POR MARIA JOSÉ DE SOUZA SILVA, ALINE MARIA DA SILVA E ANGELA MARIA DOS SANTOS SCHEPP

…“as mulheres negras ocupam um espaço vazio, um espaço que se sobrepõe às margens da raça e do gênero, o chamado terceiro espaço, um tipo de vácuo de apagamento e contradição em um mundo polarizado em negros de um lado e mulheres de outro”. Djamila Ribeiro 1

A história da mulher negra em Mirandiba se torna semelhante à da própria formação do povo brasileiro. Com recorte para o Nordeste, está relacionada a migração, escravidão, opressão e liberdade. Não se pode dizer que está nesta mesma ordem, mas acreditamos que muitos outros fatores poderiam ser trazidos para falar da mulher negra. Sua essencialidade nasce após sair dos engenhos de cana-de-açúcar na
região da zona canavieira de Pernambuco. Nunca sentiu o sentido de liberdade, até chegar aos sertões, mais exatamente ao interior do interior de Mirandiba (PE). Ao chegar a terras distantes, trazia na sua bagagem a sabedoria ancestral: rezadeira, parteira, semeadora, colhedora e artesã.

Nossas cidades foram erguidas pela sua força de trabalho mal-remunerado. Um dos maiores feitos na historia da Negra Mirandiba foi a liderança de uma das mulheres mais fortes do nosso sertão, a Negra Mirandiba, que, como muitos negros, teve expropriados seu nome, sua história, seu lugar, sua família, passando assim a ser conhecida como A Mulher Negra Mirandiba:

“Aqui pertencia a uma tribo de caboclos. Em 1815 tinha uma cabocla véia que mandava em Queixada – isto está nos livros de tombo, no cartório de Flores – o nome dela era Mirandiba. Isto foi no tempo dos Umãs. Umã era o caboclo velho que mandava na serra dos Umã. No Brejo do Gama era o chefe Gama. Isso antes de tudo, antes de ser fazenda. (VITORINO, 02 de setembro de 2009)” 2

É tão pouco o que temos escrito sobre ela, mas sabemos que essa mulher era uma das maiores lideranças dos povos negros que aqui chegavam, organizada em gestão de pessoas e organização territorial. Muitas pessoas adentraram os sertões, chegando até ela, eram acolhidas e se aglomeravam aos pés da serra dos Umãs, formando assim uma legião de população negra, essa expressão é retrato da nossa realidade atual, na qual, a cada dez pessoas, nove são negras. Esses povos moravam em locais distantes, de difícil acesso e que muitas vezes só eles conseguiam sabiam o caminho para chegar.

Nessas grandes viagens sertão adentro, em locais isolados e bem distantes das aglomerações, caminharam por mais de 550 km e começaram a erguer um grande povoado com moradias de taipa, cobertas com palha de catolé. Segundo os poucos registos, ela reunia todos para a tomada das maiores decisões da vida desses povos coletivamente e assim se denominavam os primeiros conceitos de Quilombo.

Nessa jornada, esses povos nunca mais na suas vidas seriam escravos novamente, pois o sentido de liberdade já estava enraizado na alma desse povo. Mirandiba Também é uma cidade do sertão pernambucano que traz em suas origens um número expressivo de população negra, tanto que muitas organizações sociais a denominam de “cidade quilombola”, por estar cercada de comunidades auto-reconhecidas e de posse da certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares.

Nosso povo carrega na sua essência a liberdade da nossa ancestral Mulher Negra Mirandiba, sua história e sua memória estão enraizadas nesse território, como uma gigantesca árvore da vida do povo negro de Mirandiba. Sua genealogia de mulher fez história? Claro que sim, estamos aqui nós mulheres Mirandibenses, e as mulheres negras que lutam por dias melhores desde a chegada dos nossos ancestrais.

Sua vida nos remete à sabedoria de conhecer a todos como seus iguais, amar ao outro como a si mesmo, zelar e preservar o que se tem como conquistas a cada dia: imagino as festas, à noite, para contar história, as mortes dos anciãos, o nascimento de crianças que anunciava a boa nova, os rituais dos festejos, as danças, as comidas, as canções de ninar. Se esse povo tivesse sido estudado, hoje teríamos muitos exemplares de sua cultura, suas relações sociais forjadas em outro mundo e em outra vida em um país diferente do seu originário.

Durante a escrita dessa matéria poderiam dizer: quando que elas vão falar de educação? Ora, ora. Tudo isso que falamos acima é educação, mas algumas pessoas acham que educação é simplesmente falar de professor, escola ou aluno? Não! Falar das populações do campo, suas vivências e suas relações sociais, também é falar sobre educar. Para tanto, devo dizer que naquela época a escola não se tinha, direito de estudar também não. Alunos, muitos, e ainda temos, pois até hoje há uma população que está envelhecendo e que ainda não é alfabetizada. Claro, grande parte dela são as mulheres, que forjaram no trabalho da roça, desde seus antepassados, e ainda permanecem culturalmente na mesma atividade. Muitas até iniciaram os estudos e depois pararam por priorizarem seus filhos, casamentos, trabalho na roça.

Quando pensamos em educação após a falsa abolição, afirmamos que a educação não foi pensada de forma inclusiva para a população negra e muito menos para as mulheres negras. A abolição aconteceu de forma excludente que marginalizou toda essa população pela sua “cor da pele”. Muitas são as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na luta pela sua liberdade e pela garantia de direitos.

Sabemos da contribuição expressiva das mulheres em vários aspectos: como os aspectos econômicos, sociais, culturais e de desenvolvimento humano; apesar de a mulher ainda não ocupar espaços expressivos de “poder de fala” junto à sociedade, é importante dizer que algumas conquistas desses direitos das mulheres se concretizaram a partir das reivindicações feitas ainda no século 18 e início do século 19. Contudo, quando contextualizamos essas conquistas para as mulheres negras, a realidade permanece recheada de desigualdades e descaso aos direitos básicos como: saúde, educação, habitação, emprego e renda. Segundo Carolina de Jesus “Quem escreve pode passar fome de comida, mas tem o pão da sabedoria e pode gritar com suas palavras” 3 .

A história da educação no município ainda é vista como “Escola de coronéis” 4 ., local em que estudavam apenas brancos e alguns negros oriundos das cozinhas das casas grandes. Vale salientar que a maioria dessas profissionais eram professoras sem formação acadêmica para o cargo. Nos dias atuais, as mulheres vêm se destacando, ocupando vários espaços na cidade, mesmo que, timidamente, assumindo cargos nos sindicatos, associações, em cursos de mestrado e doutorado, advogadas, assistentes sociais, pedagogas, historiadoras, geógrafas, técnicas, enfermeiras, psicopedagogas e médicas. Para tanto, a pandemia só agravou uma desigualdade, que é histórica, a pandemia só potencializou as desigualdades: bem como também o machismo e o racismo estrutural. Pen- sar sobre a mulher negra e o impacto da Covid-19 é necessariamente pensar na própria estrutura do Brasil e como a mulher negra vem sendo posta nesse contexto. Qual é lugar que lhe é dado dentro desse processo histórico?

Portanto, nesse contexto, a responsabilidade de educar sempre esteve posta como um dever da mulher, educar nas atividades domésticas, na organização de material didático e tarefas escolas. Além da situação agravante da pouca escolaridade, na qual essas mulheres, na maioria das vezes, não têm conhecimento cientifico, e, muitas vezes, reproduziram um discurso machista de que “mulher não precisa ir à escola”!

Dentro dos quilombos, a educação respeita a forma de organização social, as relações sociais, as lideranças, a religião, a cultura, suas memórias ancestrais, sua medicina natural. Assim se define a territorialidade.

Nossos idosos são a memória viva dos nossos ancestrais, nosso maior patrimônio cultural e têm um papel importantíssimo nessa tarefa de educar o seu povo. E que a escola formal deve respeitar esses conhecimentos milenares e valorizar de forma efetiva e participativa como protagonismo do povo negro. Além de terem menos espaço no mercado de trabalho, as mulheres enfrentam ainda outro problema: a dupla jornada. Algumas mulheres que conseguiram furar a ordem social no seu contexto, e essas conseguiram estudar e criar vínculo com a hegemonia política e ser agregada na ordem social, mas ainda são menosprezadas pelo próprio sistema de organização social. Essas mulheres junto com as outras criam estratégias de garantia de direitos.

Atualmente temos projetos com a Casa da Mulher, de quintais produtivos e construção de fogões de lenha; também construímos junto à Caixa/PNHR em torno de 150 moradias populares e, ainda no final de 2020, elaboramos e aprovamos junto à Câmara dos Vereadores um dos maiores dos passos na garantia da Educação Escola Quilombola, que são as Diretrizes Curriculares da Educação Escolar Quilombola de Mirandiba. Está provado que cada mulher carrega, em si, sua ancestralidade, com os valores da liberdade de um povo.

Notas

  1. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 112 páginas, 2017. (Coleção: Feminismos Plurais)
  2. II Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico | I Encontro Nacional de Geografia Histórica, 05 a 10 de novembro
    de 2012; Título: História Territorial e Identidade Étnica em Mirandiba / PE, Tomas Paoliello Pacheco de Oliveira; Doutorando do
    Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ.
  3. _. Quarto de despejo – Diário de uma favelada. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1990.
  4. escola de coronéis: são estabelecimentos que eram construídos nas fazendas para as filhas desses senhores serem as professorinhas.

MARIA JOSÉ DE SOUZA SILVA É NATURAL DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE FEIJÃO E POSSE (PE). FORMADA EM PEDAGOGIA E PÓS-GRADUANDA EM PSICOPEDAGOGIA COM ÊNFASE EM EDUCAÇÃO ESPECIAL PELA FACULDADE DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE PERNAMBUCO (FACESP)

ALINE MARIA DA SILVA É NATURAL DA COMUNIDADE QUILOMBOLA PEDRA DO AMOLAR, MIRANDIBA (PE), GRADUADA EM SERVIÇO SOCIAL, PÓS-GRADUADA EM POLÍTICAS PÚBLICAS COM ÊNFASE EM SAÚDE/AEG CONSULTORIA; CONTRIBUIU NA ELABORAÇÃO DAS DIRETRIZES CURRICULARES DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA DE MIRANDIBA (PE).

ANGELA MARIA DOS SANTOS SCHEPP É NATURAL DA COMUNIDADE QUILOMBOLA PAU DE
LEITE, MIRANDIBA (PE). FORMADA EM LICENCIATURA EM PEDAGOGIA COM ESPECIALIZAÇÃO EM HISTORIA E GEOGRAFIA PELA UNIVERSIDADE DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.