Juliana da Conceição é artista, advogada da SPCINE
Ao ser sancionada pelo presidente Lula, a Lei Federal nº 14.903/24, batizada como Marco Regulatório do Fomento à Cultura, tornou-se uma importante vitória para o setor cultural brasileiro. Juridicamente inovadora, a lei visa atender uma antiga reivindicação das trabalhadoras e trabalhadores da cultura, setor em que a alta qualificação não corresponde aos cachês cada vez mais baixos para o exercício de um trabalho criativo que exige alto envolvimento emocional, corporal e intelectual.
A lei foi aprovada e não era sem tempo. Encampada por Áurea Carolina (Psol/MG), Benedita da Silva (PT/RJ) e Túlio Gadêlha (PDT/PE), na toada dos traumas da pandemia, que precarizou ainda mais o setor, a norma pretende diminuir uma histórica defasagem de legislações que regulam o fomento cultural a partir de suas particularidades, pois, sem regramentos específicos, a aplicação de leis inadequadas às práticas culturais, como a Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei federal nº 14.133/21), era rotina.
É importante celebrar esta conquista, mas não esqueçamos que a luta é constante.
Não devemos ignorar o tempo político em que vivemos: o fato de ter sido aprovada com unanimidade, em votação simbólica no Congresso Nacional, não faz com que o marco legal tenha adesão plena dos estados, do DF e dos municípios, onde a aplicação deste novo regime jurídico é opcional. O não fazer também é uma política pública.
Não raro, entre jogos, debates e discussões, lutamos por leis que, depois de aprovadas, não são implementadas. Em se tratando da cultura da periferia, uma das beneficiárias do novo marco legal, isso pode se tornar uma arena de disputa que não vê essa cultura como detentora de práticas, tecnologias e saberes que reinventam um país a cada momento. Ou, se vê, enxerga essas produções com as lentes do assistencialismo, deixando de lado sua importância estética e política.
Das práticas, tecnologias e saberes da periferia incorporados ao texto legal, é de se comemorar o reconhecimento de Grupos e Coletivos Culturais despersonalizados juridicamente. Apesar da existência de outros entes despersonalizados que atuam no mundo real e são reconhecidos pelo Direito há muito mais tempo, como o espólio e o condomínio, e apesar da existência de alguns programas de fomento para coletivos culturais em governos subnacionais, como os do município de São Paulo, a existência de uma norma geral, de alcance em todo o país, que reconheça essa inovadora forma de organização, certamente trará maior segurança jurídica para a Administração Pública e agentes culturais. Afinal, cabe ao Direito se ajustar às práticas da sociedade, e não o inverso.
Disso decorre a importância da participação da sociedade civil em todo ciclo de vida da implantação da política pública, não só no momento da aprovação da lei. Ainda que o marco regulatório preveja a atuação dos conselhos de cultura e demais atores em momentos chave, como a elaboração da minuta do edital de chamamento público, é fundamental também o controle social nas etapas onde os servidores públicos atuam mais fortemente por estarem mais familiarizados com a burocracia, como a implementação e execução.
Sobre os agentes públicos, o Marco Legal lhes dá uma atenção especial, ao prever formação e capacitação dessas pessoas para o novo regime jurídico. Mas quando se mira o que a lei chama de grupos vulneráveis – e uso a palavra “mira” por ser o artista de periferia um grupo criminalizado – é necessário exigir uma atuação não aporofóbica dos envolvidos, incluindo, porque não, os órgãos de controle, como os Tribunais de Contas. Sendo a Administração Pública o conjunto de pessoas que possuem crenças e valores e, a reflexo da sociedade, podem reproduzir racismos e preconceitos, esse olhar faz com que o processo se torne mais inclusivo e venha a retroalimentar a melhoria no serviço público.
E se, logo no início, o Marco da Cultura afastar qualquer uso da Lei de Licitações para os editais da cultura, levando-nos a questionar o que usar então, senão a lei recém-aprovada, não devemos nos esquecer que não está afastado o uso do MROSC – Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei Federal nº 13.019/14). Substituto do instrumento do convênio da Lei de Licitações e fruto também de mobilizações de uma parcela da Sociedade Civil, cabe negritar que, nessa sopa de letrinhas de siglas e números, o sistema de valores por detrás do MROSC não é o mesmo sistema de valores que embasa o Marco Regulatório do Fomento à Cultura. Uma sociedade civil não pode ser considerada como um único e homogêneo bloco.
Diante de tantos desafios, é importante que o maior órgão de cultura do país, o MinC, seja o indutor dessa novidade legislativa, exercendo uma Coordenação Federativa em vez de descentralizar somente. Pois em um complexo pacto federativo como o nosso – no qual as já conhecidas falta de verba, ausência de capacitação dos gestores públicos e falta de iniciativa dos governos com a participação popular encontra, em tempos eleitorais, projetos personalistas de poder – e sem adotar a cultura como eixo transversal de atuação dos órgãos envolvidos, continuaremos com ações fragmentadas e programas de fomento que vão trazer mais problemas do que soluções.
O espaço torna-se curto para tantas reflexões, que não se esgotam aqui. Mas desejamos que a norma recém-nascida tenha uma vida longa e plena, voltada ao bem viver das trabalhadoras e trabalhadores da cultura que a gestaram. E fiquemos vigilantes para que ela cumpra a sua missão.