Caderno Chacinas e Policiamento: os casos de Belém e do Complexo do Salgueiro aprofunda informações do Painel de Dados Periferias, com foco nesses dois casos emblemáticos

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A pesquisa Chacinas e a politização das mortes no Brasil, realizada desde 2018 pelo Projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, identificou 786 chacinas reportadas em jornais do Brasil de 2011 a 2020. Entre eles, 111 casos são motivados por policiamento, envolvendo agentes dentro e fora de serviço. Também foram mapeados 90 casos entre outras motivações nos quais há suspeita da participação policial.

As armas de fogo aparecem como principal meio de agressão utilizado em 89% dos casos de chacinas por policiamento, seja fora ou dentro de serviço, e ainda nos casos com suspeitas de participação policial.

A base de dados da pesquisa são notícias de jornais em todos os estados do Brasil, com exceção do Amapá. Os pesquisadores cobriram um período de dez anos (2011-2020) e se debruçaram na identificação dos principais agentes sociais e instituições envolvidas nas chacinas; na repercussão que tiveram; no perfil das pessoas afetadas; e nos encaminhamentos jurídicos. O mapeamento está disponível para consulta no Painel de Dados das Periferias1.

O caderno Chacinas e Policiamento: os casos de Belém e do Complexo do Salgueiro, publicado pela Fundação Perseu Abramo, é um desdobramento da segunda fase da pesquisa, realizada em parceria com a Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec). A publicação aprofunda informações do Painel de Dados, com foco nesses dois casos emblemáticos, por meio de diálogos com agentes do campo jurídico, jornalistas, políticos, especialistas que atuaram nos casos, movimentos sociais, moradores dos territórios afetados e outros envolvidos, como sobreviventes e familiares da vítimas.

O sociólogo Paulo Ramos, coordenador do Reconexão Periferias, afirma que a pesquisa mostra um lado irracional do funcionamento do sistema segurança pública ao expor a quantidade vidas perdidas no intuito de manter a ordem. “Além disso, existe um efeito muito perigoso para os policiais, que são colocados em risco quando atuam nestas operações, e um efeito de desestruturar a vida social das comunidades atingidas pela ação das polícias”, diz.

O coordenador do Cesec, Pablo Nunes, acredita que discutir sobre as chacinas cometidas por policiais é tarefa fundamental para todos os que querem construir uma verdadeira democracia. “O Brasil convive com um número alarmante de mortes violentas registradas todos os anos. O mais grave é que boa parte dessas mortes é cometida por policiais. Em alguns lugares, a polícia é responsável por mais de 20% das mortes violentas, com um número cada vez maior de operações”.

Segundo a socióloga Sofia Toledo, coordenadora da pesquisa, chama a atenção a forma como as chacinas pertencem a um repertório de ação de grupos de extermínio e de milícias, identificadas como práticas de policiamento fora de serviço, mas também decorrem de operações e abordagens policiais em serviço. “A chacina, como prática coletiva de grupos em disputa, nos dá indicativos de quais são os problemas que afetam as periferias e que mecanismos permitem que a massiva morte violenta de pessoas negras seja legitimada para garantia da ordem e segurança”, pontua.

A pesquisadora responsável pelo texto sobre o Salgueiro, Thais Custódio, afirma que a metodologia da pesquisa, a partir das entrevistas de alguns atores, foi fundamental para apresentar a especificidade do território, mas ficou muito nítido o tamanho da complexidade de fazermos uma análise mais minuciosa sem a presença de lideranças locais que pudessem elucidar o que aconteceu de fato.

Para o pesquisador Alexandre Julião, do Instituto Socioambiental (ISA), autor do texto sobre a Chacina de Belém, o estudo coloca luz sobre um problema central para compreender as instituições de controle brasileiras e a letalidade policial, que vitimou milhares de pessoas em todo o país durante a última década. “Esses são acontecimentos com grande impacto social, seja pela quantidade de mortes ou pelas repercussões políticas, de modo que permitem expor as tramas políticas que envolvem essa triste realidade nacional”, afirma.

Quem são as vítimas
Em relação ao perfil das vítimas fatais nas chacinas por policiamento, foram mortas 528 pessoas, a maioria homens (502), jovens de 15 a 29 anos (228) e adultos de 30 a 59 anos (57). Embora os dados de raça/cor das vítimas muitas vezes não estejam disponíveis nas notícias que constituem a base de dados, a população negra segue sendo a mais vitimada quando essa informação é identificada: das 76 vítimas das quais foi possível mapear o perfil racial, 55 eram negras (soma de pardas e pretas).

A pesquisa mostra que as quantidades de casos de chacina praticados por agentes de segurança em serviço e fora de serviço não destoam muito entre si, ou seja, os policiais perpetram as ações mesmo fora do momento de trabalho.

As características das 456 vítimas fatais em casos de chacinas com suspeita de participação policial são similares aos casos de policiamento dentro e fora de serviço: 415 são homens, 207 são jovens (15 a 29 anos de idade) e 73 têm entre 30 e 59 anos de idade. A falta de informações em relação à raça/cor também se repete, sendo a maioria negra dentro daqueles que foram identificados — 38 de 63. São 109 vítimas masculinas sem nenhuma outra informação identificada.

Para o pesquisador da área de Violência do Reconexão Periferias Ruan Bernardo, a pesquisa reflete o cenário da Segurança Pública no Brasil. “Tendo a polícia como agente reprodutor dos processos de violência, seja em abordagens e operações policiais, seja por meio de grupos de extermínios e milícias, com objetivo de dominar os territórios pela coerção de corpos periféricos com subsídio em narrativas políticas conservadoras”.

O ouvidor das polícias de São Paulo, Cláudio Silva, afirma que pensar chacinas e policiamento, especialmente a partir da visão da sociedade civil, significa discutir relações de poder, relações humanas e aperfeiçoamento das políticas de Segurança Pública. “É fundamental refletir no sentido de garantir o acesso à justiça a quem necessita, e que seja feita a quem eventualmente transgrediu alguma regra legal. Mas, acima de tudo, aperfeiçoar a política de segurança pública para que ela esteja cada vez mais próxima dos anseios de quem efetivamente precisa.”

Sobre a Chacina de Belém (2014)

Em 2014, o Pará registrava a sexta maior taxa de homicídios do Brasil – número que já crescia desde 2009, quando contabilizava 42,7 homicídios por 100 mil habitantes. Nesse aterrador contexto, em 4 e 5 de novembro de 2014 ocorreu a “Chacina de Belém” – uma das mais emblemáticas da história paraense recente, seja por suas reverberações no contexto político, social ou local. Em síntese, após a morte de um policial militar apontado como chefe de um grupo miliciano, a capital paraense presenciou a mobilização de agentes de segurança pública para que fosse dada “uma resposta”. Há grande divergência sobre o número exato de vítimas diretas, de modo que a contabilização estatal indica a morte de dez jovens, ao passo que movimentos sociais locais apontam que 64 jovens teriam sido assassinados naquela noite.

Sobre a Chacina do Complexo do Salgueiro

Em de 11 de novembro de 2017, a Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ), além de militares de infantaria motorizada e das forças especiais do Exército Brasileiro (EB), realizaram uma operação cuja narrativa oficial era de “aprofundar o mapeamento” da região do Complexo do Salgueiro – isto é, coletar informações sobre o terreno. A ação, que contou com 15 policiais civis e 17 soldados, resultou na morte de oito pessoas e outras duas ficaram feridas. A participação do Exército foi amparada pelo decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) assinado pelo então presidente Michel Temer. Dois anos depois, o Ministério Público do Rio de Janeiro arquivou o processo, afirmando que nem os policiais civis nem supostos traficantes foram os autores dos disparos que vitimaram oito homens.