Por Leonardo Fontes*

Cientistas sociais e economistas críticos têm apontado que essa ideia de autonomia e liberdade por trás do trabalho contemporâneo é uma ilusão vendida pela ideologia neoliberal que esconderia uma maior exploração do trabalho por parte das grandes corporações e a precarização das relações trabalhistas.

Sem discordar dos evidentes interesses capitalistas por trás da desregulamentação do trabalho nas últimas décadas, duas questões concretas se colocam como desafios para que trabalhadores da base da pirâmide social acessem direitos fundamentais e consigam exercer o trabalho de forma decente na atualidade.

De um lado, as condições estruturais do capitalismo contemporâneo. A desindustrialização de boa parte dos países do ocidente, em especial na periferia do capitalismo, e a revolução tecnológica que estamos vivendo com o mundo dos algoritmos e da Inteligência Artificial está mudando radicalmente as condições de trabalho. O mundo em que todos os trabalhadores de uma mesma empresa precisavam estar ao mesmo tempo no mesmo lugar para que uma linha de produção funcionasse não existe mais e não voltará a existir.

De outro lado, é preciso levar em conta os interesses e desejos dos próprios trabalhadores. Afirmar que estão “iludidos” por uma falsa promessa de liberdade ou que sua subjetividade foi capturada pelo neoliberalismo revela muito mais sobre a presunção de quem faz essa afirmação do que sobre as condições de vida dos trabalhadores contemporâneos.

Este texto pretende discutir justamente os desafios contemporâneos para pensarmos formas de proteção aos trabalhadores diante das novas formas de trabalho e das aspirações dos próprios trabalhadores por mais liberdade e autonomia.

Liberdade x proteção

Um dos traços fundamentais do capitalismo está no predomínio do trabalho livre sobre outras formas de trabalho compulsório que existiram ao longo da história da humanidade.

Para o trabalhador, ser livre tem dois significados identificados por Marx ainda no século XIX: não ter obrigações legais de seguir trabalhando para um determinado patrão e ser “livre” da propriedade dos meios de produção, ou seja, dos bens que possibilitam que as mercadorias sejam produzidas como máquinas, ferramentas, terra e, obviamente, capital.

Assim, os trabalhadores podem escolher não trabalhar, ao contrário de uma pessoa escravizada ou presa a uma relação de servidão medieval. No entanto, essa “escolha” significa que não terão condições de suprir suas necessidades básicas e muito provavelmente morrerão de fome.

O liberalismo econômico, ideologia dominante no mundo ocidental até a crise de 1929, pregava que o trabalho deveria ser tratado como uma mercadoria qualquer, ou seja, que a livre oferta e demanda estabelecida no mercado de trabalho determinasse seu valor. Assim, a liberdade de comprar e vender trabalho deveria imperar e o Estado deveria se manter fora dessa relação.

No entanto, conforme Karl Polanyi identificou em seu seminal estudo “A Grande Transformação”, o trabalho não é uma mercadoria comum, como é uma mesa, um carro ou uma peça de roupa que foram produzidos justamente para serem vendidos no mercado. O trabalho humano só se tornou uma mercadoria com o advento do capitalismo e essa liberdade indiscriminada na relação entre trabalhadores e capitalistas poderia levar, em última instância, à destruição do trabalho uma vez que a própria vida e reprodução dos trabalhadores estaria em risco.

Isso ocorre porque a tendência dos capitalistas é buscar sempre a maximização de seus lucros, o que resultaria em um aumento das jornadas de trabalho e uma redução dos salários. Trabalho infantil, trabalho de gestantes e idosos em condições insalubres, jornadas de 14 ou 16 horas. Nada disso são problemas do ponto de vista do capitalista, como a história já demonstrou.

Os próprios trabalhadores nos séculos XIX e XX notaram a necessidade de demandar algo além da liberdade para garantir sua própria sobrevivência e passaram a se organizar e exigir diferentes formas de proteção por parte do Estado. Assim como a liberdade, a proteção têm dois desdobramentos possíveis.

De um lado, significa buscar proteção dentro das relações trabalhistas de modo a evitar uma superexploração dos trabalhadores (salário mínimo, limite da jornada de trabalho, segurança no trabalho, descanso semanal, férias). De outro, há a necessidade de proteger os trabalhadores das intempéries do capitalismo como as crises que provocam desemprego e pauperização das pessoas e nos casos de impossibilidade de trabalhar (seguro desemprego, aposentadoria, auxílio doença, auxílio maternidade, além de políticas de assistência social).

Com isso, ao longo do século XX, uma série de proteções aos trabalhadores foram estabelecidas e as condições de vida melhoraram consideravelmente, sobretudo nos países centrais do capitalismo mundial. No entanto, a partir da década de 1980, com o avanço do neoliberalismo, levado adiante inicialmente pelos governos de Margareth Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos, essas proteções começaram a ser desmontadas progressivamente e o discurso em nome da liberdade do mercado voltou a prosperar.

O desafio brasileiro

No Brasil, a realidade é ainda mais complexa. A informalidade no mercado de trabalho é um problema estrutural do capitalismo dependente latino-americano e, em particular, no caso brasileiro. Por aqui, cerca de metade da força de trabalho sempre esteve fora de qualquer relação trabalhista formal. Ainda hoje, esse número segue rodeando a casa dos 40% do total de trabalhadores afetando em especial as camadas mais pobres, com menos acesso à educação formal, negras e periféricas, como mostram os dados do painel elaborado pelo Reconexão Periferias.

Portanto, quando as ideias neoliberais chegaram por aqui, na virada para os anos 1990, parcela significativa dos trabalhadores brasileiros não se viam necessariamente perdendo direitos ou subitamente desprotegidos diante das forças do mercado, uma vez que nunca haviam desfrutado de tal proteção.

“Trabalhar para você mesmo” ou “por conta própria” sempre foram valores centrais para boa parte dos trabalhadores, sobretudo os moradores de áreas periféricas de grandes cidades. A autonomia diante da ausência de um patrão, a liberdade para fazer seus próprios horários – mesmo que isso signifique jornadas extenuantes – são valores enraizados nas práticas e ideias de trabalhadores brasileiros.

É preciso, portanto, analisar o caso brasileiro a partir da sua própria dinâmica e história. O uso de categorias importantes dos países centrais como “precarização” ou “subjetividade neoliberal” pode esconder elementos centrais da nossa realidade como a precariedade histórica na vida e no trabalho de milhões de pessoas e as aspirações que essas pessoas desenvolveram diante de situações opressivas que foram obrigadas a driblar por gerações.

Relações autoritárias e abusivas no ambiente de trabalho, assédio moral e sexual, instabilidade mesmo em relações formais de trabalho e inúmeras relações de racismo, sexismo e misoginia moldaram subjetividades que buscam, com frequência, autonomia e liberdade, mesmo que em detrimento de formas de proteção.

Superar a cidadania regulada

O governo Lula tem feito esforços no sentido de regulamentar o trabalho por aplicativo e já apresentou uma proposta ao Congresso Nacional formulada a partir de discussões realizadas entre trabalhadores e empresários do setor. No entanto, a proposta tem recebido críticas e ressalvas de diversos setores da sociedade.

Embora o esforço do governo seja louvável diante do crescimento dessa forma de trabalho conhecido como “uberização” ou “plataformização do trabalho”, a proposta é insuficiente para atender ao mesmo tempo os anseios dos que estão desempenhando esse tipo de trabalho e as necessidades de proteção no ambiente tecnológico contemporâneo.

Até pouco tempo atrás, o paradigma de trabalho precarizado e que recebia forte atenção de sociólogos do trabalho estava no setor de telemarketing, hoje realizado em grande parte por computadores. Atualmente, esse paradigma se deslocou para o trabalho intermediado por algoritmos e plataformas digitais. Com a revolução tecnológica que estamos vivendo, com o advento da Inteligência Artificial e a automação de diversos processos, é bem provável que o trabalho não só de motoristas e entregadores, mas também diversas atividades tidas como “trabalho intelectual”, desapareçam em alguns anos.

Por isso, é preciso pensar formas de proteção aos trabalhadores para além das relações trabalhistas formais. Até a Constituição de 1988, o Brasil vivia sob regime do que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “cidadania regulada”. Nesse modelo fundado pela lógica varguista, políticas de saúde, assistência e previdência social só estavam ao alcance de quem exercia alguma atividade regulamentada, filiado a um sindicato e com registro na carteira de trabalho.

Embora nossa Constituição tenha assegurado direitos sociais fundamentais como o SUS, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), entre outros, boa parte dos direitos seguem restritas aos que conseguem um emprego formal. A formalização via Microempreendedor Individual (Mei) buscou contornar em parte essa restrição. Entretanto, esse importante instrumento tem sido cada vez mais usado para precarizar relações laborais por meio da chamada pejotização.

Ao mesmo tempo, minha experiência de pesquisa com trabalhadores das periferias urbanas têm mostrado que muitos deles, em momentos de crise, deixam de pagar o Mei para poder comprar outros itens essenciais para suas famílias. Com isso, acabam desprotegidos justamente nos momentos em que mais precisam.

Dessa forma, a discussão sobre proteção às diversas modalidades de trabalhadores das periferias brasileiras precisa superar as dicotomias entre trabalho formal e informal e assegurar a todos que trabalham alguns direitos fundamentais. Na vida real, as pessoas transitam e muitas vezes conciliam atividades formais e informais como forma de sua estratégia de sobrevivência.

Para isso, é preciso retomar o debate, esquecido desde o governo Lula 2 a respeito de uma Consolidação das Leis Sociais. Trata-se de pensar um conjunto de garantias que deve ser oferecido a todas as pessoas, independente da profissão ou do regime de trabalho e que inclui, entre outras coisas, uma renda básica de cidadania, aposentadoria – mesmo para quem não contribuiu por tempo suficiente – proteção em caso de acidentes, doenças ou maternidade/paternidade e descanso remunerado.

Além disso, é preciso assegurar o direito ao trabalho digno para todas as pessoas, de modo a evitar tanto que as pessoas sejam superexploradas pelo setor empresarial quanto que não sejam molestadas em suas atividades por agentes do poder público. Para isso, é preciso promover uma regulamentação desburocratizada de profissões como vendedores ambulantes, tarefa que compete primordialmente aos governos locais, mas que pode ser incentivada em nível federal.

Por fim, temas há muito esquecidos como a redução das jornadas de trabalho e o combate a relações abusivas e opressivas dentro das empresas são fundamentais. Proteção não pode mais significar perda de liberdade, autonomia e dignidade, por isso, questões de raça e gênero, dentro e fora do mercado de trabalho, não podem ser colocadas em segundo plano.

Não são temas simples de serem tratados e conciliados, mas o Estado é o único órgão com força e legitimidade para garantir que a balança do “livre mercado” não siga pesando somente para o lado do setor empresarial. Se os trabalhadores brasileiros não enxergarem no Estado e na democracia mecanismos de proteção para suas vulnerabilidades é bastante provável que se voltem para outras entidades privadas e apostem na sua individualidade como única saída possível.

Nesse cenário, em que a “lei do mais forte” tende a imperar e o Estado perde sua legitimidade diante de respostas tecnocráticas que privilegiam a austeridade fiscal, saídas autoritárias como as que quase experimentamos no Brasil nos últimos anos certamente voltarão a nos assombrar.

* Leonardo Fontes é professor da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análises e Planejamento (NEU/Cebrap).