Salete Araújo é enfermeira em um hospital privado na cidade de São Paulo, especializado em casos cirúrgicos. Após o início da pandemia, pacientes que eram aguardados para intervenções clínicas de outra natureza passaram a ser diagnosticados com Covid-19. Os casos foram se avolumando, e o hospital, assim como a própria Salete e seus companheiros de trabalho, tiveram de se adaptar à nova e inesperada prioridade: combater a Covid-19.

Foi uma jornada de medo, dúvidas e muita coragem. Nas palavras da Salete, de muito amor à profissão e aos pacientes. Ela não faltou um único dia no serviço e encarou todos os plantões. Não por medo de perder o emprego, afirma. Mas porque os pacientes contavam com ela. Ela viu colegas de trabalho sucumbirem ao esgotamento emocional durante a pandemia, alguns nem voltaram mais ao trabalho.

O sonho dela sempre foi ser enfermeira. Sonho realizado com muita luta. Salete ingressou na faculdade de Enfermagem aos 22 anos. Hoje, aos 60 anos, deixa transparecer o alívio de quem já recebeu a primeira dose da vacina. Reparem que ela, em diferentes trechos desta entrevista, refere-se ao medo no passado. “Não vamos baixar a guarda”, diz ela, apontando para o futuro.

Acompanhe a entrevista:
Como é a situação no seu local de trabalho? Houve falta de equipamentos de proteção individual ou de insumos? Se isso aconteceu, como é que os trabalhadores e as trabalhadoras deram um jeito, solucionaram essa situação?

O hospital Presidente é da rede privada, e por isso mantém um atendimento de portas abertas, 24 horas.

O enfoque principal é clínica médica, clínica cirúrgica e ortopedia. É um hospital de médio porte. Foi difícil a adequação nos casos para Covid. Eu acho que ninguém estava preparado para receber esses tipos de pacientes. Então, no início da pandemia, houve o planejamento e depois foi se adequando. O hospital foi ficando cada vez mais indicado para os casos de Covid, em termos de uso de EPI’s, de separação de andares, os quartos para isolamento. Funcionários com mais condições de saúde foram destacados para trabalhar na linha de frente. Foi tudo uma questão de tempo, mas não houve falta de EPI’s nem de insumos. Eu tenho colegas que trabalham em outros hospitais, tanto da rede privada quanto da rede pública, que sentiram a falta de EPIs. Não tinham máscaras, óculos, aventais e tinham de usar avental de plástico, situações como essa.

Salete, houve algum paciente sob os cuidados de vocês que tenha morrido por Covid?
Sim, teve. Foram várias situações. Eu trabalho na clínica médica cirúrgica, são pacientes pós-operatórios, mas eu cuidei de pacientes que internaram com Covid e o diagnóstico veio logo depois.
Como a pandemia veio em fevereiro, março do ano passado, havia pacientes que estavam para ser operados, então tiveram que fazer a recuperação da Covid, e aí, então, para o final do ano, começo deste ano, tiveram de se submeter à cirurgia indicada. Foram pacientes que saíram bem, teve alguns que saíram bem. Houve outros pacientes que a gente acabou cuidando, que entraram conscientes e orientados, entraram andando, e aí, no final, depois de poucas horas, esses pacientes estavam entubados, sedados. E naquele momento a gente já tinha uma notícia: ‘olha, o paciente foi a óbito’.

Houve mais casos como este?
Houve. Como teve casos também que a gente cuidou, por exemplo, um paciente que ficou 45 dias entubado, passou por traqueostomia, levou um período longo para se recuperar e saiu bem, saiu agradecendo. Tinha em torno de 60 anos.

E para você, como uma enfermeira, quando esses casos de falecimento por Covid-19 começaram a acontecer, qual foi sua sensação, seu sentimento?
Às vezes a gente tem uma sensação de impotência. Eu tenho praticamente 30 anos de formada, então a gente nunca esteve numa situação tão difícil como essa. Normalmente você cuida do paciente, a partir do momento que ele interna, é para ele sair melhor do que ele chegou. Então a recuperação praticamente tem que ser total. E nessa fase foi muito difícil, porque a gente sofreu com eles… Sofreu com a família. Tinha de chegar em casa em condições, ter ânimo para conversar com a sua família e trazer uma perspectiva boa. Porque, eu saía para trabalhar e a
minha filha muitas vezes ficava chorando: ‘O que será que vai acontecer com a minha mãe?’ Então era um plantão de 12 horas naquela expectativa. Por mais que desse o melhor de mim, todo o apoio psicológico para o paciente, para a família… E para nós? A gente sempre tinha que estar bem para esse tipo de atendimento. Realmente foram dias difíceis.

Eu imagino que para você, que tem que tanto tempo de profissão, os tipos de doenças já conhecidos devem ser mais ou menos previsíveis sobre quem é que pode sobreviver, quem não. Mas essa é uma doença imprevisível, não?
É uma doença imprevisível mesmo, que no começo ninguém sabia como tratar, as situações foram vindo e cada paciente reage de uma maneira. Tinha alguns assintomáticos, outros que exacerbavam aqueles sintomas de saturação, de falta de ar, tosse, confusão mental, dor generalizada. Então foram situações bem diferentes, mas que, no final, o conjunto, acho que agora a gente está trabalhando mais tranquilo, entre aspas né, está dando para lidar melhor com essa situação.

Você falou da sua filha. Você tem duas filhas, elas moram com você?
Uma mora comigo a outra é casada.

É essa que mora com você que chorava algumas vezes quando você saía? Não teria a ver
também com o temor do que poderia acontecer com você?

Sim. Porque eu já tenho 70 anos e praticamente me incluo no grupo de risco. Mas assim, eu vou te falar uma coisa, estava conversando com uma pessoa que mora aqui na minha rua e comentei que eu tinha tomado a vacina. Ela falou “Nossa, você foi corajosa”. Eu falei: “Fui corajosa desde o começo”. Então, eu não faltei um dia no serviço, não peguei atestado. Graças a Deus, sempre eu sou uma pessoa muito positiva, então enquanto estava me arrumando (pra ir trabalhar) eu estava, sabe, já fazendo um planejamento de como seria o meu plantão, o que eu poderia encontrar junto com a minha equipe… Então, também confio muito em Deus, estou sempre pedindo para Deus ter misericórdia da nossa vida, da vida de quem trabalha comigo também, muitas vezes pedi também pelos pacientes, pessoas novas, os filhos iam embora, o marido também, chorando, e falavam assim “Olha, a gente vai deixar ele na mão de vocês, ou ela”, ou então aquela situação que a família confia né, deixa o paciente confiando de que ele terá o cuidado adequado, será bem tratado.

A gente também tem que ter carinho, o amor para transmitir para o paciente. Porque nessa hora também é muito difícil, não vai ter psicóloga o tempo todo, então a gente, enfermeira, faz o papel do psicólogo, faz o papel do nutricionista. Eu tenho que deixar aquele paciente alimentado, porque é um conjunto, o paciente não pode ter dor, ele precisa se alimentar e ter um apoio psicológico. A enfermeira praticamente trabalha em todas essas situações.

Salete, você disse que não faltou nenhum dia nem pensou em faltar. Isso é uma questão de dever profissional, é porque
tem receio de perder o emprego ou é uma vocação? O que explica essa resistência, essa persistência por parte do pessoal da saúde?

Essa coragem, né. É muito amor. Eu amo ser enfermeira, desde quando eu me formei eu queria ser enfermeira. Eu não fui auxiliar, eu não fui
técnica. Eu me formei, já fiz direto a faculdade. É o amor à profissão. Em nenhum momento eu pensei “se eu faltar eu vou perder meu emprego”. Até porque a gente sabe que nessa fase foi difícil, muita gente não foi trabalhar, entendeu? Como a gente trabalha com escala, contavam com a gente. A gente conta com o enfermeiro, conta com a equipe que trabalha com você. O que a gente vê mesmo é a situação em termos do paciente. O paciente está lá, ele não tem culpa, e ele precisa do meu atendimento.
Em nenhum momento, vou ser sincera com você, eu pensei “eu vou perder meu emprego”. Então, é uma dedicação mesmo, exclusiva, e muito amor no que eu faço.

Você falou também que muitas vezes não havia psicólogo, apesar de ser um hospital privado, onde supostamente há mais recursos, há mais estrutura. E para você e para suas colegas e seus colegas, como é que você lida com essa situação quando muitas vezes, não há um profissional psicólogo para ajudar, para ouvir, com quem é que vocês buscam forças, com quem vocês trocam ideias?
Eu trabalho à noite, então à noite esses serviços de apoio não funcionam em hospital nenhum. Mas durante o dia passa uma pessoa, uma assistente social, vendo as prioridades do paciente, as necessidades. Mas em relação aos funcionários… Eu acho que eu, particularmente,
conversava muito em casa, pois tenho alguns parentes que também são médicos, então a gente trocava ideias. “Olha como está no seu serviço?”, “O que você está fazendo nesta situação?”, “Você participou daquele grupo que tomou a vacina?”, entendeu? Penso que esse diálogo com a família para mim foi muito importante, e também conversando com pessoas, do ambiente social, da igreja que frequento. Eu perdi alguns irmãos da igreja, pessoas com quem conversava bastante, isso me deixou um pouquinho abalada no começo. Mas aí eu fui, a gente foi superando essa situação. O diálogo com a família é muito importante. Minhas filhas são novas, a que mora comigo é nutricionista, então, é uma cabeça bem aberta, ela me dava muita força. Nesse período ela ficou procurando emprego, também tive que dar muita força para ela nesse sentido, mas foi mais por aí mesmo. Tenho também pessoas que são amigas psicólogas, e sempre mandavam uma mensagem de força, uma mensagem de carinho, “Olha você vai sair dessa”, “Você vai superar”, “Parabéns pela sua profissão”.

Como era quando você voltava para casa, você teve medo em algum momento de levar Covid para dentro? Como você
lidou com isso?
Como eu te falei, eu ia pro plantão e já fazia uma programação. Terminava o plantão, vinha para casa e encontrava praticamente todo mundo dormindo. Porque eu saio às 6 horas, e eu trabalho a dez minutos de casa. Eu vou de carro, não preciso tomar condução, metrô, então não ficava exposta em relação a outras pessoas que pudessem ter uma contaminação, Mesmo lá dentro do hospital sou muito cautelosa. A gente tem de estar paramentada, máscara, luva, álcool gel. Isso já é uma prática minha, mas quando voltava para casa eu tinha muita preocupação com o risco de trazer uma contaminação para minha família, mas tomava todos os cuidados necessários em relação ao uniforme, já tirava fora de casa, ia para o chuveiro já, tomar um banho, e aí descansar, me alimentar muito bem. Também dei um suporte bom para eles de alimentação, vitamina, orientação médica. Graças a Deus a gente passou esse período sem ninguém contaminado e nenhuma morte na família. Neste período em que a gente está conversando as perspectivas são melhores, a vacina está chegando, os profissionais de saúde estão sendo
vacinados. Mas, antes, houve momentos em que a gente nem sabia se a vacina ia chegar, quando ia chegar.

Nesse período todo, qual foi o momento mais difícil para você?
Foi no meio da pandemia, ali entre julho e setembro, que a coisa aumentou, o número de mortes e de pessoas contaminadas. Então foi o pior momento, acho que para todo mundo, a gente se sentiu meio que impotente. Eram tantas notícias… A gente passou pela quarentena, depois saiu, aí vieram as eleições, houve aglomeração, para mim foi a época mais difícil. E com isso também a gente começou a ouvir as notícias das vacinas e a ter a perspectiva também: não vamos baixar a guarda, vamos continuar com os mesmos cuidados que a gente teve até agora.

E nesse período todo, houve algum que tenha te dado maior satisfação, que você tenha ficado contente na medida do possível como resultado do trabalho?
Houve sim. Pessoas que a gente conhecia, e mesmo pessoas que a gente cuidou e que se restabeleceram, foram momentos agradáveis, quando a gente viu que o nosso trabalho é muito importante. Ficamos 24 horas com o paciente. Por mais que saia do plantão e volte depois, você sabe como aquele paciente estava. Houve momentos agradáveis, como pacientes que voltam para fazer o exame e passam para te dar um alô, “vim te ver e mostrar para você como eu estou bem e você teve uma participação em relação a isso”. O trabalho das equipes de saúde é muito difícil, há também a pressão natural do trabalho, a gente ouve narrativas de que em muitos locais as chefias, as direções, são também muito autoritárias, pressionam demais.

O período de pandemia mudou essa relação das chefias e das direções com o corpo clínico?
Mudou, mudou muito. Eu acho que a gente teve uma maior acessibilidade às chefias, uma empatia. Eu acho que a gente foi mais bem amparada, como uma troca de folga, uma troca de férias, “Olha, estou cansada”, “Vamos trocar as férias, antecipar as folgas”. A gente sentiu que houve um carinho especial em relação a isso. Porque não é fácil, realmente teve pessoas que não aguentaram, ao ponto de acarretar para o restante da equipe. Então, antes que isso se tornasse uma situação mais difícil, então aí a chefia entrava e gerenciava dessa maneira.

Então houve pessoas próximas ali, no trabalho, que sucumbiram a crises emocionais?
Houve. E que está afastada até hoje. Pessoas que tiveram sintomas de infarto, ao ponto de quase fazer um cateterismo, mas aí foi diagnosticado que era realmente o emocional, o psicológico que não aguentou e a pessoa somatizou todo uma situação como se estivesse infartando, e tem pessoas que estão afastadas até hoje.

Você acha que os danos que essa pandemia causou poderiam ter sido menores? Você acha que houve um manejo por parte das autoridades adequado para o tamanho do problema?

Eu acho que em relação ao manejo dos governadores, dos nossos prefeitos, acho que tudo foi colocado bem esclarecido. Teve situações que a gente achava que poderiam ser melhores, mais adequadas em relação ao momento, mas eu acho que as pessoas também não acreditavam muito nessa doença. E tudo que foi pedido em relação à aglomeração, ao uso de máscaras, não sair de casa por conta da contaminação, para o familiar, para o idoso, para o grupo de risco, as pessoas não estavam dando credibilidade. Eu cheguei a assistir vídeos de pessoas em festas, pessoas conhecidas e que depois eu me encontrei com elas no pronto-socorro já com o Covid positivo. Às vezes eu até mandava uma resposta: “Puxa vida, vocês estão aí se alegrando, e eu estou aqui trabalhando e daqui uns dias eu vou encontrar com vocês aqui”.

Por que você acha que uma parte das pessoas agiu dessa maneira?
As pessoas ficaram cansadas no começo. A coisa veio muito abrupta: tem de ficar em casa, se recolher, fazer a quarentena. Ninguém estava esperando. Foram pessoas que perderam o emprego. E quando começou a liberar um pouquinho mais a pessoa falou: “agora é hora, deixa eu aproveitar o tempo que eu perdi”.

Agora eu queria que você contasse um pouco a sua história. Você é uma enfermeira formada. Nasceu em São Paulo mesmo? Como descobriu que queria ser enfermeira? E como foi a sua luta para se formar? Conta um pouco essa trajetória pra gente.

Eu nasci aqui em São Paulo. Minha mãe era filha de espanhol, meu pai brasileiro. Desde a adolescência eu vi que tinha esse dom para
ajudar as pessoas, de cuidar. Comecei a ler sobre a história das grandes enfermeiras, a Florence (Nigthingale,1820-1910, célebre por sua atuação na Guerra da Crimeia). Eu tinha uma tia que morava no Rio de Janeiro e era enfermeira, quando ela vinha para cá me contava como era o trabalho dela. Eu falava: “Que bacana, quero ser enfermeira também”. Eu sempre batalhei. Na faculdade meu pai me ajudou. Mas os outros cursos depois da faculdade fiz trabalhando, não foi fácil. Tenho especialização em clínica cirúrgica obstetrícia, em administração hospitalar e sou graduada também em auditoria em qualidade na área da saúde. Tenho planos de voltar a estudar ainda neste ano.

Obrigado por esta entrevista. Quer acrescentar alguma coisa?
A mensagem que eu quero passar aqui é: vamos continuar nessa caminhada. Eu acho que logo vai haver uma vitória em relação a isso. Para mim foi muito importante ter recebido a primeira dose da vacina, vou receber a segunda dose e isso faz com que a gente tenha ainda mais empenho, mais vontade de ajudar o próximo, de trabalhar na nossa profissão.