Por Jackeline Romio*

Lançado no início de junho, o Atlas da Violência 2018, elaborado pelo Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), aponta a desigualdade de gênero e raça expressa no crescimento da violência sexual e das mortes por homicídios da população negra brasileira.

A leitura do atlas nos revela um cenário necropolítico, aos termos de Mbembe, que aproximada nossa realidade a de países em guerra. Em 2016, o Brasil registrou 62.517 homicídios, uma taxa de cerca de 30 óbitos por cada 100 mil habitantes, segundo dados do Ministério da Saúde (MS). Segundo o Atlas 2018, já perdemos mais de meio milhão de vidas devido à violência em apenas 10 anos, a maior parte jovens de 15 a 29 anos, negros e habitantes da região norte e nordeste do Brasil.

Quando nos deparamos com resultados como estes, fica nítida a importância de sublinharmos que todas estas mortes são evitáveis e seu impacto muda rumos na história de vida de famílias que tem seus entes exterminados das possibilidades de desenvolvimento dos seus projetos de vida. Estas estatísticas apresentam de maneira sintética o perfil de mortalidade juvenil e as condições de segurança e bem estar social que leva a perdemos tantas vidas jovens e produtivas.

A publicação aborda as desigualdades raciais e de gênero, nos apresentando um quadro abismal. Os dados trazidos por ele apontam que a desigualdade racial entre “negros” e “não negros”, pode ser confirmada, sendo a taxa de homicídios 2,5 vezes maior para “negros” que para “não negros”. Em 2016, os “não negros” tiveram taxa de 16 mortes a cada 100 mil pessoas e a taxa da população negra foi de 40 óbitos a cada 100 mil pessoas negras.

Sobre o tema das mortes por intervenção legal, a pesquisa aponta que a maior parte das vítimas desta causa eram negras 76,2% dos 5.896 óbitos registrados. Essa constatação comprova a incidência da violência institucional letal e o componente racial que coloca o homem negro como grupo mais vulnerável.

Não é novidade que a violência letal afete mais a população negra jovem que a população branca, mas a evidência através de dados estatísticos certifica a necessidade de investimentos na promoção da igualdade racial, desconstruindo a violência racial desde sua estrutura, nos próprios aparelhos de Segurança Pública de Estado que também praticam racismo institucional ao tarjar como foco das suas intervenções os jovens negros.

Devemos assinalar que não foi boa a escolha do IPEA e Forum de Segurança Pública de agrupar dentro da categoria “Não Branco” as pessoas de raça/cor Branca, amarela e indígena. Estes grupos populacionais não são parecidos a ponto de comporem uma categoria única, sobretudo a população indígena que nos últimos anos tem enfrentando o aumento da violência letal duramente em seus cotidianos, sobretudo na região norte, nordeste e centro-oeste do país, a exemplo também de várias lideranças assassinadas. É importante acessarmos os padrões de mortalidade por violência da população indígena, assim como é importante monitorarmos os padrões de mortalidade da população branca por este grupo ser o beneficiário dos padrões desiguais de distribuições dos diretos sociais e econômicos devido ao racismo estrutural.

Sobre a violência contra as mulheres, o Atlas inicia relembrando a comoção gerada pelo assassinato de Marielle Franco, “Mulher, negra, mãe e moradora da favela da Maré, vereadora da Câmara Municipal do Rio de Janeiro”, em março de 2018. A publicação considera que “a comoção pública e a transformação de seu nome em símbolo de resistência são sinais de que a violência contra a mulher está deixando de ser naturalizada”.

Dados da pesquisa apontam que, em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país. A taxa foi calculada em 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras, um aumento de 6,4%. O norte e nordeste apresentaram as maiores taxas de homicídio, com destaque ao estado de Roraima (10/100 mil) que se destacou entre os estados que mais registrou esse tipo de óbito.

A publicação usa o entendimento da violência contra mulher numa perspectiva de gênero, propõe entender a violência contra a mulher como um continuum que pode terminar na morte por feminicídio. “a mulher que se torna uma vítima fatal muitas vezes já foi vítima de uma série de outras violências de gênero, por exemplo: violência psicológica, patrimonial, física ou sexual. Ou seja, muitas mortes poderiam ser evitadas, impedindo o desfecho fatal, caso as mulheres tivessem tido opções concretas e apoio para conseguir sair de um ciclo de violência”.

Demonstra ainda que a taxa de homicídios de mulheres possui diferencial por raça cor, ela é maior entre as mulheres negras (5,3) que entre as “não negras” (3,1), reinterando diversos estudos na área e a própria sensação relatada sobre o caso de Marielle.

Sobre a questão dos estupros o atlas constata, assim como nos casos de mortes por intervenção legal, que há um descompasso entre os registros do setor da segurança pública e os do setor da saúde. “Em 2016, foram registrados nas polícias brasileiras 49.497 casos de estupro, conforme informações disponibilizadas no 11o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (tabela 6.5). Nesse mesmo ano, no Sistema Único de Saúde foram registrados 22.918 incidentes dessa natureza, o que representa aproximadamente a metade dos casos notificados à polícia”. Com dados da saúde fica evidenciado que o padrão sociodemográfico destes casos é majoritariamente da raça cor negra (parda ou preta), criança, com escolaridade de nível fundamental a médio, quando pessoa com alguma deficiência é possível notar que a reincidência da violência sexual é maior.

A relação entre vítima e agressor variou de acordo com o ciclo de vida das vítimas. Quando criança o principal agressor era do convivo da criança, como conhecidos, amigos e familiares; e, quando adolescente e adulto o principal agressor era desconhecido de suas relações, seguido por amigos e conhecidos.

Outro dado alarmante explorado pelo atlas foram as mortes por armas de fogo que representaram 71% das causas de morte por agressão. O quadro é bem desesperador e devemos exigir respostas urgentes do governo para barrar o avanço da violência e da intensificação da desigualdade racial e de gênero que acometes homens e mulheres negras brasileiras, é necessário maior investimento em medidas de promoção da igualdade de racial e gênero de forma transversal em todas as políticas públicas adotadas no Brasil.

* Jackeline Romio é doutora em demografia pela Unicamp e consultora do projeto Reconexão Periferias.