Por que a união do samba ao hip hop incomoda tanta gente
MC Di Função e Tadeu Kaçula analisam o episódio da repressão à Vai-Vai, uma escola quase centenária que mostrou a resistência de duas culturas pretas irmãs em São Paulo
Rose Silva
A escola de samba Vai-Vai, que apresentou no carnaval de 2024 o enredo “Capítulo 4, Versículo 3 – Da Rua e do Povo, o Hip Hop: Um Manifesto Paulistano”, sofreu uma série de retaliações após o marcante desfile que emocionou o público. O espetáculo mostrou a união dos dois ícones da cultura popular – o samba e o hip hop – que representam historicamente a resistência da cultura negra no Brasil.
O desfile desagradou policiais e políticos de direita, que exigiram um pedido de desculpas e pediram o corte de verbas públicas da escola. O motivo foi que uma ala retratou a Tropa de Choque da Polícia Militar (PM) com traços demoníacos, fazendo alusão à repressão policial em alta na década de 1990. Logo depois do ocorrido, integrantes da escola relataram que sofreram repressão da PM e tiveram a camisa da escola que vestiam rasgada.
MC Di Função, integrante da Vai-Vai. Fotos de Sérgio Silva
MC Di Função, que faz a comunicação política da Vai-Vai, explica que o carro alegórico que despertou a ira da polícia fazia uma alusão ao massacre do Carandiru, mas não só isso. A escola mostrou um recorte temporal da história do hip hop em São Paulo, desde o início do movimento, no final dos anos 1970, até os anos 2000.
Segundo ele, a relação com o hip hip vem de 30 anos atrás, e a escola sempre teve grande carinho pelo movimento. “A Vai-Vai é uma escola quilombola, de raízes de matriz africana fortíssimas, fundada no candomblé, é a única de São Paulo nas quais o presidente e o vice-presidente são pretos. Portanto, é uma escola que se autoafirma dentro da diáspora africana. Está no Quilombo Saracura, no meio dos arranha-céus, há quase 100 anos e, como protagonista de sua história, sempre se posicionou. Não foi nenhuma novidade, mas sim uma união de culturas irmãs, pretas, periféricas, diaspóricas que decidiram representar-se uma à outra”, afirma ele.
Para o MC, é essa tradição da Vai-Vai que incomoda as pessoas. “Quando vêem um monte de pretos subindo a Av. Nove de Julho, entrando no busão, indo pra lá, digamos assim, a Vai-Vai deixa o preto mais imponente, eleva sua autoestima. A gente ama pertencer ao quilombo. Essa repressão acontece porque nós pretos somos alvos constantes da sociedade, estamos no centro de São Paulo, disputando a territorialidade com a colônia italiana. Dependendo de onde estiveremos nos aquilombando, a repressão é diferente”, analisa.
Di Função acredita que o grande ‘lance’ do desfile foi trazer as pessoas para a reflexão sobre o extermínio da juventude preta e pobre, que sempre foi uma proposta do hip hop. “A letalidade da polícia e das forças de segurança tem aumentado em todos os estados. Então, o que foi colocado na avenida é um episódio pontual, mas a crítica vem há décadas. O hip hop sempre coloca o dedo na ferida, fala do extermínio de corpos pretos, do encarceramento, da necropolítica, do racismo ambiental, não para atacar, mas para trazer as pessoas à reflexão”, diz.
O sambista e sociólogo Tadeu Augusto Matheus, o T-Kaçula, doutorando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (USP), faz uma análise histórica da reação da polícia ao desfile da Vai-Vai. “Desde a colônia, todas as manifestações afros foram reprimidas, e o que a gente tem ainda, na realidade, é que quem está no poder político são herdeiros desses colonizadores. Eles aprenderam com os seus antepassados que é importante reprimir para que não percam o protagonismo do poder político e econômico no Brasil. Outro aspecto é compreender que nesse mesmo Estado, que se apresenta como democrático e que às vezes versa sobre a própria Constituição brasileira, não temos liberdade de expressão. E um terceiro aspecto é que quando você tem esses irmãos dialogando de perto, ou seja, o samba e o hip hop, junta forças históricas para amplificar a denúncia contra as mazelas colocadas pelo Estado repressor sobre corpos pretos, isso causa medo em quem está na gestão fazendo a repressão, porque são vozes que chegam às massas”, avalia.
Ele diz não há nada de contraditório quando a Vai-Vai traz esse tema para debater e denuncia o que nós vivemos hoje em São Paulo, é uma denúncia para a grande massa e não tem como maquiar o genocídio que aconteceu no Carandiru, tanto quanto esse que está em curso aqui em São Paulo: “é a polícia mais violenta, mais letal que a gente tem no Brasil. Então, há uma grande mobilização desses brancos que estão no poder, porque eles sabem que quando a verdade vem à tona, eles são colocados em uma visibilidade muito ruim para a própria imagem”.
Kaçula lembra que a Vai-ai também está passando por um processo de expropriação e sendo expulsa do Bixiga pelo projeto de gentrificação. A quadra foi retirada de lá pelo governo do Estado para instalar uma estação de metrô. “Nós sabemos que há também um processo todo de higienização étnica. Eu uso muito esse termo no meu livro Casa Verde, Uma Pequena África Paulistana, porque a expulsão da população preta do centro da cidade de São Paulo, dos territórios historicamente conhecidos como territórios negros, também é programada.