Macaé Evaristo, recém-eleita deputada estadual em Minas Gerais pelo PT, é a um só tempo uma nova personagem que entra na cena parlamentar e uma liderança histórica do movimento educacional brasileiro. Como contingência de sua geração, viveu os primeiros anos de educação formal sob o regime militar. Sua mãe foi professora da escola pública naquele mesmo período. De lá, aprendeu a importância da insubordinação e da responsabilidade para resistir ao autoritarismo e transformar as pessoas e o mundo ao redor.

Feliz com a eleição de Lula presidente, Macaé vai, ao mesmo tempo, ser parlamentar em um estado que reelegeu um governador privatista e adepto de um modelo educacional opressor, limitante. Viverá de perto as contradições de um país que sonha esperançoso enquanto é assediado pelo horror da extrema-direita.

Com os aprendizados que viveu até aqui, como assistente social, educadora e gestora pública, Macaé acredita que a reconstrução e a mudança vão se consolidar com o trabalho compartilhado entre estudantes e professores, entre escola pública e periferias. “As grandes ideias, as grandes revoluções que estão se tratando no Brasil, no sentido de uma nova sociabilidade, vêm das periferias, das favelas”, diz a deputada Recentemente, ela foi biografada no livro “Macaé.

Evaristo – Uma Força Negra na Cena Pública” (editora Periferias). Acompanhe a entrevista:

RP: Estamos no início do mês de novembro de 2022. Lula foi eleito presidente. Nesse período, também acompanhamos uma série de locautes e atos ilegais, pedindo intervenção militar. Então temos aí um período bem desafiador pela frente. Você fala muito na escola pública como um projeto pedagógico compartilhado, não aquela coisa hierarquizada, seriada, e sim como o terreno da transformação. Como praticar esse ensino num momento como este que a gente está vivendo, inclusive em Minas Gerais, com a eleição de um governo estadual que não é adepto desse tipo de educação transformadora?


Macaé: Em Minas estamos vivendo um tempo de muita luta, de muita resistência, e eu sempre gostei de reafirmar uma ideia de Anísio Teixeira, de que a escola pública é a fábrica de se produzir democracia, porque é o espaço da convivência democrática, da pluralidade, da liberdade de aprender e de ensinar, de a gente poder colocar em questão pensamentos e pontos de vista diferentes. Então, pensar a escola pública nessa lógica é pensar uma estrutura de fortalecimento da democracia. No caso do nosso país, saímos dessa eleição e hoje respiramos, porque venceram o princípio democrático, a Constituição de 1988, a possibilidade da nossa existência. É aí que eu quero dizer, como mulher negra, que a gente lutou. Lutamos após 300 anos de escravatura pelo reconhecimento dos nossos direitos e da nossa cidadania, que está sendo ameaçada por esse pensamento autoritário que tentava se articular e fazer frente no país. Em Minas Gerais, o atual governador, que foi reeleito, tem um pensamento bem distinto. Ele é privatista. Mas, para além de querer privatizar a educação, é um governo também que compactuou com cortes na educação e que compactuou com essa ideia de uma escola cívico-militar. Que, pra mim, é uma ideia autoritária. Uma escola construída em uma égide autoritária, repressora, para as camadas populares, que inclusive atenta contra meninas negras que não podem usar o cabelo black. Isso a gente viu acontecer. Atenta contra o direito dos estudantes, porque pensa que a escola é um quartel. Portanto, pode agredir crianças, bater nas crianças, privar a criança de sua liberdade. Isso é muito grave. E essa é toda uma agenda que nós temos que contrapor. Em Minas Gerais, inclusive, foi uma das bandeiras do meu processo eleitoral. É um mandato que vai focar na agenda de fortalecimento da educação e da escola pública. Uma escola que seja plural, respeite as diferenças, esteja sintonizada com um projeto de desenvolvimento sustentável para a população. E eu falo como mãe também e como uma pessoa que deve sua história à escola pública. Minha mãe era professora de escola pública, ficou viúva muito cedo, com quatro filhas. E eu falo que meninas negras têm quase um destino pré-desenhado pelo autoritarismo e racismo da sociedade. E a escola pública foi esse mecanismo de emancipação social. As mães, as mulheres, nós não queremos armas. Nós queremos livros. Nós queremos fazer essa revolução por meio da educação. Então foi esse o programa, na minha compreensão, que venceu, o programa do presidente Lula. E é isso que nós queremos implementar.

O que professores e estudantes podem fazer, na prática, para realizar esse projeto de escola pública?

Eu estou com o Paulo Freire, sou freiriana de formação. Então, acredito numa educação para transformação. Não é uma educação doutrinária, mas com a quasl a gente possa aprender e utilizar os conhecimentos para compreensão do mundo. Minha mãe era professora e eu sou professora. Fui professora de escola pública dos anos iniciais durante muito tempo da minha vida e sei que a gente pode, sim, fazer a diferença e aprender a ler e escrever muito bem. Isso faz diferença, né? Ter acesso à ampliação do universo cultural e se fazer presente e compreender os próprios problemas do dia a dia. Muitas vezes as pessoas falam: mas a gente pode discutir isso com as crianças? Eu gosto de dar um exemplo. Eu trabalhei muitos anos aqui em Belo Horizonte, no Aglomerado da Serra, numa área muito pobre, onde, lá no início dos anos 1990, as famílias não tinham acesso à água. Minhas crianças de oito, nove anos, imaginavam que faltava água na comunidade porque a água não sobe o morro. E eu lembro que, à época, a gente fez um longo projeto, um debate que envolveu uma série de experimentos científicos e uma visita a um outro bairro de Belo Horizonte, de classe média alta, que fica também no alto da serra. E eles viram que a água sobe o morro sim, que lá havia piscina. Eu penso que a escola pública é esse espaço de compreender a vida e entender o nosso lugar, sair do determinismo e entender que há um processo, há também uma construção política que sustenta a desigualdade. Eu estudei durante o regime militar. Mas tive professores arrojados, maravilhosos, que marcaram a minha trajetória e que não tiveram medo. Acho que essa é a grande questão. Quando a gente fala que tem a esperança, não significa que não tem medo, mas sim que não nos deixamos paralisar pelo medo. Na verdade, a gente faz do medo a nossa alavanca para seguir em frente, porque acredita também na nossa capacidade de organização. Pelo menos a minha trajetória diz de uma certa insubordinação a um determinismo e a uma agenda que o racismo estrutural e o patrimonialismo muitas vezes querem nos fazer crer e nos silenciar.

Eu lembrei de uma pregação de um pastor que, para exemplificar o mal que enxergava na candidatura do Lula e das forças populares, disse que os filhos estão indo para a universidade e voltam das aulas questionando os pais. É aquela ideia de hierarquia: manda quem pode, obedece quem tem juízo. A figura do professor ganha ainda mais relevo e você fala até em insubordinação. Aí eu pergunto: é importante para os professores também construírem um movimento para que não fiquem isolados e tenham pontos de referência em outras escolas?

Eu acredito muito na organização coletiva. Trabalho com formação de professores, e costumo sempre dizer da importância da organização, dos trabalhadores, das trabalhadoras. Para além da organização sindical. Eu sempre participei muito de movimentos e de articulação pedagógica, mesmo de articulação entre escolas. Assim nós sobrevivemos à Lei de Diretrizes e Bases 5692 (de 1971), por exemplo, toda organizada numa lógica fragmentada, seriada, que não considerava o contexto em que você estava atuando, o contexto dos estudantes. Eu participei de inúmeros movimentos de alfabetização, professores que se organizavam para acompanhar grupos de estudantes com o intuito de evitar que eles ficassem reprovando ano a ano, que questionavam aquela estrutura. Eu acho que, mais do que nunca, esse é o momento. Os governos totalitários atacam a escola pública e também a figura do professor. Veja bem, a nossa autoridade não pode ser construída pela força, nessa ideia de que quem pode, manda, obedece quem tem juízo É a síntese da falta de argumento. A autoridade não precisa vir pela força. Essa é a ideia da democracia, porque quem acha que a autoridade tem que vir pela força está pedindo intervenção militar. Nós não acreditamos nisso. Nesse momento que estamos vivendo, acho que precisamos de total recusa à perspectiva autoritária e, no meu pensamento, da nossa auto-organização. Eu participo de uma articulação para a formação de lideranças de juventude, um projeto chamado Seja Democracia. A partir dessa agenda: o valor da democracia. Muitas vezes as pessoas acham que uma série de conquistas e direitos é eterna. Eu lembro aqui do livro da Angela Davis, quando ela chama a atenção: “a liberdade é uma luta constante”. Onde é que o Estado está mais próximo das comunidades? As primeiras coisas pelas quais as comunidades se organizam é por água, luz e escola. Qualquer comunidade quer ter uma escola. Quando o Estado se ausenta das comunidades, aí sobra espaço para outro tipo de poder, para as milícias, o tráfico de drogas, para as igrejas. Por isso, eu defendo a escola pública.

Você defende que é necessária a construção de mais escolas nos territórios? Ou basta melhorar o que já existem?

Nós precisamos de investimento do ponto de vista de infraestrutura. Se a gente pensar, por exemplo, na educação infantil, que esse governo aí cortou 97% do financiamento para construção de creches para o ano de 2023. Esse é um tema sobre o qual a equipe de transição vai ter de se debruçar. Nós tínhamos no Plano Nacional de Educação uma meta. Chegaríamos em 2022 com pelo menos 50% das crianças de 0 a 3 anos matriculadas em creches. E isso não se configurou. É corte sobre corte, desde 2016. Tudo isso inviabiliza os municípios brasileiros para ampliar a educação infantil.

Precisamos de aportes do governo federal. É preciso sim (a construção de mais unidades). Porque a perversidade desse governo que aí está atrasou um projeto de desenvolvimento para o conjunto da população brasileira, que também está no Plano Nacional de Educação. A ampliação do ensino integral é uma necessidade premente. Principalmente nos grandes centros urbanos, onde muitas mulheres são as chefes de família, precisam saber que podem trabalhar e que seus filhos estarão imersos num ambiente de desenvolvimento, de educação e de acesso à cultura, esporte. É preciso pensar um projeto de educação integral. Para quem a República pensa a cidadania? Quando o Bolsonaro diz que todo o favelado é bandido, é uma atualização do discurso escravocrata.

Quais as melhores maneiras de atrair os estudantes para uma pauta que valorize a vida? E como os coletivos que estão organizados nas periferias podem participar desse processo junto com a escola pública?

Vou falar um pouco a partir da minha experiência aqui em BH, por exemplo, quando eu fui secretária da professora Maria do Pilar (mandato Patrus Ananias, 1993-1997). A gente desenvolveu um programa de educação integral e que dialogou muito depois com o Mais Educação, do Ministério da Educação, que era uma ideia de educação integral, mas que não se pensa só para dentro das escolas, que se pensa em articulação com os territórios e com inúmeras experiências que nós temos nas nossas comunidades. É preciso fortalecer também a cultura. Nós temos centros culturais, nós temos pontos de cultura e a gente precisa cada vez mais atuar em rede. Eu acho que a escola, ela pode ser, sim, esse centro propagador, pujante, que nos ajuda a fazer essa articulação no território. Isso não existe somente a partir da política pública. Mas quando a gente tem o gestor público atuando, criando mecanismos de financiamento, consegue ter um alcance muito maior. Eu acredito muito na participação popular. Penso que tivemos experiências pelo Brasil que foram importantes, como o orçamento participativo, que é abrir o orçamento com as comunidades. Isso tudo pra mim é um letramento político. Como é que escolas, centros culturais, os Centros de referência de Assistência Social, espaços populares, bibliotecas comunitárias, bibliotecas populares, como a gente constrói uma rede em torno dessa agenda da educação, da participação popular, da defesa da democracia. É assim que eu enxergo. A gente tem de olhar para os territórios, compreender o cenário e trazer pra perto.

Olhando o mapa da votação, entre os jovens, os negros e as mulheres, a maioria não estava com o projeto do fascismo. Agora há um desafio: trazer muito mais as novas gerações para os ideais de fraternidade e justiça social. Como você imagina isso, contra toda essa máquina de ódio?

A minha tese é que a gente cada vez mais precisa estar presente nos territórios brasileiros. Eu acho que é estar próximo das pessoas, e nós vimos um pouco acontecer esse movimento. A gente viu o que foi o segundo turno. Foi muito bacana ver as pessoas com iniciativas próprias, sem esperar alguém dizer. Eu mesmo vou me organizar, eu vou colocar a minha banquinha aqui na praça, eu vou para a rua. E aí assim é a eleição do presidente Lula. Mas é muito mais que eleger o Lula, é a defesa de um projeto de sociedade, da democracia e dos direitos humanos, da pluralidade. Eu não acredito que isso possa ser feito usando num discurso pairando acima das pessoas. Eu acho que isso só é possível na conexão, e é isso, a gente tem que se conectar com os nossos territórios. Eu costumo dizer: você apoia a escola pública? Então, apoie a escola pública de seu bairro, participe das reuniões das comissões locais, queira saber o que acontece na associação de bairro onde você mora. Eu acho que é fundamental as pessoas terem uma participação, compreender a ação política a partir do seu território. Eu trabalhei muitos anos da educação indígena e aqui em Minas o pessoal sempre falando:é um pé na aldeia, um pé no mundo. A gente não faz democracia se não tiver os pés na aldeia e os pés no mundo.

As favelas, as periferias, como espaços de resistência desde sempre, tendem a ser o novo foco da transformação, da revolução, diante de um cansaço, entre aspas, nas estruturas mais tradicionais, como os sindicatos?

A agenda desse projeto que eu falei, Seja Democracia, está muito focada nessa ideia da periferia e da periferia como potência. As grandes ideias, as grandes revoluções que estão se tratando no Brasil, no sentido de uma nova sociabilidade, me parece que isso é muito forte nesses espaços, nessas comunidades. E a gente precisa entender mais. Que políticas públicas, que construção é possível fazer com esses setores, com essa presença?

Em relação aos sindicatos, é preciso pensar. Se a gente voltar à origem dos sindicatos, ela é bem distinta do que se tem como sindicato hoje, o que a gente chama de sindicato forte. São os sindicatos das grandes corporações, que já estão estabelecidos. Mas o início dos sindicatos se deu exatamente na total ausência de qualquer reconhecimento de direito dos trabalhadores. Ou seja, foi na total precariedade, na total opressão aos trabalhadores que se instituíram sindicatos e o sindicalismo cresceu. Eu penso que hoje, com o avanço dessa desregulamentação do trabalho, é preciso inventar novas formas de organização dos trabalhadores.

Se você tiver a oportunidade de encontrar o Lula ou o próximo, ou próxima, ministro ou ministra da Educação, o que você reivindicaria como prioridade?

Eu estou super a fim de encontrar (risos). Eu poderia fazer um pedido só: vamos retomar o Plano Nacional de Educação. Porque isso aí já é assunto para quatro anos. Minimamente, como é que a gente retoma o PNE? Que são propostas construídas pelo conjunto das comunidades escolares no Brasil, a partir das conferências municipais, estaduais e da Conferência Nacional de Educação. Eu acho que está ali, né? Agora, temos uma série de dificuldades porque foi desmontado. Então, eu pediria para ele ter muito compromisso a partir de uma agenda que já foi estabelecida e não foi estabelecida por mim, mas pelo conjunto de trabalhadores, estudantes, profissionais da educação, enfim, com a participação do próprio Congresso Nacional, que é a agenda do Plano Nacional de Educação. A gente não tem muito o que inventar.

Em uma entrevista, você falava de um projeto que havia conhecido no Complexo da Maré, que é favela 3D – Direitos, Diversidade, Disposição. Isso tem a ver com o projeto que você vai apresentar no seu mandato de deputada estadual em Minas?

Favela 3D era uma iniciativa do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, na Favela da Maré, que era um pouco esse debate: como pensar políticas públicas para as nossas periferias e para as favelas? Saindo dessa perspectiva, dessa visão reforçada pelo Bolsonaro, que favela só tem bandido. Mas reconhecendo a potencialidade, as iniciativas existentes nessas comunidades. Basta a gente ver o que foi a pandemia. Se não fosse a articulação das próprias comunidades, a tragédia no Brasil teria sido muito maior. Então, vimos ali a solidariedade, sociabilidade e várias iniciativas dessas comunidades em sua auto-organização. Parece que existe aí uma potência muito grande. Para meu mandato na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, vamos fazer isso coletivamente. Minha grande vitória, meu grande projeto, não será um projeto de lei, mas interromper a ação do governo Zema, que quer entregar a gestão das escolas públicas para organizações sociais de iniciativa privada em Minas. Então, na verdade, a minha pauta é de resistência contra a privatização da rede pública escolar de Minas Gerais. A gente precisa muito trabalhar marcos normativos, sem sombra de dúvida. Mas no Brasil, hoje, também se trata de resistir e fazer prevalecer o que nós bravamente conquistamos lá na Constituição de 1988, não retroceder desse direito. Dinheiro público para a escola pública. Escola pública como direito e como dever do Estado.