‘Só se liberta da opressão pela educação’
Por Rose Silva
Nascido na Rua do Bispo, no Centro Histórico de Salvador (BA), em 1956, João Jorge Rodrigues dos Santos entendeu muito jovem que cultura, educação, arte e política andam sempre juntas. E dessa compreensão visionária nasceu o Olodum, um dos maiores ícones da cultura popular brasileira, do qual foi um dos fundadores e esteve à frente como presidente por anos até assumir a presidência da Fundação Cultural Palmares, em março de 2023.
Escritor, palestrante, produtor cultural, advogado e mestre em Direito pela Universidade de Brasília, ele foi militante do Movimento Negro Unificado e sempre lutou por justiça, democracia e igualdade.
Com três livros publicados: Carnaval, Cultura, Negritude (Salvador: Associação Carnavalesca Bloco afro Olodum, 2005); Olodum – Uma estrada da paixão (Salvador Bahia: Edições Olodum, 1996); e Fala Negão, o discurso sobre a igualdade (2021), João Jorge se consolida como um pensador da cultura e da arte pela igualdade no Brasil e no mundo. Nesta entrevista, ele fala de sua trajetória na arte, educação e política e também sobre os desafios da Fundação Cultural Palmares.
O senhor é um dos fundadores do Olodum, um ícone da cultura brasileira, que há mais de quatro décadas encanta pessoas de todas as idades. A que o senhor atribui esse encantamento?
Atribuo à força das mulheres, dos homens, dos jovens e dos mais idosos que compõem a atmosfera do Olodum. Diferente de outros blocos, o Olodum foi criado em um bairro pobre, Maciel-Pelourinho, em 25 de abril de 1979, teve suas primeiras dificuldades e se reinventou em 1983, quando transformou-se de bloco afro em grupo cultural. Investiu para criar uma escola – a primeira afro-brasileira do país – um bando de teatro, uma banda de shows, um grupo de dança e, ao mesmo tempo, participou ativamente da política brasileira nos anos 1980 e 1990. Esteve presente nas primeiras campanhas do presidente Lula, e passou a ser visto como grupo de esquerda, mas, na verdade, é um grupo afro popular, com vocação para fazer política e cultura. Talvez o sucesso do Olodum hoje em dia ainda se deva a cantar as coisas para a nossa gente, o nosso povo, dentro do viés da política e transformando a realidade. Fizemos uma fusão disso. Tanto que o nosso ritmo básico é o samba-reggae, que é a fusão do samba tradicional com o reggae da Jamaica e seu discurso político.
O senhor sempre apostou na cultura e na educação para o combate ao racismo. Como foi que surgiu essa ideia?
Começou a partir de 78. O meu pai faleceu em 5 de julho daquele ano, e eu tinha um compromisso com ele de não ser militante partidário, não ser sindicalista. Eu trabalhava no polo petroquímico da Bahia e resolvi ir para o sindicato. Fui militante junto com Jaques Wagner, Rui Costa e tantos outros. Então optei pela educação para uma revolução. Eu tinha uma influência de Amílcar Cabral, da Guiné-Bissau, de Agostinho Neto, de Angola, e de Samora Machel, de Moçambique, e convivia, na Universidade Católica, com padres africanos. A tese deles era que “sem educação não vai”. Depois passamos a ter os encontros de negros do Norte e Nordeste, o encontro afro-brasileiro da Cândido Mendes e, aqui em São Paulo, o encontro das culturas negras com Abdias do Nascimento. Estava óbvio pra mim que cultura, educação, arte e política não eram coisas separadas. Então investi, de 1983 para cá, em Educação pela cultura, cultura pela educação. Com isso, a gente apresentou ao Brasil o reino do Egito e dos Faraós, era um tema da cultura negra, científico, do Cheikh Anta Diop, do Senegal. Em vez de trabalhar com um livro dizendo que o Egito é negro, fizemos um carnaval espetacular em 1987, com Grande Otelo e Zezé Mota, sobre isso.
África é uma das matrizes da cultura brasileira. Porém, até hoje, apesar de todos os avanços que tivemos, ainda não é devidamente reconhecida. Qual é o caminho para que seja valorizado o papel de África na nossa cultura?
É preciso contar as coisas, os fatos, as referências de 54 países por meio da educação e cultura. Em alguns países, são 80 etnias, como é o caso da Etiópia, e em outros são duzentas. Precisamos perder a ideia de que África é uma ilha. Ninguém vai para África, um continente inteiro. Vai para Nigéria, Benin, Etiópia, Egito. Assim como não se vai para o continente europeu, e sim para França, Espanha. Esse conhecimento precisa ser destilado de forma mais rápida e moderna, com games, quadrinhos, playlists. Porque nós temos um bombardeio de comunicação no qual África é o primo pobre, são os animais, a girafa, o leão. E também é o lugar das doenças e das guerras. Na realidade, África é a ciência, a imortalidade, a espiritualidade, a literatura, a química. O nome do Egito é Kemet, que quer dizer terra preta, da química. Nós construímos grandes coisas, mas nenhuma faculdade ensina isso. Construímos as pirâmides, esfinges, templos. Criamos a ideia de que o corpo não deve ser jogado para as hienas, e sim enterrado com dignidade. Somos o berço dos direitos humanos. Temos africanos que conquistaram prêmios Nobel da Literatura, da Paz. Há muitas coisas que nós brasileiros não sabemos e, ao não sabermos, não amamos. Os blocos afro da Bahia fizeram esse papel de divulgar a história e essas referências. É algo simples e difícil: é só não ficar preso à imagem do Tarzan que está no imaginário.
Uma das grandes conquistas do povo negro brasileiro foi a lei 10.639, instituída 21 anos atrás, que determina o ensino de História de África e da História Afro-Brasileira. Só que até hoje isso ainda permanece como um desafio. O que falta para que a lei atinja seu objetivo?
As leis no Brasil, desde o Império, são difíceis de pegar. Você tem a Lei Maria da Penha, foi preciso fazer um ajuste nela agora. Porque muitas vezes a lei é criada no clamor de casos de racismo, de feminicídio, para dizer que algo foi feito, mas a prática social e cultural continua acontecendo. No caso das leis sobre ensino da história de África e do negro no Brasil é a mesma coisa. Vários diretores de colégios não quiseram aplicar, professores reclamavam que não tinham material, e mais, achavam que era um racismo às avessas. Então criaram-se anticorpos para que não se espalhasse pelo Brasil. O que nós precisamos é que cada escola, os cursos de História, de Geografia, de Português, tenham conteúdos ligados à história africana e negra, sobre a civilização que nós criamos. É precisa voltar para a escola usando material bibliográfico, o professor deve ser readaptado à nova realidade, porque há professores que saíram do curso de Pedagogia há 20 anos. Como eles agora vão ter uma pedagogia para ensinar sobre os povos Tabons, que retornaram para África, ou os Dogons, ou o Egito? Para eles, o Egito é branco, de Cleópatra. Há toda uma formação que pode ajudar. Estamos no meio do caminho. A nós, cabe reforçar que os governos populares façam cumprir a lei e aprofundem esse conhecimento, porque só se liberta da opressão pela educação. O caso da Guiné-Bissau é exemplar. O líder Amílcar Cabral orientou Paulo Freire para trabalhar com a educação e ele se tornou um gigante da pedagogia mundial, orientado por uma africano que, sem um avião sequer, derrotou Portugal em 1973. Como ele fez isso? Educou a zonas rurais. Trabalhou a educação para a população camponesa. Ele teve de fazer a população descobrir seus valores, pois educação e valores andam juntos. Então, no caso da população negra, a educação sobre a África, sobre a história do negro, é fundamental para nossa autoestima, porque sem isso as dificuldades continuarão. O racismo prende dois tipos de pessoa: Uma pelo complexo de superioridade e o outro de inferioridade. Ambos são presos em correntes invisíveis.
Um dos elementos que travam o combate ao racismo no Brasil é a negação. Durante muitos anos, o Brasil negou que era um país racista. Como o senhor vê esse processo hoje? Existe mais consciência racial?
A negação do racismo é uma característica da América Latina: México, Peru e Colômbia criaram o termo mestiçagem. O Brasil, até 1960, não tinha uma definição de cor no censo, justamente para disfarçar essas diferenças. Brigamos muito para mudar isso e, em 1980, a declaração voltou. Hoje pretos e pardos somos 56% da população. E a maioria nas cadeias e em situação de pobreza. Temos os dados sobre o racismo, já não se consegue mais dizer que ele não existe. Tem também o caso das mulheres. O Brasil não vê a desigualdade, mas ela existe no salário, nas oportunidades, na violência. E por que se nega o tempo inteiro? Porque esse tipo de opressor trabalha a mente do oprimido. Eles fazem a opressão na sua cabeça para que você pense pela cabeça deles enquanto dizem que não existe machismo nem racismo. O movimento negro consciente, dos anos 1970 para cá, brigou por educação, pelas cotas nas universidades e também no concurso de professores. Há uma luta das mulheres negras fantástica, fundamental para melhorar a situação da mulher no país. Contudo, não é uma luta simples, que termina em 100 anos. São mais de 300 anos de escravidão e, há pouco tempo, temos as chamadas políticas de ação afirmativa.
As populações e os artistas periféricos têm muita dificuldade de acessar recursos e produzir cultura. O senhor avalia que mudou alguma coisa com o novo Marco Regulatório da Cultura? Algum progresso nesse sentido?
Vai ficar mais fácil, porque haverá um sistema nacional de regulação da cultura que vai dar indicativo de quem serão os beneficiados. Imagina um país como o Brasil, continental, com diversas formas de cultura no Amapá, Rio Grande do Sul, Maranhão, Mato Grosso, Bahia, Roraima. Você não tem dispositivos unificados que digam como adaptar-se à cultura. Então, os grupos que não estão no centro, os periféricos, sempre vão encontrar dificuldade para obter apoio, recursos e sucesso. Com o marco regulatório vai ser um caminho mais fácil, por isso é fundamental uma discussão nacional sobre ele. É uma conquista do Ministério da Cultura e também para que a gente possa se programar e estabelecer quais são as políticas públicas do Brasil nos próximos dez anos, até a revisão desse marco.
Sobre a Fundação Palmares, o senhor comentou que ela sofreu um processo muito grande de esvaziamento. Quais são os principais desafios?
O principal desafio é dar à Palmares o papel de símbolo da dignidade brasileira, da luta contra a opressão, contra o racismo e por uma cultura de igualdade. Ao mesmo tempo, ela sofreu um processo de desmantelamento brutal que exige da gente um esforço triplamente concentrado para o espaço físico funcionar, recurso, publicações, para que ela seja aquilo que o povo brasileiro espera. A Fundação foi criada em 26 de agosto de 1988, antes da Constituição cidadã. Isso dá uma dimensão dessa ferramenta política criada no governo Sarney, por militantes do movimento negro, para falar e tratar dos assuntos que interessam aos 102 milhões de afro-brasileiros. Não é uma população pequena. Ainda que fosse, é uma população que merece apoio, respeito no Brasil republicano. Nós conversamos hoje bastante sobre a potência que é a população chamada “periférica”. Essa potência que está ainda escondida no Brasil vem sendo tratada de forma inferiorizada, mas precisa vir para o centro da política, do debate, para termos a possibilidade de ser um país bom, feliz e de oportunidade para todos. Para que o Brasil seja um país civilizado. Esse é o esforço da Palmares, civilizar o Brasil. Não é possível um país chegar aos 600 anos sem ser uma civilização.
Assista a entrevista no Youtube.