Por: João Carlos Nogueira e Daise Rosas

O mundo dos negócios sempre foi uma saída para as mulheres negras brasileiras, visando a expectativa de mudanças, com demandas e proposições de acessar diferentes mercados.

Essa parcela sub-representada alçou sua presença no espaço social das ruas, vendendo os quitutes e alimentos para os mais diversos consumidores na sociedade no período do Império e início da República, ora para seu sustento, ora para o dos senhores que as impunham ao trabalho. Artistas plásticos como Debret e outros retrataram a vida urbana no Rio de Janeiro em seus afrescos, com diversas cenas de comercialização nos espaços públicos no período da primeira metade do século XIX, mas que se estende por décadas seguidas, como matriz produtiva do trabalho informal.

Neste interregno temporal, vislumbrando a primeira década do século XXI, faz aproximadamente 200 anos de distância, com uma presença massiva das mulheres brasileiras neste ambiente do empreender na busca de autonomia econômica. Antes relegado apenas às mulheres negras, o empreendedorismo feminino ganha a atenção e caminha para ser um marco nacional.

A celebração promovida pelo Ministério de Empreendedorismo, Micro e Pequenas Empresas (MEMP) instituiu como política a Estratégia Nacional do Empreendedorismo Feminino – Elas Empreendem, assinado pelo presidente Lula e publicado em 11 de abril de 2024, um reconhecimento para acelerar políticas publicas nessa direção, é o que se espera. As profundas transformações no mundo da produção e reprodução nas atividades do trabalho indicam um caminho sem volta.

Diante dessas iniciativas, cabe destacar o cenário em que o país hoje está inserido e qual o contexto atual nesse segmento. O perfil da participação feminina, segundo dados do Sebrae 2023, está representado por 32 milhões de mulheres, onde mais de 15 milhões são chefes de família, equivalente a 49% do total de empreendedoras, 14 milhões compõem o grupo de empreendedoras iniciais, indicando 46%. Desse volume, 69% das mulheres atuam com a expectativa em realizar iniciativas que contribuam para um mundo melhor. O dado assustador é que o número de mulheres atuantes por necessidade representa 26 milhões, indicando o percentual de 82% desse universo total.

Este número tão elevado de empreendedorismo por necessidade demonstra que as mulheres buscam identificar caminhos possíveis para as posições marcadas por restrições, que necessitam de estratégias no desenvolvimento de todos os atores do mercado de trabalho, para melhorar estas posições.

Quando estratificamos esses dados por raça/cor, encontramos os percentuais de 48% para mulheres negras, 49% brancas, 2% indígenas e 1% asiáticas, com forte presença na Região Sudeste. Quanto à escolaridade, 68% das mulheres negras empreendedoras têm ensino superior,  contrastando com o percentual de mulheres que se inserem por necessidade no espaço do empreender. Apenas 11% das mulheres empreendedoras são também empregadoras.

O olhar frio dos números não revela as mulheres empreendedoras em seu dia a dia, suas alegrias e reveses para manter sua vida pessoal e seu negócio, o que significa muitas vezes a manutenção da sua sobrevivência e dos seus familiares, considerando o elevado índice de mulheres que assumem a responsabilidade de seus grupos familiares ao longo dos anos como mantenedoras, número esse em crescimento.

Desigualdades de oportunidades e algumas restrições provenientes de obstáculos nas relações de trabalho são frequentes no processo do empoderamento feminino, que buscam para atingir a autonomia econômica.

Como exemplo para análise, tomamos o caso do grupo de mulheres que integram o Programa Afroindígena Obinrin, realizado pela Rede Brasil Afroempreendedor (Reafro), onde um grupo de 330 mulheres se inscreveu e participa das várias fases do projeto. Elas trazem uma plêiade de questões para o front, desde as dificuldades para o acesso às inscrições, a permanência, a incompatibilidade de horários, o esgotamento físico, o cansaço mental e tantos outros desafios. Constitui um desafio também para a Reafro e suas metodologias aplicadas nas mentorias, que partem da escuta e realidade nos territórios e lugares que os coletivos estão desenvolvendo suas atividades produtivas. Em média 90% delas seguem os cursos e mentorias oferecidos pela Reafro. A desistência não ultrapassa a 17% do total de participantes.

Antes é preciso scontextualizar que as desigualdades de gênero estão vigentes na esteira de diversificadas restrições. Seja pelas questões intrínsecas, caracterizadas por crenças e valores que vigoram nas relações familiares e sociais, onde se reproduzem estruturas como a masculinidade que se impõe em detrimento da feminilidade, e expressam violências físicas e simbólicas.

O desígnio de responsabilidades e ocupações nos espaços social, profissional, assim como no doméstico, estabelecem um marcador da presença feminina no mercado de trabalho. Esta posição delimita os espaços de atuação profissional das mulheres e influencia na escolha de sua participação nas empresas, em grande número, gerenciadas por homens, trazendo à tona, o estereótipo e ideias pré-definidas sobre os papéis masculino e feminino no ambiente de trabalho. Essa divisão desigual do trabalho vem secularmente em prejuízo estrutural para as mulheres. Com destaque para as negras e indígenas no mundo urbano e rural, nas periferias como lugar e território da produção.

Estes métodos da divisão do trabalho se reproduzem nas atividades do empreendedorismo, por isso mesmo essas mulheres trabalhadoras afirmam não estarem preocupadas com os conceitos em si, porque encontram adversidades em todas as situações de trabalho, são as formas de sobrevivência nas lutas por um lugar, as dores do empreender, dos fazeres no mundo competitivo dos mercados (MICK; NOGUEIRA. 2023).

As mulheres do Programa Afroindígena Obinrin, ao participarem das atividades de mentorias propostas para qualificação, indicam o quanto a divisão sexual do trabalho tem sido um indicador de perpetuação de papéis ditos femininos e masculinos no mercado profissional, conduzindo uma concentração de participações em atividades relacionadas ao cuidado, saúde, educação, artesanato e moda, atividades de serviços e comércio. Raras são as que estão no setor da indústria e nas modalidades das tecnologias de ponta.

Outras proposições como acesso ao crédito e microcrédito, a tecnologia e inovação, a diferentes canais de venda e comercialização são restritivos às mulheres, minimizando suas caminhadas, mesmo a aquelas com projetos assertivos em sua jornada ascendente, produzindo assim, barreiras para a ascensão e crescimento.

Os bons resultados também aparecem quando os investimentos têm endereço correto. No Projeto Obirin Afroindígena, está previsto investimento de capital semente para os 40 melhores projetos a serem avaliados pelas equipes da Reafro e banca avaliadora constituída por parceiros convidados, especialistas nos temas.

Com isso, amplia a necessidade de aumentar a segurança dessas mulheres para assegurar suas metas a serem atingidas. O grupo atendido demonstra sua força ao estarem unidas e, ao ouvir as diversas histórias de realidades que se assemelham, se reconhecem, o que fortalece os laços de solidariedade, cumplicidade em torno desse vetor decisivo para o desenvolvimento econômico, social e sustentável que anunciamos como projeto social e econômico.

Histórias de preterimento no ambiente de trabalho, racismo e toda a sorte de assédio (moral, sexual e psíquico) foram reveladas e identificadas pelas participantes como uma barreira para a permanência em uma empresa ou na continuidade de seus negócios. Por outro lado, o apoio de familiares, o desejo de realizar um trabalho com propósito, ancestralidade, pertença, revelam-se a partir de suas escolhas de trabalho empreendedor, algumas formais, outras ainda buscando compreender a importância da formalização.

Nas entrevistas e relatos espontâneos realizados, as expressões e visões das mulheres negras nos dizem o quanto o empreender também é libertador, ainda que ele traga em si a ausência de garantias trabalhistas e inseguranças certas de futuro, o planejamento da atividade produtiva, o domínio de variáveis dos pequenos negócios, estimula a caminhada dura já percorrida ou delineada. Aqui reside uma das chaves para compreender a atividade produtiva por necessidade: junto ao complemento da renda ou a única renda, este tipo de atividade desenvolve também o sentido de autonomia.

Esse perfil de duplicidade de trabalho também se estende para as empreendedoras que possuem cônjuge, que, na maioria das vezes não se ocupa das atividades domésticas. As novas configurações familiares demonstram haver uma divisão social do trabalho doméstico com maior cooperação, nas relações conjugais entre mulheres, mas isso, os dados revelam, ainda é insuficiente para diminuir os impactos das doenças mentais por exemplo, com maior impacto nas mulheres negras, na medida que o racismo e suas formas metamorfoseadas são as marcas profundas da sociedade brasileira a serem permanentemente combatidos.

Realizar maior carga horária de trabalho é resultado da divisão desigual do trabalho, chegando a alcançar, segundo dados do Sebrae 2023, 42 horas a mais por mês, quando levados em consideração os cuidados com a casa e com os filhos. O que demanda menor tempo de dedicação para gerenciar o próprio negócio e, consequentemente, menor retorno financeiro, apesar do elevado grau de automação para muitos modelos de negócios. Como já afirmamos no início do texto, a tecnologia ainda é uma área distante das mulheres, sobretudo das mulheres negras e indígenas nas periferias brasileiras.

Como pesquisas amplamente divulgadas, os marcadores de gênero e raça fazem parte do mesmo pêndulo das desigualdades no mercado de trabalho, mas o peso maior está sobre mulheres e homens negros, onde raça como categoria analítica e de representação está sempre a frente na pirâmide das desigualdades.

O período pandêmico ao longo do ano de 2020 no primeiro semestre demonstrou com muita nitidez a fragilidade do empreender por necessidade, evidenciando a vulnerabilidade deste público. Para as negras e negros empreendedores houve uma queda de 14% em contraposição a 6% da população branca. Observando os números com foco em gênero e raça, os percentuais são maiores para mulheres negras, a queda alcança 16%, contra 10% de mulheres brancas.

A pesquisa sobre raça/cor no empreendedorismo, demonstra os diferentes níveis onde se encontram as maiores tensões e ausências de investimentos: que as populações mais atingidas foram as mulheres negras, nos aspectos das vulnerabilidades; menor contribuição à Previdência; maior dificuldade de acesso ao crédito; e o fato de não estarem formalizadas, o que indica que as mais jovens, se não protegidas por políticas públicas reparatórias, tendem a seguir  um cenário de desigualdades anunciadas.

As mulheres do Projeto Obinrin Afroindígena, coordenado pela Reafro, também trazem para o grupo a força, sabedoria, esperança e muita autoestima em processo de equilíbrio, favorecido pela união existente entre elas. Contam também sobre o prazer que a maioria tem ao receber um cliente que valoriza o trabalho ali realizado, o senso de liberdade e a plenitude por poderem fazer a sua agenda pessoal. Com a consciência de que depende delas e seus coletivos ou iniciativas próprias, expressam o sentido da esperança da ação para construir uma proposta, um plano de negócios que amplie seus rendimentos financeiros, sua emancipação e liberdade.

MICK, Jacques; NOGUEIRA, J. Carlos. (orgs). Viver por conta própria: Como enfrentar desigualdades raciais, de classe e gênero e apoiar a economia popular nas periferias brasileiras. Coleção Reconexão Periferiais/ FPA. São Paulo. 2023.

RELATÓRIO PROJETO OBINRIN- Coletivos de Mulheres Negras e Indígenas. REAFRO/2023.

SEBRAE-NA, Pesquisa “O Impacto da pandemia de coronavírus nos Pequenos Negócios – 12ª edição – Recorte por RAÇA-COR”

SEBRAE. SEBRAE em Dados – Empreendedorismo Feminino. SEBRAE-PR,2024. Disponível em: https://sebraepr.com.br/comunidade/artigo/sebrae-em-dados-empreendedorismo-feminino.