Embora o acesso aos cargos de representação política seja um fator decisivo para a participação, negociação e tomada de decisão nas democracias contemporâneas, lamentavelmente, no Brasil, a maioria da população não se vê espelhada de forma minimamente proporcional nos espaços de poder político: mulheres e pessoas negras são a base do eleitorado, mas a minoria das pessoas eleitas.

*GABRIELA SHIZUE SOARES DE ARAUJO E MARINA DE MELLO GAMA

O número de mulheres eleitas em 2022, ano em que a conquista do voto feminino completou 90 anos, teve um tímido avanço na disputa para a Câmara dos Deputados e para as Assembleias Estaduais: foram eleitas 91 deputadas federais mulheres – correspondentes a 17,7% da totalidade das 513 cadeiras disponíveis – e 190 deputadas estaduais mulheres, espalhadas entre todos os Estados, atingindo um total aproximado de 18% de deputados estaduais e distritais eleitos em todo país.

Em relação ao comando dos Executivos Estaduais, dentre as 27 unidades federativas do país, as Eleições de 2022 culminaram apenas com duas mulheres eleitas governadoras: Fátima Bezerra (PT), reeleita para o governo do Estado do Rio Grande do Norte, e Raquel Lyra (PSDB), que assumirá o governo do Estado do Pernambuco.

Nas eleições anteriores, em 2018, haviam sido 77 deputadas federais e 163 deputadas estaduais e distritais eleitas (uma média aproximada de 15% das vagas nos parlamentos nos dois casos), e apenas uma governadora (Fátima Bezerra/PT).

Por outro lado, no Senado Federal houve um retrocesso considerável: se nenhuma suplente assumir, das 81 cadeiras disponíveis, apenas dez serão ocupadas por mulheres senadoras a partir de 2023, duas a menos que na legislatura anterior.

Malgrado ainda distante do ideal perseguido pela ONU e pelos organismos internacionais de direitos humanos de paridade de gênero na política, e até mesmo muito abaixo da média global de participação feminina nas casas legislativas (26,4%), o Brasil tem sido palco, nos últimos anos, de maior pressão da opinião pública, da mídia e da sociedade civil no que se refere às questões de gênero, de enfrentamento ao machismo, ao racismo e a outras formas de discriminação na política.

Muito em função dessa cobrança da sociedade, além das iniciativas contundentes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF), em decisões paradigmáticas que impactaram consideravelmente no incremento das cotas de gênero previamente existentes, a legislação também trouxe alguns avanços nos últimos anos, na tentativa de incentivar a participação das consideradas minorias políticas e melhorar a efetivação da representação de gênero e raça nas bancadas.

Vale dizer que a lei já prevê há 25 anos reserva de 30% de candidaturas para o Poder Legislativo para as mulheres, que decisões jurisprudenciais sedimentaram cotas proporcionais de financiamento público para mulheres e pessoas negras, além de reserva de espaço em propaganda eleitoral no rádio e na TV, que há legislação estipulando que as secretarias de mulheres de partidos deverão receber 5% de todo o Fundo Partidário ordinariamente para investir em programas de difusão e participação feminina na política, mas ainda assim houve pouco avanço para as mulheres de fato ocuparem os espaços eletivos.

Nesse contexto, digna de nota é a Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021, que estabeleceu normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, definindo esta como “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher” (artigo 3º). E ainda considera como atos de violência política contra a mulher “qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício dos seus direitos e das suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo”.

Afinal, um dos principais fatores prejudiciais à eleição de mulheres, com efeito, é a violência política de gênero, muitas vezes arraigada nas próprias instituições, como os partidos políticos e as Casas Legislativas. Comportamentos que visam desestimular, impedir ou restringir o acesso das mulheres no espaço da política institucional são comumente protagonizados justamente por seus próprios pares, uma vez que os homens ainda são a esmagadora maioria tanto nas direções partidárias como no parlamento.

Essa qualidade de violência é grave porque ocorre em qualquer espectro ideológico-partidário e pode ser física, econômica, psicológica ou simbólica. Como por exemplo, agressões e ameaças contra a integridade física e vida da mulher; ofensas à sua reputação e honra, incluindo a desqualificação, os questionamentos sobre sua aparência, a violação de sua vida privada, o discurso de ódio e a disseminação de fake news voltadas a estereótipos e padrões comportamentais de gênero.

Tivemos exemplos notórios no passado, como as agressões do então deputado Jair Bolsonaro contra a deputada Maria do Rosário, em que ele afirmou diante das câmeras que não a estupraria por ser muito feia; o feminicídio político da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro; e recentemente, na maior Assembleia Legislativa das Américas, a do Estado de São Paulo, a deputada estadual Isa Penna teve a lateral de seus seios apalpados por um colega, em meio a uma sessão no Plenário.

São casos midiáticos que ganharam maior visibilidade, mas que expressam o que mulheres que buscam um espaço na política vivem frequentemente em todo o país, nas Câmaras Municipais, nas instituições, e especialmente nos partidos políticos: basta notar o quanto as candidaturas laranjas ou fictícias de mulheres ou abandono político são práticas ainda comuns, não obstante todo o enfrentamento da Justiça Eleitoral. E as mulheres negras, as mulheres trans, as mulheres LGBTQIA+, em maior intensidade, considerando a interseccionalidade das opressões vivenciadas em uma sociedade ainda impregnada de preconceito de classe, gênero, raça e sexualidade.

Embora esse fenômeno de violência política tenha crescido de forma geral nas eleições de 2022, fazendo homens e mulheres como vítimas, realizamos aqui o recorte de gênero, para destacar que o impacto para as mulheres que concorrem ao Executivo e Legislativo é tão mais evidente, que nem todos os esforços legislativos e jurisprudenciais até aqui foram suficientes para avançar em termos de representatividade política feminina nos espaços de poder.

A partir de 2023, contudo, a recentíssima Emenda Constitucional nº 111/2021 poderá ter algum efeito no combate à violência política de gênero, pelo menos dentro dos partidos, na medida em que estabeleceu, para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), que os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros para a Câmara dos Deputados nas eleições realizadas de 2022 a 2030 serão contados em dobro.

Trata-se de uma política afirmativa que reverte em financiamento público para os partidos e cujos efeitos práticos serão sentidos a partir de 2023, o que pode estimular os dirigentes partidários a investirem na formação e na eleição de mais mulheres nas próximas eleições.

Assim, os mecanismos já consagrados na legislação há mais de duas décadas têm cumprido importante papel, mas as políticas afirmativas precisam ser aperfeiçoadas e ampliadas para a garantia do alcance da participação de mulheres de maneira paritária, o que implica em vontade política e da sociedade, e talvez em medidas mais concretas, como a reserva de assentos no parlamento, por exemplo, não apenas de candidaturas.

Desigualdade e discriminação, vale dizer, são expressões da violência de gênero que atingem as mulheres sempre que ousam sair de padrões sociais e comportamenais de subalternidade que lhes foram historicamente imputados pelo patriarcado e pela dominação masculina.

O exercício igualitário da cidadania passa necessariamente pela existência de condições efetivas que assegurem a inclusão de candidaturas, a atuação das eleitas e a segurança das mulheres que se dispõem a participar ativamente da arena política. Neste momento histórico, a participação no espaço político institucional e na construção de políticas públicas é
urgente e essencial.

Referências:

ARAUJO, Gabriela Shizue Soares de. MULHERES NA POLÍTICA BRASILEIRA: Desafios rumo à democracia paritária participativa. Arraes Editores. São Paulo, 2022.

MELLO, Luisa e OIKAWA, Erika. Estereótipos de gênero em narrativas falsas: uma análise das fake news envolvendo Manuela D’ávila. Disponível aqui

PANKE, Luciana. Campanhas eleitorais para mulheres: desafios e tendências. Curitiba: UFPR, p. 67)

O Globo. ‘Da forma como está posta, a democracia é misógina’, diz autora de livro sobre mulheres na política.Disponível aqui

Revista Consultor Jurídico (CONJUR). O combate à violência política de gênero como fortalecimento da democracia. GAMA, Marina de Mello ARIS, Thalita Abdala. Disponível aqui

* GABRIELA SHIZUE SOARES DE ARAUJO É MESTRE E DOUTORA EM DIREITO CONSTITUCIONAL PELA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO. PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO. MEMBRO DA COMISSÃO NACIONAL DE DIREITO ELEITORAL DO CONSELHO FEDERAL DA OAB. COORDENADORA DO OBSERVATÓRIO ELEITORAL DA ASOCIACION AMERICANA DE JURISTAS – RAMA BRASIL.ADVOGADA.

MRINA DE MELLO GAMA É MESTRE EM DIREITO PÚBLICO PELA UNIVERSIDADE DE SALAMANCA (ESPANHA). MEMBRO DO OBSERVATÓRIO ELEITORAL DA OAB/SP. ADVOGADA E ATUALMENTE SECRETÁRIA DE ASSUNTOS JURÍDICOS E DA JUSTIÇA DA PREFEITURA DE COTIA/SP.