Por Rose Silva

A desregulamentação e precarização do trabalho têm se mostrado como um dos principais desafios para as populações periféricas no Brasil, uma vez que perpetuam baixos rendimentos e uma ausência quase total de proteção social. Com o avanço da automação e da inteligência artificial, cada vez mais empregos são eliminados e profissões correm o risco de ser extintas. Para falar sobre esse cenário e analisar as alternativas, a revista Reconexão Periferias entrevistou o sociólogo João Carlos Nogueira, pesquisador da Cátedra Antonieta de Barros, da Universidade Federal de Santa Catarina/Unesco. Ele também integra o Observatório de Pesquisas e Políticas Públicas da Ufsc/Reafro e o Conselho de Desenvolvimento econômico, social e sustentável da Presidência da República.

O trabalho por conta própria historicamente sempre fez parte da estrutura econômica e social do Brasil, mas aumentou em grande proporção nos últimos anos. Como isso impacta os trabalhadores brasileiros?

Precisamos fazer aqui uma distinção do ponto de vista mais conceitual entre o trabalho por conta própria na atualidade e o estrutural, da informalidade, o trabalho de subsistência nas relações humanas. E também no que diz respeito ao trabalho do ponto de vista mais clássico, porque, contemporaneamente, se gera uma certa confusão teórico-metodológica quando se fala dos trabalhadores por conta própria ou da informalidade e dos trabalhadores formais com carteira assinada, que têm suas distinções, evidentemente, mas muitas vezes se cruzam muito. Ao mesmo tempo, a precariedade existe nos dois lugares. No caso do Brasil, é importante sempre voltar um pouco na história da transição do trabalho escravo para o denominado trabalho livre, que foi absolutamente controlado pelas elites, sob o pacto da branquitude. Isso é muito importante, sobretudo para a juventude, que irá talvez pensar que essas profundas transformações no mundo do trabalho são algo que está acontecendo somente nesse momento, mas na verdade vêm de longe e têm muito a ver com a regulação e a regulamentação feita no passado. Esse controle passou muito por leis e decretos. Desde 1837 a 1890, no pós- abolição, foram excluídos peremptoriamente os trabalhadores negros e negras ex-escravizados. A Lei Nº 108, de 1837, regulamenta a contratação e locação para os colonos. E o Decreto Nº 528, de junho 1890, também vai nessa direção, de regular e proteger os imigrantes. Portanto, o trabalho informal é consequência direta de uma ação excludente do Estado. O aumento na atualidade tem vários fatores concorrentes, externos e internos: as desregulamentações e precarização generalizada, e uma das consequências é a redução de salários e remunerações, mesmo com bons indicadores de empregabilidade. O impacto para os trabalhadores brasileiros é devastador, e a baixa escolaridade e qualificação inexistente ou tardia agrava ainda mais o quadro. As periferias das cidades espelham exatamente isso. E, na existência de boa escolaridade e qualificação, enfrentam-se ainda as barreiras do racismo e preconceitos.

Se analisado o recorte de raça e gênero, podemos dizer que também no universo do trabalho por conta própria se reproduzem as desigualdades, já que as piores remunerações e condições são reservadas às mulheres e à população negra?

O trabalho por conta própria revela duas variáveis chaves para compreendermos as desigualdades entrecruzadas, duradouras e categóricas, para me referir ao sociólogo Charles Tilly, autor fundamental para compreendermos as desigualdades estruturais, quando propõe romper as sobreposições de categorias assimétricas. Exatamente porque quando cruzamos raça, classe, gênero e territórios, identifica-se o tamanho dos desafios históricos das desigualdades estruturais, onde negros, negras, mulheres das periferias, jovens negros sobretudo, formam as maiorias nos indicadores dos pequenos negócios (54% dos pequenos negócios se auto declaram negros e negras) e são igualmente excluídos dos acesso ao crédito e ao microcrédito principalmente, dadas as exigências padrão do sistema financeiro, na medida que o fator dinheiro é imprescindível para o giro dessas iniciativas produtivas.

Como se formou a ideia do empreendedorismo, que vem conquistando uma parte expressiva das periferias no Brasil? Como o senhor vê esse fenômeno?

O empreendedorismo é uma ação generalizada de trabalhadores precarizados nas periferias em nome da sobrevivência. Na medida que o projeto de incentivar o empreendedorismo é em regra, uma iniciativa de governo e do capital, deveria vir acompanhado de subsídios, como qualificação e microcrédito para se tornar uma política pública sustentável a longo prazo. O fenômeno ocorre fundamentalmente pelo deslocamento da produção e mão de obra para o comércio e serviços, temos uma economia política em curso dos serviços e comércio, mas precisamos ficar atentos para as “novas” formas de economia que estão sendo gestadas, a economia comunitária, solidária e popular ganham espaço, porque ressignificam saberes e fazeres dos circuitos dos mercados tradicionais. A conquista no meio dos jovens e até mesmo das periferias é muito forte por conta de que é uma necessidade imediata no primeiro momento, por conta do desemprego, mas também porque existe uma certa vocação de empreender, de querer desenvolver suas iniciativas produtivas, de ter seu próprio negócio. Tem ali uma alma, um desejo, uma vontade de assumir a autonomia do ponto de vista do trabalho, que às vezes se choca exatamente com a estrutura do capital.

Em sua avaliação, há uma contradição entre o trabalho por conta própria e a defesa do trabalho digno? Ou é possível associar as duas coisas? E como fica o papel dos sindicatos nesse cenário?

Na esteira do pensamento crítico, não deve haver contradições. Toda ação humana, todo trabalho desenvolvido pelas forças que o produzem é digno de reconhecimento e remuneração justa, o conceito de trabalho descente da OIT é assertivo. O trabalho por conta própria e os pequenos negócios não podem ser banalizados como “coisas” do capital. São iniciativas produtivas legítimas secularmente, lamentavelmente desconsiderados como força motriz nos modelos de desenvolvimento diante aos monopólios, oligopólios e a força da globalização e mundialização do capital financeirizado. Como eu fui sindicalista por uma década praticamente, muito jovem, no setor bancário, sempre defendi que o sindicato tinha um papel fundamental na vida do cidadão. No local de trabalho, no bairro, na comunidade dele. Então, aquele bancário que todos os dias vinha paro o banco de terno e gravata, nos anos 1970, 1980 e 1990, nos bancos públicos, principalmente estaduais e federais, e até mesmo bancos privados, onde a gente tinha uma rede bancária com mais de um milhão de trabalhadores, sempre entendi que eles eram a força motora da organização social, mas não somente só nos sindicatos. Eles precisavam ter consciência de classe alargada, pensando exatamente a organização local, em sua comunidade. Porque eu sempre acreditei que as transformações do mundo do trabalho e as grandes mudanças das tecnologias afetariam exatamente os lugares mais regulados, portanto, as fábricas. A gente percebeu o que o que aconteceu com a potência que era o apoio à produção de automóveis no Brasil, o ABC e tantas outras grandes praças. O setor bancário se reduziu a dez, vinte por cento do que representava naquela época. Então, a ideia de sindicato, cidadania, o sindicato cidadão, esses conceitos nós disputávamos na época, nos anos dos anos 1990, início do século XXI, dizendo que o sindicato não poderia ser resumido a data base, a sua organização corporativa e seu modo de pensar e de fazer. Os sindicatos perderam a oportunidade riquíssima de transformar-se junto com essa chamada classe trabalhadora mal compreendida, mal identificada hoje, que é exatamente formada por trabalhadores precarizados, resultados de toda a dinâmica do capital e das transformações sociais do mundo. Então os sindicatos tinham uma literatura e uma cultura que poderia ter ajudado em muito a organização dessas iniciativas que a gente chama hoje de conta própria. A dificuldade é porque se dissociaram esses dois mundos da cultura, da organização da classe trabalhadora. Em alguma medida, os sindicatos achavam que não era muito com eles a conversa dos trabalhadores individualizados. Aqui está uma reflexão crítica que o movimento sindical precisa fazer a tempo ainda de compreender essas dimensões com as estruturas que têm, com a potencialidade de desenvolver e o compromisso, sobretudo, com as transformações sociais. Outro aspecto é que nós não estamos vivendo mais transformações setoriais ou pontuais. São mudanças profundas que não voltarão ao que era antes. No que diz respeito à organização do trabalho e a forma com que as grandes plataformas digitais vão se desenvolver, não haverá retorno. O movimento sindical precisa ficar atento porque não está dissociada, do meu ponto de vista, a estratégia sindical da organização com os precarizados, com o trabalho informal, com os conta própria.


O que o senhor pensa da regulamentação do trabalho no Brasil? A CLT está ultrapassada?

Se tem algo que nos manteve altivos e ativos no movimento sindical e na classe trabalhadora foi exatamente a proteção da CLT, fundamental para o movimento sindical. Mesmo que a gente tenha derrubado uma forma de organização sindical muito viciada, que se chamou peleguismo, com um sindicalismo muito regulado e muito patronal. O novo sindicalismo trouxe uma outra visão e outra forma de pensar a organização e o fazer sindical e foi chave fundamental a CLT, porque ela dava as garantias constitucionais para os trabalhadores. E o outro fator fundamental, que era justamente a organização sindical, tendo a sua participação no governo do ponto de vista dos recursos públicos. Ora, se os recursos públicos são resultados do trabalho de todos e de todas, por que razão os sindicatos não devem ser fortalecidos com esse recurso? Admite-se o fundo partidário, mas não se admite financiar sindicatos. Não é estranho que a elite e a burguesia defendam ardorosamente o financiamento de partidos, isenção de impostos para as igrejas, mas não defendam investimento justamente na organização dos trabalhadores? Eu acho que nós precisamos olhar exatamente no tempo aquilo que é necessário, a regulamentação. Mas ela não pode ser regulamentação do capital. As leis trabalhistas não podem ser ordenadas e organizadas pelo capital ou com uma frágil participação dos trabalhadores. Todos os esforços para regulamentar, por exemplo, as plataformas digitais, o uso de internet, da inteligência artificial. O capital está fazendo isso. Quer dizer, nós estamos concentrando renda, assegurando bilionários e trilionários, empobrecendo a absoluta maioria. Eu penso que parte é porque não ficamos atentos aos saltos que o capital estava dando. Nós discutimos crise do capitalismo e não percebemos que a crise do capitalismo é sempre um salto para o futuro dele próprio.


Quais são os principais desafios do mundo do trabalho hoje, com o crescimento da robotização, automação e da inteligência artificial, que atuam para reduzir drasticamente os postos de trabalho?

O grande desafio para os trabalhadores é ter força frente ao capital para regulamentar as novas formas de trabalho. Desde a I Revolução Industrial, a classe trabalhadora foi fundamental para garantir direitos sociais e trabalhistas. Como mobilizar a “nova classe trabalhadora emergente?” Os sindicatos acumularam cultura, estruturas e experiências, as quais precisam ser socializadas largamente, sem imposições, com estes “novos” atores e atrizes que entram em cena no mundo da produção e do trabalho. São mulheres e homens, jovens que formam o perfil da nova classe trabalhadora, não são “identitários” que dividem a “classe operária”. As transformações tecnológicas, as plataformas digitais, inteligência artificial e outras formas de produção e gestão do capital e da vida vieram para ficar e reduziram os postos de trabalho na produção “tradicional”. As regulamentações para garantir direitos e a cidadania são fundamentais e urgentes. Temos imensos desafios a partir de 2025, que eles já vêm junto na esteira do século XXI. Mas pensar a transição energética, a transição ecológica, os efeitos dela na vida das pessoas, mas sobretudo dos trabalhadores e em especial das regiões dos territórios mais precarizados, eu penso que é o grande desafio.