Jovem, negro e periférico, Ruan sonha que a cultura das periferias ofereça possibilidades de vida
Por Rose Silva
“Moleque de quebrada”, como ele mesmo se define, é filho de migrantes que vieram de Alagoas e da Bahia em busca de oportunidades e uma vida digna. Aos 23 anos, ele se prepara para concluir o curso de Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo. Com todas as singularidades, sua história representa bem as lutas, dificuldades e vitórias da juventude periférica brasileira.
Conte um pouco da história da sua família, como chegaram até aqui?
Minha mãe se chama Regina Lúcia Bernardo, é de Alagoas, começou a trabalhar com 8 anos de idade colhendo cana de açúcar e, durante seu processo de vida, engravidou do meu primeiro irmão, que hoje tem 30 e poucos anos, e acabou sendo expulsa de casa justamente devido a essa perspectiva conservadora da sociedade. Se não tiver casado, a família não te vê. Engravidou de uma pessoa mais velha, com o dobro da idade dela, quando ainda era menor de idade. Então, decidiram que o certo seria expulsá-la, e minha mãe acabou saindo de casa sem o filho, veio para São Paulo morar sozinha e como trabalhadora informal. Ela era vendedora de cachorro quente. Hoje ela trabalha como faxineira. Meu pai, Walter Gonçalves de Brito, é baiano, trabalhava também na roça desde pequeno, e, assim como minha mãe, veio para São Paulo e passou a trabalhar em obras. Eles foram morar juntos e viram uma possibilidade na invasão de terras para oferecer alguma infraestrutura para nossa família. E conseguiram ganhar o processo de legalização desse território, nossa habitação. Tenho quatro irmãos: Rodrigo, Isabela, Rafael e Roni. Eu nasci em um território de invasão, na Cidade Tiradentes, perto de onde fica hoje em dia o terminal.
De que forma a história da sua família influenciou suas escolhas e sua trajetória?
Sempre penso que venho de uma diáspora, nessa perspectiva de expulsão do território, porque minha família teve e tem dificuldades expressivas decorrentes da violência. Achei que eu tivesse uma família estruturada – ter o pai e a mãe unidos é ter uma família estruturada, né? -, mas, na real, não é. Eu tenho um irmão que está preso, foi condenado a mais de dez anos de prisão por tráfico de drogas. Minha família saiu do território justamente pela necessidade de sobrevivência de seus outros filhos, mais novos. Meu irmão se chama Rodrigo. Ele é dois anos mais velho que eu. Nesse processo de saída do território, aos oito, nove anos de idade, a gente passou a morar numa região de classe média, perto do Tatuapé, na Vila Carrão, em condições que não são propriamente de classe média. A gente continua sendo um grupo da periferia. Porque periféricos são todos aqueles excluídos dos espaços de poder. Mas eu continuo sofrendo com todas as violências nesse espaço, ainda que seja de classe média. Fomos morar numa casa em condições muito precárias. Consegui acessar uma escola privada como bolsista e passei a notar ali essas diferenças de realidade. Minha sala, minha escola tinha muito mais pessoas brancas. Para mim foi muito complicado, porque eu não me via naquele espaço, mas eu tentava me enxergar como uma pessoa branca para conseguir me inserir. Meus pais não tiveram chance de se formar nem mesmo no ensino fundamental, então, de certa forma, sou uma revolução para minha família. Eu sou o segundo filho a conseguir terminar o ensino médio e o primeiro de uma família inteira a conseguir acessar a universidade, potencialmente, a universidade pública.
Você teve acesso a livros e formação cultural quando era criança?
Quando eu morava na Cidade Tiradentes, o acesso cultural que a gente tinha era muito mais pelo esporte. Depois da transição com a minha família para um território de classe média e, principalmente, a escola privada, consegui ter mais acesso ao desenvolvimento cultural. O primeiro livro que eu li foi na quarta série, “O Ladrão de Raios”. Uma possibilidade de desenvolvimento que eu tive foi pelo contato com o hip hop, com o rap, que meu irmão, infelizmente preso hoje em dia, me apresentou desde quando eu era criança. Lembro que eu tinha uns dois, três anos de idade, ele já mostrava para a gente Racionais e outros grupos. O funk também, porque temos muito esse acesso dentro da periferia. E claro que também a outros tipos de cultura, principalmente com o meu pai e a minha mãe, como o forró.
Como e quando foi que você começou a acreditar poderia estudar na USP, uma das mais importantes universidades do Brasil? E quais foram as dificuldades?
Desde o ensino médio. Sou formado no Senai e também me formei em mecatrônica. Sempre tive essa ideia de sair do Sesi e do Senai com emprego, mas não foi bem assim, nunca trabalhei na área. Passei a pensar nessa possibilidade de entrar na universidade pública por conta de um professor.Comecei a tra balhar como garçom, e, a partir de alguns amigos de classe média que estavam na universidade, compreendi que talvez fosse bom para mim, porque a universidade é uma das maiores possibilidades para a população pobre ascender. Entrei no cursinho que eu pagava com meu salário de garçom, trabalhava aos finais de semana, e durante a semana eu consegui estudar. Aí eu acabei passando tanto em Ciências Sociais na Unicamp quanto em Gestão de Políticas Públicas na USP. O estudante negro pobre dentro da universidade, da escola privada, só tem amigos brancos. Penso que ter a possibilidade de estudar no campus da Zona Leste é muito bom para mim, porque eu consigo ver mais dos meus naquele espaço. Tive muita dificuldade no início, de conseguir entender e estudar o que era debatido dentro da universidade, porque ainda que eu tenha tido a possibilidade de estudar em uma escola privada, eu não tinha acesso a cinemas, museus e outras produções culturais. O processo de formação na universidade pública, de certa forma, tem seus aspectos positivos socialmente, mas também tem esses muito negativos, porque a população negra não consegue se enxergar. Mas o que me deixa muito feliz é que a política de cotas nos tem feito prosperar de certa forma e acessar esses espaços.
Muitas pessoas desistem no meio do caminho porque não têm como se manter na universidade. Você teve acesso a bolsa de permanência?
As políticas públicas voltadas à permanência são muito importantes como um todo. Eu tive bolsa no ano passado. Meu pai sofreu um acidente, lesionou as costas e está há um tempo sem trabalhar. E justamente por conta do acesso à política de permanência eu pude continuar na universidade pública. Conheci alguns amigos que, por conta da dificuldade, tiveram que trancar o curso. E eu acho que isso tem muito a ver com o nível de cobrança que a gente tem na USP, porque para eles manterem esse status de melhor universidade, alguém tem de se matar para conseguir. E são os estudantes que conseguem fazer com que isso continue a prosperar, né? A disponibilidade de políticas públicas voltadas às cotas sociais, cotas raciais e políticas de permanência são essenciais.
Você não consegue aguentar quatro horas de trabalho, de aula, ler todos os materiais que são disponibilizados pelos professores, ainda que seja muito importante, óbvio. Mas a gente precisa pensar que as pessoas que estão estudando à noite muito provavelmente não têm o privilégio de estudar pela manhã. Muitas vezes eu estou passando pelo campus de manhã e tem estudantes tomando sol, aproveitando a universidade pública como um todo. Não é uma possibilidade que eu tive, nenhum estudante pobre tem.
Uma das coisas mais tristes que a gente vê hoje no Brasil é que muitos jovens saem da universidade e não conseguem trabalho. Como você vê essa questão?
Não é porque consegui acessar a universidade pública que vou ter emprego garantido. São muitos problemas que acabam desencadeando futuros que a gente não consegue compreender estando aqui hoje. Quando acessamos a universidade pública não temos essa garantia, nem as universidades privadas, que cada vez mais são sucateadas com objetivo de conseguir lucro. Mas a gente não tem que ter essa perspectiva de que a educação é um produto a ser vendido. Eu pretendo começar a estudar agora, e, em 2026 iniciar o mestrado em Economia. Tenho muita vontade de continuar estudando cultura periférica, principalmente os bailes funks, porque são uma possibilidade de sobrevivência da nossa população periférica, uma possibilidade de relação com o território periférico, tentar fazer com que as nossas possibilidades cresçam, de certa forma, com base em nossa cultura. E que a nossa cultura seja mostrada não pelo viés apenas da violência e resistência à violência. Que seja uma possibilidade de sobrevivência e, para além de sobrevivência, de vivência, de demonstrar que a gente tem outras possibilidades também para a nossa vida, que não seja somente sobreviver. Passar 5 horas dentro do metrô… Tentar fazer com que em meio ao trabalho, à exploração, nossa cultura demonstre uma possibilidade de vida.
Você é um jovem negro. Hoje, o Brasil tem uma das legislações mais avançadas do mundo de combate ao racismo. Mas, infelizmente, ela não é eficaz para tornar a sociedade menos racista. Como foi que você percebeu que vive numa sociedade racista?
De certa forma, não adianta muito a teoria se a gente não tem a prática. É um dos países mais racistas do mundo e um dos que demoraram mais para acabar com a escravidão. Eu descobri o racismo em um dos primeiros enquadros que eu tomei. Porque a gente nunca esquece o primeiro “carinho” que recebe da polícia voltando para casa. Eu era menor de idade e fui agredido, não entendi o motivo. Em conversa com meu irmão mais velho, ele falou que isso é muito normal, e eu sempre fiquei pensando sobre essas coisas. Dentro da escola também, percebi que eu era tratado diferente, principalmente por ter em sua grande maioria pessoas brancas. Não tive uma relação com meus pais que possibilitasse fazer essas discussões. Meu pai é uma pessoa negra, mas minha mãe é uma mulher branca que veio do Nordeste, não tem essa compreensão crítica. Meu pai usava o cabelo black power, foi seguido diversas vezes no mercado e ficava “p***” com os seguranças. Esse foi um tipo de representação política, de resistência para mim. Muitas das coisas, dos espaços que eu participo hoje, são na maioria de gente branca. Fui percebendo que quanto mais a gente vai progredindo economicamente na vida, menos pessoas negras vê nos espaços. Na última vez que fui para o Rio de Janeiro a trabalho, entrei no hotel para deixar minhas malas no bagageiro. O gerente do hotel virou e falou assim: ‘Você faz parte da banda do Circo Voador, né?’ Eu disse que sou pesquisador, estava lá para um evento. Ele olhou para minha cara assim, tipo, ‘dane-se’, e saiu como se aquilo não fosse nada, sabe? É muito difícil a gente tentar fazer com que a teoria se torne prática não há nenhuma crítica com relação a essa normalidade que há no dia a dia. Porque, querendo ou não, se a gente não muda essa normalidade, essa rotina, não vai conseguir incidir sobre o racismo. Acho que é isso. Fazer com que pessoas que representem as minorias estejam mais nos espaços de representatividade como um todo. Falando como um jovem que vem da periferia, que volta para a periferia todo dia, não só enquanto compreensão territorial, que a representatividade é muito importante para a gente como um todo.