A frente da Associação Cultural Afrobrasileira Pai Luiz de Aruanda, mãe Bia de Pombo Gira e pai Ricardo de Xangô levam conforto espiritual e segurança alimentar à comunidade
Localizada no bairro da Barra, em Fortaleza (CE), a Associação Cultural Afro-Brasileira Pai Luiz de Aruanda surgiu em 2009 para valorizar a cultura local e levar à comunidade conhecimentos sobre a importância da alimentação adequada para a preservação da saúde.
Fundada por Sirleide Rodrigues da Silva, conhecida como mãe Bia, e Paulo Ricardo Muniz da Costa, conhecido como pai Ricardo, a casa utiliza ervas tradicionais para a cura e prevenção de doenças, por meio de um Centro de Umbanda existente há mais de 40 anos. Em outra frente, a associação desenvolve projetos de segurança alimentar que leva conhecimento à população. Ao mesmo tempo, distribui os alimentos recebidos em doações.
Após uma cura que foi realizada no centro de umbanda por um Preto Velho, surgiu a ideia de montar a associação para levar outros pais e mães de santo e praticantes da umbanda para a tradicional festa de Iemanjá, na Praia do Futuro. Em sua primeira ação, há sete anos, se reuniram pessoas da comunidade que já não participavam mais do evento, em um movimento de resgate histórico e valorização da cultura local, que deu visibilidade à instituição.
“Começamos a fazer seminários sobre saúde, educação, segurança alimentar e intolerância religiosa e colocamos as fotos da festa no Museu do Estado do Ceará. O trabalho foi divulgado em outros estados do Brasil, envolvendo grupos de São Paulo, do Piauí e do Maranhão, e ganhamos até uma medalha de honra ao mérito”, relembra Pai Ricardo.
A Associação participa há três anos do evento “Povos do Mar”, realizado pelo Sesc, que reúne mais de cinco mil pessoas. Nele estão todos os segmentos de cultura nativa do Ceará: pescadores, índios e ciganos. O ingresso no Sesc é considerado pelos fundadores da associação um marco na quebra de preconceitos que ainda persistem em relação às religiões de matriz africana.
“No início, os organizadores não queriam a nossa presença. Chegaram a dizer que o evento seria ‘demonizado’, mas mostramos, com as palestras que fazíamos lá, que os nossos saberes representam uma pluralidade cultural, pois sabemos trabalhar com o índio, o cigano, o boiadeiro, com Oxóssi, com a mata, mostramos a nossa sabedoria ancestral”, afirma Pai Ricardo.
Acolhimento
A cultura de acolhimento na assistência a famílias vítimas de enchentes, da fome e da falta de moradia, que sempre foi praticada no centro de umbanda, desdobrou-se em vários projetos da associação. “As pessoas ficam muito felizes quando recebem um alimento, pois são muito pobres. Outro dia distribuímos 100 chesters, no final do ano, e foi muito emocionante”, conta Pai Ricardo.
Mãe Bia recorda que em 1996 houve uma chuva muito grande, que juntou o mar com o Rio Ceará. “A única casa alta que havia aqui era a nossa. Eu abri a minha porta, recebi velho, criança, gente de todo tipo. E quando as águas baixaram chamamos as famílias deles. Depois disso, a gente começou a dar madeiras para fazerem barracas, tijolos, telhas, cimento. Ajudamos a todos que tínhamos condições de ajudar. Já tivemos mais de dez pessoas morando na nossa casa, inclusive moradores de rua, mas hoje estamos só com a família e o terreiro, que oferece ajuda espiritual aos filhos de santo”, relata.
Até a pandemia, a associação desenvolvia o projeto “Mais Nutrição”, que utiliza mercadorias doadas pelos comerciantes do Ceasa para fazer atividades com adolescentes e idosos da comunidade. Porém, a mudança de cultura alimentar se revela uma tarefa muito árdua e cheia de contradições. “Uma vez reunimos trinta crianças aqui para falar sobre segurança alimentar, explicamos a importância da higienização e da qualidade do alimento, o perigo dos agrotóxicos. Servimos bolo de banana feito aqui mesmo e suco de tomate, mas os meninos queriam mesmo refrigerante e bolo de chocolate”, relata Pai Ricardo. “Por isso temos que lutar muito pela segurança alimentar. Pois o país capitalista quer envenenar e vender coisas desde que a pessoa nasce. A última preocupação é a saúde”, diz ele.
Outros projetos são o Sesc Mesa Brasil, no qual a Associação também recebe o alimento para realizar atividades com a comunidade, e o PA Leite, que doa um copo de leite para cada criança. Contudo, com a chegada da pandemia passou a distribuir os alimentos recebidos dos parceiros, que são totalmente aproveitados, inclusive em adubos para as plantas que abastecem os rituais do terreiro.
Intolerância e perspectivas
Mãe de santo há 35 anos, Bia acredita que a intolerância sempre existiu e está no coração das pessoas. “Eu visto minhas roupas, vou pra pizzaria com minhas saias grandes, meu torço na cabeça e espero ser respeitada. Claro que se fala, mas só por trás, porque se falar na minha frente eu serei obrigada a me defender. Nossa organização faz um trabalho muito grande, por isso nos respeitam”, diz.
Pai Ricardo reconhece que a intolerância existe desde a escravidão, e que, infelizmente, ainda há muito preconceito relacionado ao candomblé e à umbanda. “A associação quebrou em parte muitos preconceitos, porque nós procuramos primeiro trabalhar com a comunidade, para que ela entrasse na nossa casa e visse a importância das nossas ações na questão da alimentação e da espiritualidade. Porque as pessoas estão passando por momentos muito difíceis e necessitam de ajuda.
Quebramos preconceitos mostrando quem somos e o que fazemos”, afirma. Ele diz ainda que hoje a umbanda está nos conselhos de Igualdade Racial, de Segurança Alimentar, de Saúde. “Apesar de ter havido um retrocesso muito grande no governo Bolsonaro, seguimos quebrando preconceitos com aquilo que nós fazemos, seja dentro ou fora do terreiro.”
Para Mãe Bia, está difícil acreditar e confiar. “Só sei de uma coisa, minha
filha, todo dia a gente muda de vida. Cada dia uma pessoa entra no nosso círculo de oração, de levante, e mais tarde se pode mudar de novo. No terreiro ninguém perde a fé, nós precisamos voltar a acreditar nas pessoas.
Pai Ricardo conclui dizendo que a mudança deve começar pela gente. “A união, a fé nos nossos guias ajuda, mas ninguém pode mudar o mundo de não for a partir de si mesmo.”