Tanãmak (Márcia Mura) é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo.

O território Mura que percorro com a pedagogia da afirmação indígena é o Rio Yrurí, rio que treme, atual Madeira, e alguns lagos ligados à sua bacia hidrográfica, correspondente ao Estado de Rondônia e Amazonas. O povo Buhuaren, como eram denominados os Mura antes do contato com os colonizadores, continua presente em todo o Rio. Para o lado de Rondônia estamos em contextos ribeirinhos, extrativistas e urbanos, para o lado do Amazonas, além desses contextos, há também os territórios demarcados e os em reivindicação.

A pedagogia da afirmação indígena consiste em uma prática pedagógica baseada nas tradições indígenas que envolvem a valorização da percepção de mundo indígena, seus modos de ser, de viver, de se alimentar, festejar, celebrar, trabalhar e se curar. Essa percepção foi aos poucos sendo delineada a partir do momento em que eu e meus dois filhos, Antorokay Mura e Atatuyky Mura, passamos uma temporada fora do nosso território na época em que eu estava cursando doutorado em História Social na Universidade de São Paulo (USP), mas só foi conceituada como pedagogia após o diálogo com a pedagogia Griô, por meio da dissertação de mestrado de Márcio Caires, com a qual tive a oportunidade de colaborar1. Foi quando olhei para tudo o que estávamos fazendo e me dei conta de que praticávamos a pedagogia da afirmação indígena.

Estar fora do território é tornar-se o outro, muitas vezes exótico, mas também considerado como uma diferença com uma cultura específica que pode ser valorizada nas partilhas de conhecimento. Apesar do olhar exótico que foi projetado sobre nós, houve também uma possibilidade de nós mesmos nos percebermos melhor e entender que somos portadores de uma cultura que gera pertencimento e conhecimento. À medida que éramos convidados para colaborar com o repertório cultural da língua nheengatu, começamos a perceber que, apesar de não sermos falantes dessa língua, a cultura vivenciada por nós a configura. Assim, essa partilha foi se estabelecendo nas aulas de nheengatu, das quais participávamos no curso oferecido como atividade extracurricular, coordenadas pelos estudantes da USP, entre eles, Antônio Neto, abertas à comunidade. Nessas ocasiões, eu, Antorokay e Atatuyk compartilhávamos práticas culturais que fazem parte do nosso dia a dia quando estamos no território, na relação de aprendizagem com nossos parentes sanguíneos e de afinidades. A partir daí, paramos para pensar quantos conhecimentos tínhamos e passamos a fazer essa prática de conhecimentos com diferentes coletivos, por meio de intervenções e vivências culturais indígenas nos espaços abertos da USP, e também a aceitar convites vindos de outros departamentos da Universidade. Dessa maneira, foi possível colaborar a partir de nossos conhecimentos culturais com o grupo de estudo do nheengatu, com um dos projetos de extensão comunitária do museu de arqueologia e com a escola de aplicação da Faculdade de Educação, ambos da USP.

Quando estamos em nosso território, mesmo em contextos ribeirinhos, extrativistas e urbanos, imersos em nossa cultura, aprendemos com os mais velhos e fazemos parte do processo de transmissão de conhecimento por meio da tradição oral e do fazer na prática.

A pedagogia da afirmação indígena em contexto ribeirinho e extrativista é necessária como processo de recuperação de memória, pois ainda que nesses espaços a cultura indígena mantenha-se viva, ela é amalgamada na cultura ribeirinha. Já nos espaços urbanos, corpos, rostos, espíritos daqueles que tiveram suas memórias indígenas sequestradas circulam sem se perguntar sobre sua própria origem indígena e passam a viver inseridos na lógica da cidade, mesmo que, no interior de suas famílias, as práticas alimentares, medicinais e relações parentais apresentem o modo de ser indígena, invisibilizado. Somente quando há um deslocamento para fora do território ele passar a ser visto como outro por causa dos seus fenótipos, modos de falar, pensar e agir é que acontece o olhar para si e a reação de afirmação ou negação desse modo de ser indígena.

Para nós, estar fora do território nos possibilitou perceber melhor o quanto somos portadores de saberes que foram repassados por nossos mais velhos, por meio da tradição oral que alimenta a nossa prática. Foi também oportunidade de construir relações com parentes indígenas da auto afirmação do contexto urbano e os dos territórios indígenas de São Paulo e outros que circulam por lá que também nos fortaleceram em nosso pertencimento indígena. Dessa maneira, eu e meus dois filhos voltamos para nosso território mais conscientes da importância de tornar nossa casa, onde já vivenciávamos com nossos familiares, outros parentes indígenas, amigas e amigos não indígenas partilhas culturais, um espaço de vivêcia indígena e acolhimento entre parentes, aliadas, aliados. Assim nasceu o espaço cultural “Maloca Querida” e também iniciamos a articulação de um grupo de afirmação indígena em Porto Velho e mais tarde a formação do Coletivo Mura.

Antes da temporada em São Paulo já realizávamos incidência política por meio do artivismo (arte com ativismo), fazendo intervenções políticas em defesa de direitos trazendo a arte em suas diferentes representatividades por meio da nossa atuação no Instituto Madeira Vivo. Também tínhamos consciência da nossa origem indígena, mas estar fora nos fez sentir a falta das relações com os parentes, da nossa alimentação, do nosso lugar e, no diálogo com outros indígenas, nos darmos conta da importância política da nossa afirmação indígena. Isso caminhou junto com a intensificação do movimento de retorno aos espaços territoriais de contexto extrativista e ribeirinho e o começo do nosso encontro com os Mura do Itaparanã e Jauari no decorrer do processo de puxar os fios de memórias indígenas na pesquisa e escrita da tese de doutorado, do qual meus filhos, meu companheiro, minha mãe e outros familiares fizeram parte. No entanto, após essa temporada fora do território “Amazônia” pudemos nos entender melhor dentro de uma Amazônia Mura. Depois de voltar para o território pudemos restabelecer as relações de parentescos, nos afirmarmos Mura e sermos reconhecidos pelos outros Mura do Amazonas, ainda que esse processo tenha iniciado desde a estada em Manaus durante o mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia, onde já passei a mudar as chaves de compreensão do meu lugar no mundo e de construções de leituras enquanto pesquisadora. Acredito que somente por ter tido essa experiência na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) durante o mestrado consegui iniciar esse caminho de me perceber melhor enquanto pessoa e intelectual amazônida, sem deixar de considerar, também, que na graduação me deparei pela primeira vez com uma história, embora ainda com uma visão de algo do passado sem interligar com o presente, que trazia a existência dos povos indígenas do Rio Madeira e da região do Pará, de onde veio meu bisavô materno, conhecimento esse que gerou os primeiros embasamentos para meus sentimentos de pertencimento indígena.

Todas essas fases de conhecimentos, ativismo nas causas indígenas, entrada na universidade, graduação em história, pesquisas em história oral no decorrer de toda a formação de pesquisadora, envolvimento com a memória da minha avó, ponto inicial para chegar até as outras mais velhas e outros mais velhos, para puxar os fios de memórias indígenas, mestrado em sociedade e cultura na Amazônia na UFAM, ida com meus filhos para São Paulo durante o doutorado em História Social pela USP, os engajamentos indígenas em São Paulo e Porto Velho/RO e aos poucos no movimento local, regional e nacional, o restabelecimento de parentescos, o encontro com os Mura do Amazonas e reconhecimento deles sobre nosso pertencimento Mura, foram dando forma para essa pedagogia da afirmação indígena. Não foi a nossa ida de forma isolada para São Paulo, mas tudo que já vínhamos constituindo muito antes até me entender como gente navegando nosso rio de memória, adentrando os espaços das florestas e vivendo também na cidade, sempre conduzida por minha avó materna. Não posso esquecer também que o ponto inicial de retorno para a vida do outro lado do rio se deu no decorrer do meu envolvimento, enquanto Instituto Madeira Vivo, com as comunidades constituídas às margens do rio no enfrentamento à hidrelétrica de Santo Antônio que perpassou por minha atuação acadêmica e aos poucos meu caminhar de volta para minha origem indígena e para o encontro com meu povo. Tudo isso sendo repassado para meus filhos, que também viveram esse processo de aprendizagem da nossa cultura com nossas e nossos mais velhos.

Seguimos os caminhos das águas que vêm sendo percorridos desde nossos antepassados, recuperando nossas memórias por meio da pedagogia da afirmação indígena. Nossas rodas de literatura indígena oral e escrita, trocas de saberes, construção do espaço das malocas dos saberes e dos roçados tradicionais, o fortalecimento das relações de parentescos, atuação na literatura com a escrita de nossas memórias e outras artes como ferramenta de luta2 têm confluência com o que outros parentes indígenas têm praticado no campo da educação, como faz Cristine Takuá, e vivências culturais como vem fazendo Tamikuã Txihi no seu espaço cultural “Toca da Onça”3, na terra indígena Itakupé em São Paulo.

Referências

TAKUÁ, Cristine. Teko Porã, o sistema milenar educativo de equilíbrio, Rebento, São Paulo, n. 9, p. 5-8, dezembro 2018.

CHAVES, Marcio Caires. Pedagogia Griô e o encantado do griô aprendiz: caminhada de iniciação de um educador, contador de histórias e mediador político, 2021.

FERREIRA, Lucas Maciel, MARCIA NUNES. Vivencia Sagrada: Despertando A Ancestralidade MURA, 1ª ed. Porto Velho-RO: Educar,2022.

MURA, Márcia. Tecendo Memória do Povo Mura e Outros Parentes, Pacha Mama, Rio de Janeiro, 2022.

FERREIRA, Iremar Antônio. Os Peixes Sentem: Manifesto dos Peixes Pela Vida, publicação independente, Porto Velho-R0, 2021.

1 A Escola de Formação de Pedagogia no Caires Márcia Griô. E na dissertação de Marcio Caires ele traz presente as fundamentações dessa pedagogia: https://pedagogiagrio.com/files/2023/12/EL_CAIRES-M%C3%A1rcio.-Pedagogia-Gri%C3%B4-e-o-encantado-do-gri%C3%B4-aprendiz-FINAL.pdf

2

3 https://www.facebook.com/fabricasdecultura/videos/toca-da-on%C3%A7a-troca-de-saberes-ind%C3%ADgenas/3110408305916094/

Dentre as nossas escritas destacamos a revista “Vivência Sagrada: Despertando a Ancestralidade Mura” escrita por mim e Antorokay Mura por meio do prêmio cultural do edital da Lei Aldir Blanc; O livro “Tecendo Memória do Povo Mura e outros parentes” escrito por mim também por meio do edital da lei Aldir Blanc e o livrinho “Os Peixes Sentem” de Iremar Antônio Ferreira, publicação independente.

Tanãmak é meu nome espiritual dado por Namatuyky. Márcia Mura como sou conhecida no movimento indígena. Márcia Nunes Maciel nome do registro de Nascimento.