Por: Sofia Toledo, Paulo Ramos e Ruan Bernardo

O levantamento de casos de chacinas a partir de notícias de jornal tem sido realizado pelo projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, desde 2018. Na pesquisa Chacinas e a politização das mortes no Brasil, nos debruçamos sobre a identificação dos principais agentes sociais e instituições envolvidas; na repercussão dos casos; o perfil das pessoas envolvidas; e os encaminhamentos jurídicos.

Cobrimos um período de dez anos, coletando casos reportados em notícias de jornal de 2011 a 2020, de todo Brasil – com exceção do estado do Amapá –, e identificamos 786 casos de chacina nesse período. Esse mapeamento está disponível para consulta no Painel de Dados das Periferias1.

Os conflitos identificados foram muitas vezes apresentados nas notícias como os motores que impulsionam essas execuções, e as narrativas privilegiam como principais interlocutores policiais e/ou outros agentes de segurança. Se há um caso de chacina, em especial em territórios periféricos, a justificativa, antes de qualquer investigação, é a suspeita de envolvimento com tráfico de drogas, com facções, suposições de que houve conflito armado, tiroteio, resistência à prisão, entre outras narrativas que se espalham nessas notícias e que reforçam um lugar de estigma de territórios e corpos racializados em uma tentativa de justificar essas execuções.2

No período de 2011 a 2020, mapeamos 111 casos de chacinas cujas motivações apresentadas estavam relacionadas a formas de policiamento – em serviço ou fora de serviço –, casos desse tipo foram reportados em todos os anos. Os anos de 2019 e 2020 foram os que mais chamaram a atenção por muitas chacinas decorrentes do policiamento. O ano de 2019 destaca o pico de casos praticados em serviço, principalmente execuções durante operações policiais – foram pelo menos 12 ocorrências. Já em relação ao segundo ano em destaque, 2020, casos praticados fora de serviço tiveram seu maior pico, destacam-se como perpetradores os grupos de extermínio – foram 8 casos reportados nesse mesmo ano. (veja gráfico acima)

Quando levamos em consideração chacinas praticadas em serviço, aquelas que são motivadas por operação policial destacam-se em comparação aos casos por atuação policial, que normalmente se referem a abordagens de rotina, o que pode ser um indicativo de que ações planejadas têm maior incidência em chacinas.

Em relação aos casos de chacina praticados por agentes fora de serviço, a maioria deles indica o envolvimento de grupos de extermínio. Como nossa fonte de dados são notícias de jornal, temos de considerar a escolha de uso de determinados termos em detrimento de outros, como “milícia”, que aparece com mais frequência em chacinas praticadas no Rio de Janeiro. Em outros estados, ainda é difícil o reconhecimento da atuação desses grupos paramilitares e a nomeação destes quando realizadas as reportagens. A quantidade de casos de chacina praticados por agentes de segurança em serviço e fora de serviço não destoam muito entre si, ou seja, as motivadas por práticas de policiamento são frequentes, e os agentes dessas instituições policiais perpetram as ações mesmo fora do momento de trabalho. (veja tabela na próxima página)

Neste campo, foram 90 chacinas registradas – além daquelas distribuídos entre as motivações de policiamento fora e dentro de serviço. Esses casos de suspeita de participação policial estão distribuídos entre diferentes motivações, como: acerto de contas, conflito agrário, facções criminosas ou tráfico de drogas, feminicídios e casos associados, motivo torpe, várias versões, vingança; além daqueles em que a motivação não foi divulgada e/ou identificada nas notícias, mas há suspeita de participação desses agentes. As tipologias apresentadas são indícios das diferenças de contexto e de conflitos envolvendo as chacinas e como se manifestam de formas diversas de acordo com as especificidades regionais (silva; santos; ramos, 2019)3.

É importante situar alguns pontos para debate. Em primeiro lugar, é notável como os resultados dos dados de chacinas para as atividade de policiamento são paradigmáticos do fenômeno chacinas como um todo. A presença de armas de fogo, bem como a polarização das chacinas na região Sudeste, bem como a suspeita de participação policial em casos de outros tipos, mostram como este pode ser considerado um expediente extra ou para oficial constitutivo do fazer policial em alguns estados do Brasil. Além disso, temos que a territorialização destas ocorrências indica uma conduta de extrema violência em determinados territórios, aqueles periféricos, na reprodução de uma lógica colonial de utilização da brutalidade.

Estes e outros pontos estão sendo aprofundados na segunda fase da pesquisa de Chacinas e a politização das mortes no Brasil: estudo de casos, e o próximo caderno a ser lançado em breve é Chacinas e Policiamento: os casos de Belém e do Complexo do Salgueiro (Org. Costa, 2024). Nele, serão abordados mais detidamente os dados do painel e, em especial, o estudo desses casos emblemáticos. Buscamos dialogar com agentes do campo jurídico, como pessoas que atuam como promotoras, advogadas; agentes do jornalismo; agentes da política institucional, como pessoas que atuam na vereança; especialistas que atuaram nos casos e/ou com os temas; pessoas de movimentos sociais que contribuíram para mobilização em torno deles e de suas agendas políticas; moradores dos territórios afetados; e, também, com pessoas diretamente envolvidas, como sobreviventes e familiares de vítimas. Essa segunda fase da pesquisa foi realizada em parceria com a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD) e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).