A derrota da violência
– Você prefere ter uma mãe morta?
– Não, mãe, eu quero que você seja feliz.
Entre lágrimas, tensão e dúvidas diante do desconhecido, esse diálogo começou a mudar a vida de Nill Santos e a de muitas outras mulheres que ela alcançaria com seu trabalho social.
“Se não fosse essa fala do meu filho Gabriel, talvez eu não tivesse tido a coragem de fazer o que eu fiz naquela época, sabe”, conta Nill, dezessete anos depois de romper um longo e cada vez mais ameaçador ciclo de violência doméstica.
Atualmente, Nill – nome pela qual é conhecida Nilzimar Maria Silvestre dos Santos, fundadora e dirigente da Associação Mulheres de Atitude e Compromisso Social (Amac) – é uma liderança e referência na comunidade de Dique de Vila Alzira, em Duque de Caxias (RJ). E, de lá, sua influência só cresce, espalhando-se por outras localidades do Brasil.
“Eu voltei para a favela onde eu nasci e de onde eu nunca deveria ter saído”, diz Nill, com o ar seguro e sorridente que demonstrou ao longo da entrevista. Naquele tempo já distante, ela apanhava do marido e pai de seus filhos – Ana Beatriz, Gabriel e Sara, à época com dois anos. Em 2007, Nill saiu de casa e voltou a morar com a mãe.
“A maioria das mulheres que vivem a violência doméstica, muitas das vezes, o que prende a esse relacionamento é a família. Como ela vai sobreviver? Hoje a gente tem vários benefícios e suporte para essa mulher, mas na minha época, não existia esse suporte social, como o Bolsa Família”, lembra.
Nill trabalhava como ajudante de serviços gerais e ganhava salário mínimo. O então marido, servidor concursado, tinha condições materiais de assegurar moradia e escola, o que pesou na decisão de Nill. Os filhos, com quem manteve contato permanente, continuaram morando com o pai.
Um pouco antes, no entanto, outra mudança já havia atingido Nill: a escola. Ela já contava quase dez anos de violência doméstica. “Eu retornei à escola com 35 anos, e fui começando a conhecer direitos e estudando mais sobre histórias e a Lei Maria da Penha. Quando essa lei surgiu, em 2006, abriu um leque muito grande de informação para as mulheres. Pouco se sabia da lei, mas o conhecimento estava chegando a alguns locais e já estava também ajudando mulheres como eu, negra de periferia, com pouca formação, a procurar seus direitos”.
Depois que aportou novamente na casa onde nascera, Nill passava as noites chorando, sem saber o que fazer com o tempo vago e com a saudade dos filhos. Ali, naquele momento, ela despertaria para a militância que tem até hoje. Observando que a criançada da comunidade “era muito solta”, teve a iniciativa de criar uma escolinha noturna de futebol e pediu a ajuda de um grupo de amigos. “Fui conquistando novos filhos”, recorda-se. “Mas até então eu ainda não me reconhecia vítima da violência”.
Em pouco tempo, já eram 120 as crianças que participavam da escolinha de futebol da Nill. “E muitas delas iam para a escolinha para ter o café da noite, muitas não tinham o que comer em casa. E a gente começou a passear por outros lugares e abrir os horizontes deles também. E com isso eu também fui conhecendo outras tantas pessoas. Então eu conheci o pessoal da Casa das Pretas, que na época era a ONG Coisa de Mulher. Participei de um seminário, a gente foi conversando…” conta.
Daquele contato, a Nill foi convidada para ser uma das lideranças do projeto Como Uma Onda, que tinha o objetivo de ajudar mulheres em situação de violência. As palestras de Nill, a única representante da Baixada Fluminense naquele time, estavam entre as mais concorridas. Nill viu muitas mulheres serem resgatadas e mudarem suas vidas a partir daqueles encontros, em diferentes lugares do Rio de Janeiro. Ela não parou mais, depois de descobrir aquela vocação.
“Eu percebi que quanto mais eu contava minha história, eu conseguia sarar e ajudar outras mulheres também a se verem vítimas dessa violência. Eu não me reconhecia vítima, tinha muita culpa dentro de mim. E esse projeto me tirou essa culpa. E é por isso que hoje eu falo que falar sara, sabe?”. Um ano depois, ao final do projeto Como uma Onda, Nill passou a ser chamada para fazer palestras pela sua vizinhança do Dique da Vila Alzira.
“Comecei a fazer rodas de conversa pelas comunidades aqui no entorno, no posto de saúde, na igreja, onde me convidavam. Tudo começou muito informal aqui no meu território”, conta. Consultora Natura, trabalho que ainda ajuda Nill a compor sua renda, ela descobriu que a empresa de cosméticos tinha um projeto de patrocínio a entidades sociais. Inscreveu-se e, um ano depois, venceu seu primeiro edital, concorrendo com outros 900 de todo o país, e ganhou um patrocínio. Foi quando precisou organizar formalmente sua atuação, com CNPJ e tudo.
Nesse caminho, lançou-se em empreitadas consideradas fora de alcance, como organizar uma corrida de rua na Semana Internacional das Mulheres. Para convencer outra grande empresa de cosméticos de que poderia fazer um evento digno de patrocínio, disse que colocaria mil mulheres na prova. Conseguiu quatro mil competidoras correndo pelas ruas de Duque de Caxias. O episódio chamou a atenção da Prefeitura, da Câmara de Vereadores, de patrocinadores e da imprensa fluminense.
Dali surgiram pressões do poder público local que, segundo Nill, quis cooptá-la. Ela resistiu e não virou propagandista. Ocupou o espaço dessa forma e hoje, diz ela, a relação é das melhores, combinando autonomia e cooperação mútua.
Com o tempo e o trabalho, a sede da Amac tornou-se um ponto de prestação de serviços à comunidade. O trabalho de combate e prevenção à violência doméstica se fortaleceu, Nill dá palestras em vários pontos do país, além de ter um canal no Youtube bastante concorrido. “Na nossa favela, os casos de violência domésticas não acontecem mais”, conta.
Durante a pandemia de Covid-19, Nill e sua equipe se lançaram à captação de cestas básicas para atender as famílias de Dique de Vila Alzira. São mais de mil moradores. Atualmente, uma das tarefas mais frequentes da Amac é orientar pessoas para acessar os programas e políticas sociais existentes. Nill conta que muitas ainda desconhecem os caminhos para obter os direitos que o Estado prevê. “Outro dia ajudei um senhor que não tinha certidão de nascimento”, exemplifica.
Tudo isso vai fortalecendo as relações e a confiança. “A Amac é destinada a fortalecimento de vínculo. A gente tem reforço escolar, letramento, informática, inglês, passeios culturais, esporte”. Aí entra a necessidade de apoio público e privado. “Temos de ter dois educadores e um assistente social. Então, essa verba vem para manter esses educadores e esse assistente”, explica a fundadora. Nill e a Amac já receberam prêmios de empresas e publicações pela atuação que vêm mantendo.
No plano político, Nill avalia que os ares que vêm de Brasília, com o novo governo Lula, mudaram para melhor. Mas crê que ainda falta uma relação mais afinada com as entidades como a que dirige, de forma a poder disputar os editais de projetos. Ela avalia que entidades nascidas do movimento social podem ajudar a fazer a ligação entre as políticas públicas e as pessoas que estão no território.
Na vida pessoal, ela curte novo casamento e vive bem com o atual marido. O pai de seus filhos está mudado, segundo Nill. “Ele é presbítero”, diz. “Coitado, ele passou por uma ponte de safena há pouco tempo. Já se passaram quase 20 anos”. Reconheceu o erro? “Eu não sei se reconheceu. Mas, olha, eu ajudo ele, eu ajudo os irmãos da igreja dele também. Acho que o mais difícil para ele foi ver todos os prêmios que eu ganhei”, conta Nill.
O mais importante, na opinião dela, é a relação de respeito que se estabeleceu, em prol dos filhos. Por falar neles, os três seguiram com os estudos e hoje trabalham com Nill na Amac. E a entidade não para: em parceria com um grupo empresarial, instalou painéis de energia solar sobre seu teto, em plena favela. O projeto já chamou a atenção de empresas estrangeiras. Nill aposta que, em breve, novas parcerias vão fazer essa energia chegar a todas as casas de Dique de Vila Alzira.
Quanto aos homens, Nill acredita que uma nova consciência pode transformá-los. Como no caso de seu Cláudio, morador da favela que agredia a esposa e que recebeu voz de prisão da própria Nill. “Depois de um tempo na prisão, ele mudou. É outra pessoa, tenho muito orgulho dele”. Além de um amigo, o episódio valeu um apelido que até hoje acompanha Nill: “pitbull anã”. Ela mesma conta, e se diverte.