Por Rose Silva

A juíza federal aposentada Cláudia Dadico é doutora em Ciências Criminais pela PUC Rio Grande do Sul e mestra em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Desde março de 2023 ela dirige o Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário, responsável pela a arbitragem dos conflitos. Nesta entrevista, ela fala sobre a ação do governo federal para pacificar a violência no campo e nos territórios indígenas.

Dados da Comissão Pastoral da Terra mostram que desde o início do atual mandato do presidente Lula foram registrados mais conflitos no campo em relação a anos anteriores. Por que isso está acontecendo e como tem agido o governo federal para pacificar esses conflitos?

Cláudia Dadico – De fato, os dados apresentados no Caderno de Conflitos, que é uma publicação anual da Comissão Pastoral da Terra, mostraram uma tendência crescente de número de conflitos que acabou desaguando em 2023 como sendo um dos maiores já verificados desde 2015. É preciso que a gente tenha em mente que a disputa por território, as disputas fundiárias, talvez sejam hoje o núcleo, o cerne da luta de classes, é onde ela tem se mostrado mais bruta, sem nenhuma maquiagem. O que é preciso saber sobre isso? A primeira coisa é que, de fato, os números vinham numa tendência de crescimento e, nos dois anos da pandemia, houve uma estabilização pelo próprio efeito do isolamento social. O aumento também é reflexo de uma política de liberação de armas adotada no governo Bolsonaro, além de um discurso de glorificação do uso e posse de armas. Com isso, também no campo, verifica-se um aumento muito grande do número de armas legalizadas e a defesa violenta da propriedade privada. Esse discurso cria um ambiente mais belicoso, não são meras palavras. Ele acaba realmente resultando na prática de crimes. Essa tendência vinda da gestão anterior e isso se refletiu em 2023. Outro ponto é que a metodologia da CPT também coloca como conflito agrário as ocupações com o intuito de manifestar e de exigir o cumprimento das políticas de reforma agrária ou de exigir a regularização fundiária indígena, quilombola, enfim, das comunidades tradicionais. E esse aumento muitas vezes também se dá porque estamos em um ambiente democrático, a luta dos movimentos sociais é uma das expressões da democracia. Por isso não se vê por parte do governo federal nenhum tipo de repressão a esses movimentos. Agora, um número que também é muito importante de ser analisado é o de assassinatos no campo, que teve uma queda de aproximadamente 46% em 2023, como resultado da política de mediação de conflitos, tanto aqui no Ministério do Desenvolvimento Agrário quanto no Ministério dos Povos Indígenas, e também as políticas do Ministério da Justiça com vistas a evitar esse tipo de violência letal. Estamos trabalhando pela meta zero, porque toda vida importa. Ainda que a gente saiba que muitas questões não dependem estritamente do governo federal. Um exemplo são as leis estaduais que falam dos acampamentos de movimento sem terra em beira de estrada. Muitas delas estão criminalizando esses movimentos: nos estados de Goiás, do Mato Grosso, no Rio Grande do Sul, em Rondônia. Houve recentemente uma tentativa de passar uma lei com esse teor no Espírito Santo. Então, também existe um ambiente de violência, vamos dizer assim, institucional, nos estados não alinhados com as políticas do governo federal. E nesse sentido também temos notado esse reflexo no Congresso Nacional, com a Frente Parlamentar Invasão Zero, que é exatamente a expressão parlamentar de uma visão que entende que a autotutela ou que a defesa da posse pode se fazer a qualquer preço e a qualquer custo. Uma visão frontalmente contrária à política que o governo federal tem aplicado e formulado no enfrentamento da violência no campo.

Como o governo Lula tem atuado para ampliar a demarcação das terras indígenas e o que está acontecendo agora no Mato Grosso do Sul, onde os povos indígenas têm sido alvo de muita violência?

Em relação ao tema dos territórios indígenas, eu acho que antes até da demarcação é bom pontuar que uma das políticas que o governo federal já aplicou no seu primeiro ano de mandato foram as desintrusões (a retirada de ocupantes não indígenas das áreas). Um território demarcado, com tudo já legalizado, não garante, por si só, que os povos indígenas tenham o exercício da posse plena daquele local. Muitas vezes, esse território, ainda que demarcado, também sofre invasões. Então, essa já foi uma política que deu uma guinada de 180 graus em relação ao governo anterior, pois uma das primeiras iniciativas foi a desintrusão e a ação humanitária no território Yanomami. Houve a composição de uma força tarefa com Força Nacional, Polícia Federal e polícias locais para devolver essas terras aos povos indígenas. Agora, em relação às demarcações, essa também é uma política que sofre o influxo direto das forças políticas que estão compondo a o atual governo. Existe um compromisso do governo Lula no sentido de ampliar as demarcações, de colocar mais recursos orçamentários, e, por outro lado, um Congresso Nacional que é francamente contrário a essa política, muitas vezes também na elaboração dos projetos de lei orçamentária, sonegando recursos para essa rubrica tão importante. Apesar disso, o governo tem empreendido todos os seus esforços no sentido de avançar nos processos de demarcação. Muitos deles estão parados não por uma ação ou omissão governamental, mas por decisões judiciais. Por exemplo, o conflito dos Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, no município de Douradina, onde houve uma decisão judicial de primeiro grau, ainda sujeita a recurso, anulando o processo de demarcação. Assim que teve conhecimento dos primeiros atos de escalada de violência, o Ministério dos Povos Indígenas muito rapidamente compôs uma força interministerial e uma sala de situação em que acompanhando o conflito praticamente em tempo real. Então houve a preocupação de renovar e ampliar o contingente da Força Nacional nas duas áreas e de manter uma presença do governo ali, não só pela Funai ou pelo Ministério dos Povos Indígenas, mas também por representantes de outros ministérios. Houve visitas ao território de uma força volante, composta por Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério dos Direitos Humanos, Ministério da Justiça, o próprio MP.

Em sua avaliação, que tipo de projeto poderia minimizar os conflitos agrários?

Na minha visão, é realmente cumprir as políticas públicas desenhadas na Constituição, injetar mais recursos orçamentários na reforma agrária, no Incra, que é o órgão encarregado de executar executar essa política pública. No governo anterior ele sofreu um sucateamento e um desmonte também do ponto de vista normativo. Ou seja, não se permitiam sequer vistorias, avaliações, supervisões ocupacionais. Todo trabalho de campo ficava obstado ali por força de um memorando que foi editado no governo anterior e tantas outras normas que praticamente paralisaram a ação do Incra no que diz respeito à reforma agrária. A Funai também foi muito sucateada e foram negados ali recursos também em grande escala. Ela também está atualmente em um estado muito precário que herdamos do governo anterior. Mas o governo atual tem investido nisso. Então, não só agora está realizando concursos públicos para repor essas vagas que ficaram vagas no governo anterior como também fazendo os estudos para recomposição das respectivas carreiras e valorização dessas carreiras. Acredito que tanto o cumprimento da política pública de reforma agrária quanto a de regularização fundiária quilombola, de demarcação e regularização das terras indígenas é que vão realmente enfrentar a causa real dos conflitos. Enquanto isso não for possível, talvez na medida em que a demanda se apresenta, há as políticas de mediação de conflitos. Uma das nossas tarefas tem sido executada pela Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo. Essa comissão é formada por representação de vários ministérios e tem se organizado também num diálogo muito próximo com a sociedade civil e com as entidades representativas dos movimentos sociais. Ela já teve missões no Maranhão, Pará, Mato Grosso. Agora estamos indo ao oeste da Bahia e essa comissão tem permitido que haja uma maior articulação, uma comunicação mais ágil entre os ministérios. E agora, recentemente, nós também criamos no âmbito do Conselho Nacional de Desenvolvimento da Agricultura Familiar, um Comitê de Construção da Paz no Campo, exatamente para colher das atividades representativas essa pauta específica, as suas impressões, contribuições e demandas também apresentadas no que diz respeito à violência no campo.