Três anos depois do massacre de Paraisópolis, responsáveis permanecem impunes

Em 1º de dezembro de 2019, nove adolescentes e jovens de 14 a 23 anos foram mortos e pelo menos doze pessoas ficaram gravemente feridas durante Operação Pancadão da Polícia Militar no baile da Dz7, em Paraisópolis, periferia da Zona Sul de São Paulo. A ação provocou tumulto no evento, que contava com mais de cinco mil pessoas e tinha como saída apenas uma viela com escadaria. Logo que o caso veio a público circularam imagens da ação violenta dos policiais e das agressões praticadas por eles, com grande repercussão.

Depoimentos de testemunhas, familiares e vítimas feridas relatam garrafadas na cabeça, cassetete nas costas, gás de pimenta, além de uso de arma de fogo e balas de borracha. Há denúncias por parte de moradores de que os policiais militares impediram o socorro às vítimas. O delegado Emiliano da Silva Neto, do 89º DP, afirmou que todas as vítimas morreram pisoteadas. Mas os corpos não tinham marcas e suas roupas não estavam sujas, como alegam familiares das vítimas e mostram os exames realizados por peritos. Em julho de 2021, o Ministério Público de São Paulo denunciou doze policiais militares que participaram da ope[1]ração por homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar). Além da condenação, o MP requer a fixação de valor mínimo para reparação dos danos materiais e morais causados pelas infrações. A Justiça de São Paulo aceitou a denúncia do MP e tornou réus os doze PMs. A audiência de instrução do processo, inicial, está marcada para 25 julho de 2023. Para falar sobre isso, a revista Reconexão Periferias entrevistou Maria Cristina Quirino, mãe do adolescente Denys Henrique, um dos mortos não operação. Ela luta junto com familiares das vítimas para que a verdade seja apurada, e o Estado responsabilizado.

Reconexão Periferias – Cristina, fale um pouco sobre sua vida antes e depois do massacre.

Cristina – Meu nome é Maria Cristina Quirino. Eu sou mãe de quatro filhos, sou arrimo de família, trabalhava numa loja de peças para refrigeração. A gente viveu na Brasilândia durante trinta anos e a outra parte na favela de Heliópolis. Nasci aqui, migrei na barriga da minha mãe, do Ceará para cá, criava meus filhos, até quando mataram o Denys. Aí começou a luta para mostrar a injustiça que foi cometida com ele, comigo e com a minha família. É muito difícil falar de mim hoje porque eu quase não consigo me encontrar mais com aquela Cristina que viveu durante quarenta anos em função da família.

 RP – O que aconteceu com seu filho?

Ele era um adolescente de 16 anos, que estava descobrindo a vida. Assim como todo adolescente, tinha curiosidade de conhecer o funk. E foi para aquele lugar porque é a cultura da juventude que existe para eles hoje. Trabalhou o dia todo naquele sábado, tomamos café da manhã juntos. À noite se reuniu com os amigos e foram para o baile. Aí aconteceu aquilo tudo. No dia seguinte, para mim, foi um choque, porque eu recebi a notícia de uma maneira e depois veio à tona que foi de outra. Demorou muitos dias para eu entender o que houve com o meu filho, a logística que a polícia usa para matar o filho da gente. E para criar coragem de ir atrás da verdade, porque é o meu direito mostrar que eles são assassinos. E provar que meu filho e todos os outros eram inocentes.

RP – Quando aconteceu o caso, a versão dos policiais é que a morte aconteceu por pisoteamento. E grande parte do movimento de vocês, familiares, afirma que não foi exatamente isso. Conte a sua versão da história.

O álibi da polícia já foi uma estratégia, porque hoje entendo que foi tudo combinado. Entraram no baile com a intenção de fazer a maldade. Tanto que quem fez boletim de ocorrência foram eles, para tentar justificar o injustificável. E quanto à questão da desconstrução dessa tese, no ano passado, a gente conseguiu o trabalho do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, órgão complementar da Universidade Federal de São Paulo (Caaf), que é um trabalho muito importante, no qual eu acredito. Temos laudos que dizem que eles não tinham fraturas, não tinham machucados, não tinham um osso quebrado Só eu tive acesso à roupa do meu filho, e não tinha nenhuma marca de pés. Na certidão de óbito dele consta até hoje “aguardar exames”, mas o exame do IML indica asfixia mecânica indireta como causa da morte. Agora, imagina uma pessoa caída no chão e quase cinco mil passando por cima, o tanto de ossos que teriam quebrado. O exame feito com ele pelo IML não mostrou isso, então está fora de cogitação, já foi comprovado que não foi pisoteamento e está no processo.

RP – E o que aconteceu nesse processo criminal desde que aconteceu o assassinato do seu filho?

No processo criminal não aconteceu nada, para mim, anda a passos de tartaruga. Houve a finalização do inquérito do DHPP, aí o delegado denunciou nove poli[1]ciais, sendo que eram 38 envolvidos. No Ministério Público a promotora denunciou mais três, então hoje são doze réus, e um outro foi denunciado por ter usado bomba e morteiro, o que não é autorizado pela polícia. Os outros foram todos absolvidos. Como 38 pessoas participam de uma operação, de um massacre com nove mortos e não são responsabilizadas? Se eu estivesse em alguma situação, um assalto, e a polícia me pegasse eu responderia por isso como cúmplice até provar o contrário. Esses outros continuam trabalhando na rua e matando os filhos dos outros. No dia 25 de julho vai acontecer uma audiência de instrução, onde os denunciados começarão a ser ouvidos, para depois o juiz decidir se vão a júri ou não. Tudo é muito cruel. Nós, familiares, só podemos nos organizar para manter a memória viva, mostrar para a sociedade que eles eram inocentes, que mataram os meninos e não tinham o direito de fazer isso.

RP – Os familiares das vítimas estão organizados?

Sim. Desde o início eu converso com todo mundo. Tem um grupo que criei, organizamos o ato do dia 1º de dezembro, quando completaram três anos, seguido de missa na Catedral da Sé. E no dia 3 faremos um ato na Zona Sul, uma caminhada para o Hospital Campo Limpo para fazer a desconstrução do socorro, mostrar a desconstrução do socorro. A questão de que houve resistência é a parte mais difícil de desconstruir, porque é um álibi que a polícia já usa há muito tempo. Mas o pisoteamento e o socorro eu faço questão de que todo mundo saiba que não foi pisoteamento, que eles não socorreram, que eles já atiraram nos nossos meninos de lá mortos. Não tinham que mexer na cena do crime, deveriam deixar tudo como estava para podermos ter pelo menos uma investigação justa. Essa é outra coisa que me machuca demais, por[1]que se a polícia tivesse agido corretamente ali, naquele dia, não teriam mexido. E o baile não teria continuado, mas continuou. Fizeram tudo bem pensado, tiraram os meninos e saíram, e o baile continua, porque na comunidade é assim. Dispersão. Essa é a palavra, aí vai todo mundo embora. Daqui a pouco voltam todos. Onde eu morava também tinha baile funk. É desse jeito. Lá em Paraisópolis não aconteceu isso. A polícia entrou, matou os meninos, tirou de lá, não falou para ninguém, não alarmou. Os poucos que presenciaram acharam que os meninos estavam vivos e voltaram. O baile continuou até o dia seguinte. É uma revolta para mim. Até os dois amigos do meu filho, que estavam com ele no dia, voltaram para o baile até o dia amanhecer porque achavam que ele estava vivo.

RP – Depois de tudo isso mudou a sua visão da polícia? Qual era a sua perspectiva da atuação dos policiais na periferia e como é hoje?

É uma vergonha para mim falar isso, mas eu faço questão que todo mundo saiba que eu vivi por quarenta anos acre[1]ditando nessa polícia, admirando essa profissão, quando eu era criança tinha o sonho de ser da polícia. Não consegui porque meus pais eram pobres, tive de parar de estudar para poder trabalhar, levar o sustento para minha família, minhas irmãs pequenas, para ajudar minha mãe. Então desisti do meu sonho. Fui trabalhar de doméstica e viver minha vida de outra maneira, mas ainda assim eu acreditava na corporação, achava que eles eram a proteção que a gente tinha, que era com quem eu podia contar. Vivi enganada durante quarenta anos, ensinando para os meus filhos a sempre abaixar a cabeça, mesmo estando certos, por que eles eram a lei e estavam fazendo o trabalho deles, até o dia em que me entregaram meu filho morto, assassinado por eles. Isso mudou completamente a minha visão. Hoje eu tenho medo, porque sei que estou batendo de frente com o sistema para falar que eles mataram o meu filho. Então, eu corro risco quanto a isso. Não tenho outra explicação, só medo e raiva, porque eles conseguiram plantar um sentimento muito ruim. Eu nunca tinha passado o sentimento de raiva, de ódio, de revolta, de tristeza, de todo o sentimento ruim que passa na minha cabeça. Quantos inocentes eles matam? Não foi só o meu filho, foram nove… Ter acreditado nessa corporação imunda, corrompida, que teve 38 envolvidos em uma ação. Você acha que algum deles ali não podia falar a verdade? Ou algum deles não devia falar a verdade? A tenente mesmo podia ter falado para não faze[1]rem o que fizeram, mas ela não fez.

Ela tinha autonomia para barrar os outros indivíduos, mas não fez. Ao[1]contrário, compactuou com tudo isso. É muita vergonha para mim, mas eu preciso falar sobre isso também, porque as pessoas precisam saber, porque, assim como eu acreditei, muitos acreditam. Tem gente que defende a polícia, que acha que só por estarem num baile funk tem de matar mesmo, porque estavam na comunidade.

RP – Como você conheceu o Caaf?

O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe) começou a nos reunir, os familiares, para pensar em uma maneira de mostrar a verdade e cobrar respostas do governador. Aí, na primeira reunião, encontrei a Desireé, do Caaf, agarrei a mão dela e não soltei mais. O Condepe me deu a esperança e a perspectiva de que eu podia cobrar, que estava no meu direito, me fez entender e enxergar isso. Aquela esperança de que a gente podia e consegue mostrar a verdade. E agora eu sou pesquisadora do caso. Antes eu era voluntária, agora sou bolsista, estou no meu primeiro mês. Eu ainda queria ser vendedora de balcão, ter meu filho de volta, ter minha vida de volta, só que isso nunca mais vai acontecer. Então a luta agora é parte da minha vida.

RP – Como vocês estão fazendo a desconstrução do socorro?

Os trabalhos do Caaf estão disponíveis no YouTube. Uma série, RP – Algo mais que você gostaria de registrar em nossa entrevista? A gente viu esse governador aí que foi eleito (Tarcísio). Ele se candidatou e se elegeu fazendo campanha para tirar as câmeras (nos uniformes dos policiais) que foram colocadas depois da mor[1]te dos nossos filhos. O João Dória fazia questão de falar que colocou as câmeras depois do massacre que aconteceu em Paraisópolis. Antes de ele sair, ele fez questão de falar que a letalidade policial diminuiu depois das câmeras, depois do ocorrido. Então não podemos permitir que esse governador tire as câmeras. ENTREVISTA COM MARIA CRISTINA QUIRINO três atos, nove vidas, que pode ser assistida neste link. São nove vídeos, nove biografias, nove meninos e uma menina. Na sequência vem a desconstrução da polícia, a verdade que eles não contam. Tem detalhes do processo que muita gente não sabe, por exemplo, eles alegam que socorreram nossos filhos e levaram nossos filhos em comboio até o hospital. E no processo a gente pediu aos advogados para pedi[1]rem as câmeras de vigilância da CT. Foi negado. Para pedirem as câmeras do hospital. Foi negado. A gente não sabe até hoje qual foi o percurso que eles fizeram para socorrer os nossos filhos. Eles levaram quase uma hora para chegar no hospital. Eu fiz esse trajeto do Hospital Campo Limpo até Paraisópolis. No meu carro eu fiz em dezenove minutos. Eles falam que os meninos chegaram vivos no hospital. É tudo mentira. Nenhum deles chegou porque para morrer de asfixia demora de três a sete minutos. O meu filho foi o primeiro a chegar.