Por Artur Henrique Santos, Paulo César Ramos e Darlene Testa
Vivemos um momento bastante complexo. Uma nova onda, provocada pelo reagrupamento de setores conservadores e de extrema-direita, em um mundo em transformação onde o fascismo aparece como opção ideológica e um planeta cada vez mais impactado por eventos extremos.
Há consequências potencialmente dramáticas sobre as pessoas, o meio ambiente e a economia, e as transformações tecnológicas ocorrem em velocidade cada vez maior. Projeta-se um novo setor da burguesia internacional, sem regulação global e nacional adequadas, o que resulta em maior concentração de capital, aumento das desigualdades entre países e classes sociais e grandes incertezas em relação ao futuro para a imensa maioria da população mundial.
O Brasil, que a partir de 2022 retomou seu caminho democrático e inserção soberana e protagonista no mundo, hoje está às voltas com ameaças do governante estadunidense que teima em se aliar com o fascismo de lideranças brasileiras já expurgadas da vida nacional e tem receio desse protagonismo dos países do sul global. Mais do que nunca é preciso defender a soberania, a democracia e tornar o chão que pisamos um lugar de bem viver.
Nesse contexto, o Partido dos Trabalhadores também realizou seu processo de eleições diretas, o PED, o maior de sua história, confirmando a necessidade e a disposição de efetuar um mergulho em sua origem trabalhadora e seus valores programáticos, visando efetuar uma atualização e modernização de sua gestão e reafirmação de seus princípios solidários e democráticos.
A reflexão efetuada no âmbito Reconexão Periferias sobre eixos e temas norteadores desse programa pode contribuir nesse processo imprescindível para a manutenção do protagonismo e avanço rumo a um horizonte democrático e socialista que almejamos. Isso levou ao aprofundamento da reflexão sobre a atuação nas periferias, visando um PT renovado e atuante, que dialogue com as novas dinâmicas do mundo do trabalho, que fortaleça suas bases de participação popular, combata violações de gênero, raça, classe, a discriminação LGBTQIAPN+, que empodere as juventudes dentro de toda a sua complexidade, firme uma transição geracional e compreenda as mutações nas formas de conscientização, comunicação e mobilização política.
Territorialidades
Afirmamos sistematicamente que o território é o locus da transformação social, pois é nele que a vida a real acontece, para onde convergem as estruturas de opressão e exploração e as desigualdades se materializam.
O acúmulo de reflexões e ações no Reconexão Periferias nos levou a produzir um livro, o “Periferias no Plural”, que aglutina diversas análises e contribuiu muito para se chegar a essa ideia de que há diversas periferias, tanto espacialmente como em suas relações, e que estas são a expressão política de vida social, nas variadas formas de experienciar o trabalho, a desigualdade e a opressão nos territórios. Nesse sentido, populações das águas, rios, mares, florestas, do campo e cidade, se constituem como sujeitos de direitos. E as periferias que não somente as urbanas, estrito senso, possibilitam essas diversas análises.
Com isso, jogamos luz para a cidade, um território que não é meramente um conjunto de lotes e glebas transformado pelo mercado imobiliário em mercadoria. O território municipal é o lugar onde a vida acontece, onde os ecossistemas naturais se desenvolvem e onde as pessoas constroem suas vidas, estabelecendo relações de pertencimento — as territorialidades, cada qual com suas especificidades e contradições.
Vislumbrar as cidades como territórios de democracia e cidadania, reconstituindo um protagonismo, tanto dos arranjos institucionais como de empoderamento social, faz parte de uma tarefa inadiável de quem luta pela transformação social. Nas cidades poderemos construir a possibilidade de uma transição ecológica capaz de assegurar a saúde do planeta, a manutenção dos biomas e superar a crise climática ao buscar novas formas de consumir e novas formas de produção.
Edificar cidades com mais centralidades para que as pessoas vivam em regiões autossuficientes, que permitam ampliar a mobilidade ativa e o reconhecimento dos patrimônios natural e cultural, materiais e imateriais, de modo a valorizar a diversidade cultural e as múltiplas identidades dos grupos sociais. Potencializar a economia solidária, popular e criativa, nos possibilitará produzir essas novas territorialidades e enxergar as periferias como elemento fundante desse processo.
As periferias, espacialmente, passaram a ser o local de concentração da pobreza; quando o presidente Lula aponta a necessidade de se “colocar o pobre no orçamento”, sinaliza a demanda de se construírem políticas públicas que possam gerar uma segurança social capaz de incluir as pessoas pobres em um ciclo de dignidade humana com acesso à alimentação, educação, saúde, renda mínima, equidade de condições para acessar oportunidades etc.
Ao falar de periferias, verificamos muitas teses sobre o papel do Estado; e que sua ausência é a produção estrutural de carências; outra, que essa ausência é compensada pela constituição de uma complexa rede não institucional de atores que fatalmente cumprem o papel de autoridade, mediação e assistência. E precisamos reconhecer que, para parte expressiva da população periférica, o Estado é sinônimo de violência, perseguição e morte. Afirmamos que as periferias têm uma condição de pertencimento e identidade que passou a ser fonte de orgulho e base de autoafirmação.
Trabalho de Base
Falar de trabalho de base nas periferias, sejam urbanas ou rurais, não é falar apenas de uma estratégia de organização política, mas sim de um compromisso ético, histórico e popular com os setores mais invisibilizados da sociedade brasileira. É ali, nos bairros afastados do centro, onde a desigualdade se materializa em ruas sem asfalto, transporte precário, escolas sucateadas e ausência de equipamentos públicos, que pulsa uma força coletiva capaz de mudar o país: o povo trabalhador.
E, por isso, como militantes da transformação da realidade, é fundamental pensarmos no que, nesse último período, o PT tem debatido, que é sua “volta às bases”, a reconexão com as periferias. Historicamente, dizemos que fazer trabalho de base é construir relações, escutar, dialogar, formar consciência crítica e politizar as experiências cotidianas da classe trabalhadora. Portanto, é muito mais do que levar “a verdade” ou “a política” para quem está na ponta — é reconhecer que a periferia já tem política, cultura, saberes e resistência, ainda que muitas vezes fragmentados ou cooptados.
Transformar a realidade exige presença concreta nos territórios: nas escolas, nas igrejas, nas filas do posto de saúde, nos mutirões, nas festas de bairro, quilombos, comunidades ribeirinhas, nas rodas de conversa. O trabalho de base é a escuta ativa e a construção coletiva com o outro, e não sobre o outro.
É por isso que é urgente voltar ao território. O afastamento, por suas diversas e controversas motivações, desde o avanço do neoliberalismo, que fragilizou as estruturas de mobilização coletiva, esvaziou as políticas públicas e aprofundou a individualização das relações sociais aos projetos autoritários e conservadores que ocuparam o vazio deixado, especialmente com igrejas fundamentalistas, milícias, narcotráfico e políticas de ódio travestidas de ordem.
Reaproximar-se das periferias é fundamental para resistir a esse avanço. Reaprender a fazer trabalho de base com humildade, paciência e escuta ativa, com a experiência de quem já fez muito e a incorporação de novas tecnologias, buscando não “ensinar o povo”, mas construir junto, como dizia Paulo Freire: “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”.
Periferia é potência
É preciso romper, tanto com a lógica assistencialista que reduz as periferias à condição de “problema social” quanto com a lógica da imposição de um pensamento ou ação. É preciso compreender que nas periferias se produzem cultura, economia, solidariedade, arte, cuidado e saberes populares. O funk, o hip hop, o grafite, os terreiros, os mutirões de moradia, as cozinhas comunitárias, as mães da quebrada que se transformam em educadoras, terapeutas e líderes sociais — tudo isso é trabalho de base em potência.
As lutas que emergem das periferias são profundamente interseccionais: envolvem questões de raça, gênero, juventude, território e classe. Ouvir essas vozes, incorporar suas pautas e dialogar com suas linguagens é parte central de qualquer estratégia política que pretenda transformar o Brasil com raízes populares. E essa é a razão de ser do Reconexão Periferias.
Participar do cotidiano e criar espaços de escuta
Atuar nas periferias exige continuidade, formação e criatividade. Não basta visitar um bairro em época de campanha ou fazer uma oficina pontual. É preciso criar vínculos, formar núcleos, disputar narrativas, abrir espaços de escuta, diálogo e aprendizado. Exige também o uso inteligente das redes sociais, do audiovisual, da cultura local — sem deixar de lado a centralidade do corpo-a-corpo, a visita, o panfleto e a roda de conversa.
Superar o desafio da fragmentação social causada pelo desemprego, pela precarização e pela cultura do medo; a desconfiança com a política institucional, fruto de décadas de promessas não cumpridas; a violência estatal e territorial, que impede a livre circulação e organização em algumas áreas e causa pobreza e desordem; e a falta de investimento em formação política popular contínua, especialmente entre jovens lideranças, e atuar no fortalecimento de redes locais de solidariedade e economia popular; na criação de espaços populares de formação, cultura e lazer; no diálogo com coletivos periféricos já atuantes em áreas como arte, educação, comunicação, meio ambiente e religiosidade; e na articulação entre movimentos sociais, sindicatos, partidos populares e lideranças comunitárias, sem imposição, mas com escuta e disposição para somar, é tarefa imperiosa da militância e das direções que almejam e lutam por mudanças, que buscam construir um novo Brasil.
Atuar nas periferias é uma tarefa estratégica para quem quer reconstruir um Brasil mais justo, democrático e popular. Exige tempo, afeto, método e compromisso. Não é tarefa de um só movimento ou organização, mas de todos que acreditam na transformação social a partir das raízes. É nas ruas da periferia que o futuro do país está sendo disputado. E é ali que precisamos estar: não para salvar, mas para construir junto.
É uma tarefa do Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras. Como no texto de Amanda Lemes, militante de Campinas, o PT carrega desde seu nascedouro uma característica inédita: a de ser comunidade. O PT é a maior comunidade política já erguida no Brasil, único a gerar afeto e esperança em escala continental: qual petista não arrepiou ao ouvir “sem medo de ser feliz, quero ver chegar, Lula lá…”? Quem não celebrou, com lágrimas nos olhos, Lula subindo a rampa do Planalto de mãos dadas com o povo? Quem não se encheu de orgulho ao eleger a primeira mulher presidenta do país?
E nenhum petista tem dúvidas de que a tarefa mais importante de nossas vidas no próximo ano é reeleger Lula em 2026. É por isso que nossa ação exige identidade compartilhada, propósito comum e interdependência que une práticas e corações. Enquanto o fascismo avança mundo afora — esparramando necropolítica, atacando corpos femininos e direitos duramente construídos —, no Brasil sua marcha é contida por um simples fato: o PT existe. E não apenas existe: resiste em trincheiras, constrói nas brechas, luta com as armas que tem — palavras, sonhos, gente. E reconhecer a unidade que já pulsa em nossas veias, forjada em 45 anos de história, como também suas contradições, é passo fundamental para essa tão necessária e inadiável atualização.
Mas e o mantra “o PT precisa voltar para as bases”? Nenhum partido sem raízes profundas vence 5 eleições presidenciais. Nenhum sem base firme se entranha em tantos movimentos sociais. Nenhum sem chão popular disputa municípios de norte a sul, lança milhares de candidaturas, colhe votos como frutos de uma árvore plantada no asfalto e no barro. Nenhum — a não ser o PT — seria capaz de derrotar Bolsonaro e frear o avanço global do fascismo, que insiste em transformar corpos em números e direitos em poeira. Mas precisamos de mais. O que significa hoje voltar às bases? Significa reerguer comunidades e plantar sementes de oportunidades de transformação.