Existe um Feminismo Periférico?
Periferias. Uma palavra que remete a muitos estereótipos e símbolos. No dicionário, a definição é breve, limitada a uma ideia geográfica de espaço longe do centro. Para as pessoas que vivem nas periferias, o termo ganha diversas conotações. Desde lugar longe do centro, passando por uma falta de (esta mais presente em discursos acadêmicos do que nas periferias em si) e, por fim, um modo de vida, comportamento de ser e viver. Muito comum ouvir que “você pode sair da perifa, mas a perifa não sai de você”. Porque periferias passou a ser mais do que um local de moradia, mas um jeito de ser. Ser periferia, respirar e agir periferia. Uma identidade política construída diante de adversidades e positivada com criatividade e que desemboca em ações reais de impacto nas diversas comunidades do país. PeriferiaS, no plural, para dar conta da diversidade.
Feminismos. Poderíamos dizer, em resumo, que o feminismo é um movimento político e de transformação que disputa todas as esferas da vida e do poder. Não por acaso, feministas cunharam a expressão “o pessoal é político”, tendo por objetivo lançar à esfera pública as desigualdades de gênero, bem como impulsionar, com isso, a defesa de uma sociedade igualitária. Neste sentido, o feminismo é uma ideologia e, como tal, constitui e disputa um projeto de mundo que abarca todas as esferas, sejam elas filosóficas, sociológicas e econômicas. Contudo, dadas as suas diversas vertentes, cada vez mais tem se optado pelo uso da expressão “feminismos” para garantir o caráter plural deste movimento. Ainda sim, é importante ressaltar os pontos-chave e de encontro destas diversas vertentes. São eles: a luta pelo fim da subjugação das mulheres, a autonomia, o fim do Patriarcado, a pluralidade de existências e atuações, e a defesa da igualdade.
E qual seria o ponto de intersecção entre Periferias e Feminismos? Muitos. Algumas formularão sobre uma feminismo periférico, outras dialogarão nesta chave pelo feminismo negro e há também as que definirão esta chave pelo feminismo popular. O fato é que mulheres periférias constroem cotidiana e historicamente ferramentas, modos de vida e conhecimento para resistências e existências em suas realidades. É importante, assim como usamos o plural tanto para falar de periferias quanto de feminismos, que também levemos este entendimento ao falarmos de mulheres periféricas. Como aponta e atenta o manifesto do grupo “Nós, mulheres da periferia”, estamos falando de mulheres “negras, brancas, jovens, idosas, mães de outras meninas”, que gostam de “fotografia, balé, funk, teatro”, etc. e que nesta diversidade potente tem sido as grandes responsáveis por este processo de ressignificação do ser e viver as periferias.
As mulheres periféricas tem na adversidade e vulnerabilidades construído redes de solidariedade e manutenção de vivências. É uma construção de coletividade pela precariedade, mas que estabelece laços positivados. São mulheres que tem quebrado com estereótipos e comportamentos tradicionais, sendo a maioria do contingente de mulheres chefes de família. Na pesquisa “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”, divulgada pelo IPEA em 2017, o contingente de mulheres chefiando famílias saltou de 23% para 40% entre 1995 e 2015. Na maioria destas famílias não há a presença do conjuge o que, segundo a análise do Instituto, configura uma situação de maior vulnerabilidade, posto que as mulheres, notadamente as mulheres negras, estão em situação de maior precariedade quando pensamos no mercado de trabalho. Ou seja, a pirâmide sócio-racial nada mudou no país, mantendo mulheres negras na base da pirâmide e homens brancos no topo. As diferenças salarias podem chegar a média de que mulheres negras ganhem 35% do salário de um homem branco exercendo uma mesma função.
A convivência em territórios violentos, pela militarização, faz destas mulheres combatentes de primeira linha seja na manutenção de condições mínimas de sobrevivência aos seus filhos, maridos, irmãos e demais familiares quando presos, seja na indignação e organização em luta diante de assassinatos destes entes queridos, notadamente jovens-homens-negros, conforme apontam diversas pesquisas e dissertações, como o Mapa da Violência, também do IPEA, e pesquisas como da socióloga baiana Vilma Reis. Estas mulheres também enfrentam cotidianamente o aumento da violência doméstica e feminicídio entre mulheres negras, principalmente.
Estes enfrentamentos – ou seriam afrontamentos? – vão se delineando e constituindo em rede e teia seja na conexão com a vizinha para que “espie” as crianças enquanto trabalham, seja na busca do sustento e subsistência dos familiares como domésticas, quituteiras, trançadeiras, trabalhadoras ambulantes informais, ou mesmo na ponta da cadeia do tráfico em uma transação puramente comercial, dadas as necessidades emergenciais diante de um Estado que nega direitos e em que é preciso construir saídas de sobrevivência. Este dado último, inclusive, tem gerado um aumento exponencial no número de mulheres encarceradas no país em mais de 500% entre 2006 e 2016, segundo dados do InfoPen. São, também, estas mulheres que pela organização popular reivindicam creches, moradia, saneamento básico configurando o que muitos tem chamado de “Feminismo Popular”, a saber: uma construção estimulada pela organização e luta radical por direitos, de enfrentamento à raiz das desigualdades.
O ponto importante a ressaltar sobre o que seria um feminismo periférico é o de que este seria estruturado por um saber produzido cotidianamente por mulheres periféricas, radicalmente popular e que tem, em sua formulação, transposta para a ação diária, a resistência e criatividades positivadas de existências que são negadas seja pelo Estado, seja pela sociedade. Significa dizer, portanto, que estas mulheres, em suas potências, buscam saídas, em diversas vertentes, diante de adversidades. Significa dizer que estas mulheres enfrentam de peito aberto as dificuldades impostas em suas vidas. Significa reinventar periferias e não se intimidar. Falar de “feminismo periférico” poderia, em um dos mais diversos entendimentos, enfrentar reveses, afrontar o cotidiano e construir ações e estratégias que visam, mais do que sobreviver, viver.
Juliana Borges, consultora do projeto Reconexão Periferias.