, isso é uma baita conquista. Mas, para além das conquistas materiais, tem mais uma que eu queria citar das conquistas materiais, que foi a greve que me fez virar sindicalista. Foi uma greve que a gente fez de 120 dias na educação municipal, por que eu sou professora da rede municipal.

Foram 120 dias porque a gente chamou de greve pela vida. Ela não era uma greve por questões salariais, ela era uma greve porque no momento a prefeitura queria que a gente voltasse ao trabalho presencial, quando a gente estava vivendo um pico da Ômicron no Covid. E a gente fez 120 dias de greve e a gente acabou a greve quando a gente conseguiu garantir a vacinação e EPIs, equipamentos de proteção individual para professores e estudantes. Então acho que foi também um processo muito importante e que a conquista bastante concreta ali me fez me envolver de corpo e alma com sindicalismo.

Mas eu acho que de todos os processos, o mais importante é a gente conseguir construir comunidade. A gente conseguir construir o senso de coletividade entre as pessoas e as pessoas nesse caminho do coletivo irem se politizando, irem entendendo melhor por que a gente vive numa sociedade tão desigual, o que é o capitalismo, o que é o patriarcado, o que é o racismo brasileiro.

Esse processo de conscientização mesmo e de construção comunitária, são as maiores conquistas, as conquistas mais importantes. Conseguir romper o individualismo e isso é muito gostoso por que você consegue observar essa conquista nos processos ali de cada indivíduo com quem você vai convivendo, construindo o trabalho de base e nesse movimento das pessoas aprenderem a serem mais solidárias. Eu acho que a solidariedade é um dos valores mais importantes de cultivar e que pode dar mais frutos no processo de a gente construir uma sociedade diferente.

Em que medida você avalia que o trabalho desenvolvido por você e seu grupo contribuiu para a politização das pessoas do seu território?

Eu sou uma pessoa que atuo vários grupos, eu não sou monogâmica em relação à participação política. Então, dentro do sindicato eu estou atuando, mas no meu bairro eu também atuo com o movimento ambientalista, eu também atuo no movimento do carnaval de rua.

Em todos esses lugares eu percebo que esses processos e a gente discutir como essas coisas acontecem na nossa cidade, a gente discutir o que é a nossa cidade, como ela funciona, como ela pode ser melhor, todos eles contribuem para o processo de politização, seja no sindicato, do funcionalismo público, que é onde eu atuo, eu vejo esse processo… É muito massa.

Às vezes os trabalhadores querem ir para a luta porque tiveram um problema dentro do trabalho, algum chefe que fez algum tipo de assédio, ou porque está faltando ventilação adequada, ou falta ar-condicionado e a sala está muito quente. E, no processo da discussão disso, a gente consegue discutir a privatização dos serviços públicos, a gente consegue discutir o que o atual prefeito está deixando de fazer, que é importante para garantir o acesso do povo aos seus direitos, então eu vejo que essa atuação politiza bastante.

A atuação no carnaval de rua também, ela politiza por um outro lugar, porque muitas vezes a pessoa vai fazer carnaval de rua porque gosta, porque é divertido, porque quer tocar um instrumento ali, gosta do carnaval. E aí no processo de articulação entre os blocos e de discussão sobre qual carnaval a gente quer, a gente discute direito à cidade, a gente discute por que o carnaval toca tão fundo, por que ele é tão importante na construção dessa identidade brasileira, de onde vem o carnaval e por que incomoda tanto algumas pessoas quando a gente toca tambor em praça pública.

Tem toda a questão também que envolve maior preconceito contra os blocos afro, então esse processo todo também vai politizando, quem chega só para fazer uma festa e de repente está ali entendendo todo um debate sobre direito à cidade que também é fundamental.

Bom, e as questões ambientais também nem se fala… Muitas vezes a pessoa chega para compostar ou porque quer curtir a sombra ou porque isso, coisas pequenas e de repente você está discutindo toda a emergência climática que a gente está vivendo e discutindo o capitalismo, discutindo o desenvolvimento, discutindo qual o mundo que a gente quer.

Só que o que eu gosto é isso, quando a gente consegue misturar a discussão com uma ação prática, com colocar a mão na massa, cuidar das nascentes. Acho que faz muito sentido.

Nos últimos anos, com o crescimento da direita, você sente mais hostilidade aberta contra sua militância?

Eu sinto mais hostilidade contra a minha militância e também contra a minha pessoa, né? Também é um debate novo esse, mas eu me identifico como uma pessoa trans não-binária. Eu acho que eu sempre fui essa pessoa, mas antes não tinha nome. Eu já senti hostilidade, mas acho que essa hostilidade contra os corpos e as sexualidades dissidentes é uma coisa que cresceu muito no último período.

Já sofri agressões verbais em muitas quantidades, assim, né? Assédio, enfim, isso sensivelmente aumentou no último período. Também nos espaços da militância não é fácil.

Quando vocês viram e falam que é sindicalista, né? Muitas vezes você chega num local de trabalho e tem pessoas que têm uma perspectiva mais bolsonarista, mais fascista mesmo, assim, né? Que falam, ah, vocês são tudo um bando de comunista, vão se foder. E numa linguagem muito agressiva e na falta do diálogo, né?

Eu acho que isso que é o mais absurdo, assim, dessa extrema-direita é que eles não têm disposição nenhuma de dialogar, de ouvir, de pensar, né? Vai só na linha das palavras prontas e do preconceito, assim, né?

É uma atuação que desumaniza muito as pessoas, a forma como eles estão construindo as narrativas, né? Então, com certeza, eu senti o crescimento dessa hostilidade. Com certeza, eu senti o crescimento dessa hostilidade.

Em cinco pontos, o que você diria para quem quer começar a fazer trabalho de base e não sabe como?

Se conhecer: a primeira coisa para fazer trabalho de base é você se conhecer, saber no que você é bom, no que você é boa, o que você gosta de fazer. Arte, plantar, construir, limpar. Todas as coisas podem se transformar em trabalho de base. É filme, é história. E eu acho que quando a gente faz um trabalho de base conectado com o que a gente gosta de fazer, ele faz mais sentido e a gente faz mais sentido também.

Se conhecer também é se conhecer como pessoa. Qual é o lugar onde você habita, o lugar que você trabalha, o lugar onde você estuda? Nesses lugares é que faz mais sentido fazer trabalho de base. E também quais as suas identidades, né? Você é trabalhadora, estudante, mas é mulher, LGBT, negro, indígena. Tudo isso também faz bastante diferença na hora da atuação.

Escute: quem são as pessoas com quem você quer conversar, no que elas estão interessadas, o que interessa a elas fazer e o que interessa a elas discutir? Pergunte, se você não souber. Escutar mais do que falar é sempre o melhor caminho para, a partir do que você escuta, construir junto com as pessoas

Se respeite: muitas vezes quando a gente entra na militância, a gente entra porque sente uma sensação de urgência de mudar o mundo. Mas a gente tem de entender, por exemplo, que aqui nas nossas terras faz pelo menos 500 anos que os povos estão sobrevivendo ao final do mundo. Ninguém vai resolver todos os problemas do dia pra noite, então é fundamental conseguir se respeitar, conseguir dormir bem, se alimentar, beber água, praticar atividade física, essas coisas básicas. Que são básicas, mas são difíceis.

Se a gente não se cuida, se a gente não permite a gente ter tempo pra gente mesma, a gente adoece. E é melhor a gente dar nosso tempo com qualidade.

Seja exemplo do mundo que você quer construir: a gente quer construir um mundo em que as pessoas possam ser mais felizes, possam ser mais livres. E a gente ensina muito mais pelo exemplo do que pelas palavras. Nossa militância tem que ter a ver com isso, a gente tem que ter coerência. Faz muita diferença ter proceder. Tentar fazer o que se fala. O que não é fácil.

Conheça seus aliados, suas aliadas, suas aliades, e construa coletivos: sozinho a gente tem muito pouca força, junto a gente pensa melhor, a gente faz melhor, a gente é melhor. Aí também é importante tentar não ser demasiadamente romântico, porque às vezes a gente chega na militância para fazer trabalho de base achando que todas as pessoas são muito legais. A gente tem que saber que as pessoas são contraditórias e complexas em todos os lugares. Sabendo disso, a gente não corre tanto o rsico de se decepcionar.