Primeira ministra das Mulheres do Brasil, Cida Gonçalves é especialista em gênero e ativista de defesa dos direitos das mulheres há mais de 40 anos. Nos governos de Lula e Dilma, entre 2003 e 2016, ela foi Secretária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, atuante na construção da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio. Trabalhou também como consultora em políticas públicas de gênero e violência. Está no governo federal com a missão de devolver às brasileiras o status de cidadãs de direitos. 

Durante visita à Fundação Perseu Abramo ( FPA), em abril, a convite do Projeto Reconexão Periferias, Gonçalves participou de um bate-papo com lideranças feministas locais e concedeu esta entrevista, que pode ser assistida no Youtube da FPA.

“Esse governo reconhece a ciência, não é negacionista, nós trabalhamos com dados, com informações. Então, as pesquisas são fundamentais. Nós precisamos reconstruir esse campo do pensamento feminista, fazer pesquisa, pensar, assim como precisamos avançar em várias outras questões para a igualdade de gênero”, afirmou.

A ministra disse ainda que o que fará as mulheres avançarem nos direitos, na política e na sociedade é a construção de Secretarias das Mulheres em todas as cidades brasileiras, pois não adianta ter milhões em recursos e não ter capilaridade para executá-los. “Esse ponto deve estar em todos os programas de governo de candidatos e candidatas do PT”, concluiu.”.

Acompanhe.

Conte um pouco da sua história e o início do seu envolvimento com a luta das mulheres.

Nasci em Clementina, interior de São Paulo, cresci em Andradina e minha vida política foi em Campo Grande (MS). Na verdade, já em Andradina havia uma luta pela construção do partido, por democracia nas Comunidades Eclesiais de Base. E a minha militância deu-se principalmente na Pastoral da Juventude. Consegui entrar na discussão sobre a questão das mulheres, a discriminação, e criamos o Movimento Popular de Mulheres, que teve uma força política muito forte no estado, construindo várias estratégias e lutas, a discussão da violência contra as mulheres, da saúde da mulher e dentro do partido. Eu fui candidata três vezes, duas a vereadora e uma a deputada federal. Depois fui para a Central de Movimentos Populares e para o governo do estado, com Zeca do PT, para trabalhar na Coordenadoria da Mulher.

Quais são os principais desafios para que as mulheres conquistem a posição de igualdade e possam ter uma vida digna no Brasil?

Penso que o principal desafio é enfrentar o patriarcado e a misoginia, porque trazem elementos graves que nos colocam em determinado lugar: o ódio contra as mulheres, as discriminações, o preconceito, um olhar de que o lugar da mulher é ainda na linha do cuidado dentro de casa. Outro grande desafio é a sociedade. Nós precisamos fazer com que homens e mulheres entendam que o direito das mulheres, a igualdade, faz bem para a sociedade, para a democracia e para o país.

A senhora tocou aí nos pontos chave, que são determinantes, por exemplo, para o crescimento da violência contra a mulher, para o aumento do feminicídio. Como o Ministério das Mulheres tem combatido essa violência?

Temos o programa “Mulher, Viver sem Violência”, que o presidente Lula retomou no dia 8 de março de 2023. Dentro dele, estão serviços especiais, como a Casa da Mulher Brasileira, os Centros de Referência, o 180, que garante atendimento a todas as mulheres. Agora lançamos também o pacto de prevenção ao feminicídio, que trabalha principalmente dentro da perspectiva da reconstrução de valores e comportamentos. Passa pela educação, pela cultura, por mais pessoas envolvidas no processo de discussão dos direitos da mulher e a não violência. Mas também pela perspectiva de construirmos outras formas de prevenção. Neste ano estamos trabalhando com a tornozeleira eletrônica, porque nos serviços da delegacia, do Ministério Público e do juizado, temos análise de risco. Se avaliarem que a mulher corre risco de vida, o agressor deve usar tornozeleira.  E a patrulha Maria da Penha, que é para que todos os municípios possam ter uma patrulha que acompanhe as mulheres assim que sai a medida protetiva. Mas precisamos que a sociedade também nos ajude. Sempre digo que um dedo salva a vida. Ligue um 180 que você estará ajudando a salvar vidas e a enfrentar o feminicídio.

No mundo do trabalho aparecem, quase sempre, as gritantes diferenças entre homens e mulheres, que são menos remuneradas, têm mais dificuldade de progressão na carreira, de alcançar postos de liderança. Fale sobre as políticas do Ministério voltadas à promoção da igualdade de gênero no mercado de trabalho.

A lei da igualdade salarial está sendo implementada. Nós tivemos agora em março o primeiro relatório de transparência, e é importante dizer que conseguimos 100% de resposta das empresas. Foram quase 50 mil que responderam. Vimos que 19,4% das mulheres ganham salário menor que os homens. Esse dado  vem das próprias empresas com mais de 100 funcionários. Estamos agora no prazo em que a empresa pode se justificar ou contestar o relatório, em 90 dias. E se ela continuar com o salário desigual, tem um tempo para fazer o plano de adequação de equidade salarial entre homens e mulheres. Se não fizer esses dois processos, aí sim vai ter fiscalização e multa. Estamos no processo de implementação da lei efetivamente. Mas estamos com algumas questões importantes, que a sociedade, o Brasil, discutam primeiro a importância da lei. É preciso que toda a população saiba que a igualdade é um processo importante e que ajuda o país, aumenta o PIB, os empresários ganham e o trabalhador ganha. Toda a sociedade ganha com a igualdade salarial entre homens e mulheres. E nós estamos enfrentando resistência de algumas empresas e confederações, temos aí esse desafio. Mas acredito que o Brasil democrático, que acredita ser civilizatório, vai vencer. Então você tem aí um aumento do PIB. Isso significa um crescimento do país, né? Uma coisa muito importante. Agora, nós precisamos fazer o debate sobre a questão organizacional para garantir que as mulheres estejam, de fato, num processo de igualdade salarial, de ascensão no mundo do trabalho. Não é só entrar, mas exercer cargos de chefia, chegar aos grandes postos de dirigentes das empresas.

Falando sobre carreiras, um dos principais fatores que dificultam a progressão das mulheres é a questão dos cuidados, já que são elas que cuidam dos filhos, idosos e doentes. Existe algo que o governo possa fazer ou esteja fazendo para mudar essa realidade no Brasil?

Estamos trabalhando e discutindo uma política nacional de cuidados na coordenação do Ministério das Mulheres e do Ministério do Desenvolvimento Social. Mas, no governo do presidente Lula, a construção de novas creches foi anunciada em  8 de março de 2023. Sabemos que é um direito da criança, mas beneficia a mulher. A questão da educação integral parece que não tem nada a ver com a mulher e do cuidado. Mas ter seu filho em tempo integral na escola também dá um tempo para que a mulher possa arrumar emprego, estudar ou mesmo ter mais tranquilidade. Já existe investimento, mesmo que indiretamente, na política de cuidados. Estamos discutindo o que governo pode fazer hoje para ajudar as mulheres a terem mais tempo pra si e menos tempo cuidando dos filhos, da casa. Porque, segundo o IBGE, nós trabalhamos 20 horas a mais que os homens por semana. Precisamos avaliar o que está sendo feito. Quais serviços podemos construir em relação aos cuidados com o idoso, a criança, e que, de fato, o Estado assuma algumas responsabilidades que hoje estão exclusivamente com as mulheres. Por exemplo, a questão de criação de lavanderias comunitárias, para que a mulher vá trabalhar, deixe a roupa e, quando voltar, pegue a roupa já passada. E restaurantes comunitários onde possa comprar uma marmita, não precise a fazer comida. Precisamos discutir a divisão sexual do trabalho. Não é possível que as mulheres tenham ido para o mercado de trabalho e os homens não tenham vindo para dentro de casa. Discutir a questão da paternidade, a questão do serviço. São desafios que nós, enquanto governo, precisamos puxar para ajudar as mulheres a diminuir a carga horária do trabalho, mas que a sociedade precisa discutir, assimilar.

O ministério tem políticas específicas as trabalhadoras rurais?

Na verdade, o Ministério tem, mas o governo federal também como um todo. É importante dizer que o governo é um complexo, diversos ministérios trabalhando conjuntamente, fazendo a discussão da transversalidade, que é um dos principais objetivos do presidente Lula. Nós temos dentro do Ministério o Fórum das Mulheres Trabalhadoras do Campo, da Floresta e das Águas. É exatamente para discutir essas políticas, avançar, trazer as demandas para dentro do ministério, o que elas vivem na sua realidade, no seu território, que nós achamos que é muito importante. Temos uma pauta da Marcha das Margaridas, que aconteceu ano passado,  que são as unidades móveis para atender as mulheres em situação de violência, para irem até onde estão essas vítimas, conversar, dar formação, fazer o atendimento. Hoje nós já somos 75% de mulheres que produzem na agricultura familiar e fornecem para as escolas, prefeituras e para as comunidades. Então, nós temos aí políticas para as agricultoras de diversas áreas que as empoderam e que as colocam dentro da pauta política do governo.

O que pode ser feito para que as mulheres sejam eleitas e aumentem sua representatividade na política? E qual sua expectativa para a próxima eleição? Vamos eleger mais mulheres?

Nós precisamos mudar a legislação brasileira. Em vez de cotas, nós precisamos de cadeiras. E eu tenho defendido isso porque, veja bem, hoje nós estamos num país com 5.600 municípios. Desses, 1.000 municípios não têm uma só vereadora eleita. Temos 12% de prefeitas eleitas. Nós temos duas governadoras no nosso país. No Congresso Nacional, somos 17% entre senadores e deputados. Essa é a realidade do Brasil. Então, as mulheres estão fora dos espaços de poder, dos espaços de decisão e de poder na política. Os partidos é que vão ter de resolver quem são as mulheres que vão ocupar essa cadeiras, e elas não precisarão disputar o financiamento, porque do contrário sempre o partido vai colocar os homens em primeiro lugar. É assim que nós vamos de fato avançar. E existem países que avançaram, estou falando de Angola, de Moçambique, que têm 52%, 48% de mulheres nos seus parlamentos, e foi por meio das cadeiras que chegaram a esse patamar. Precisamos de uma legislação sólida para isso, porque não podemos correr o risco que estamos correndo, com o relator da questão eleitoral quase terminando com as cotas, que foram uma conquista das mulheres no Brasil. Por mais que a gente tenha críticas, elas garantiram o aumento do número de parlamentares mulheres. Com relação a este ano, a minha expectativa é de que a gente avance. Não é possível que no Brasil de hoje a gente consiga reduzir ou só manter o número de mulheres eleitas. Eu espero que nos municípios que não têm nenhuma, nós possamos eleger pelo menos uma.  E naqueles que têm uma, possamos eleger duas. E que tenhamos efetivamente mulheres também no Executivo, nas prefeituras, para mostrar que as mulheres na política fazem a diferença.