Construção de resistências nos territórios periféricos: práticas feministas e antirracistas
Natália Santos Lobo, Renata Reis e Gaëlle Scuiller
Durante a trajetória da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) como movimento feminista internacional, elaboramos coletivamente alguns princípios que guiam nossa forma de fazer política e construir outro mundo. Um desses princípios mais relevantes é a “sustentabilidade da vida” como um eixo da Economia Feminista, nossa proposta anticapitalista de reorganização do sistema econômico. Segundo ele, o objetivo da economia deve ser funcionar a favor da vida, tendo como objetivo a sustentação dos processos e trabalhos que garantem a produção e reprodução da vida humana e não humana. Uma economia que esteja a serviço, antes de mais nada, da melhoria das condições da nossa vida coletiva e do cuidado com a natureza.
As práticas de promoção da sustentabilidade da vida são desenvolvidas desde sempre pelas mulheres nos territórios, especialmente nas comunidades mais atingidas pela desigualdade. Em todo o mundo, a luta das mulheres entende as condições de vida e de realização do trabalho reprodutivo como elementos centrais.
Em momentos de crise, quando o acesso ao alimento e a condições básicas de vida ficam mais difíceis, é o trabalho das mulheres que é exigido para responder à precariedade. Observamos isso por exemplo no protagonismo das mulheres na luta contra a carestia no Brasil, durante a ditadura militar. Elas construíram um movimento forte, junto a outros movimentos sociais, que ganhou muita visibilidade e expôs o trabalho territorial das mulheres em suas comunidades na luta constante para garantir condições dignas de vida.
Em outros países da América Latina, o período de ditadura e de implementação do neoliberalismo no continente também foi um momento de aumento das “ollas comunes” (panelas comuns): espaços onde o trabalho de alimentação, cuidado e escuta mútua se organizaram coletivamente, saindo do âmbito privado de cada casa, onde gerava sobrecarga sobre as mulheres. A nossa resposta para as crises continua sendo a coletivização do trabalho doméstico e de cuidados e desmercantilização dos serviços essenciais à vida.
A solidariedade na construção de movimento
A solidariedade também é um dos princípio centrais da ação feminista e antirracista da MMM. Não foi diferente durante os últimos anos de governos neoliberais e de extrema direita no Brasil. Neste período, sobretudo durante a pandemia do Covid-19, a MMM intensificousua militância em ações de solidariedade e de construção de iniciativas territoriais para fazer frente a precarização da vida. Entre elas, estão iniciativas de construção de cozinhas solidárias, entrega de refeições e cestas básicas – às vezes em aliança com a agricultura familiar da região e redes de produção e consumo alternativos- e também o cultivo coletivo de hortas comunitárias agroecológicas.
Coletivizar o fazer da vida é também refletir em conjunto sobre as origens da desigualdade social, assim como a estrutural patriarcal e racista que estão imbricadas do modo de produção capitalista. No interior destas iniciativas criam-se também espaços de formação, debate e mobilização. Marcando presença nos territórios, as militantes da MMM articulam grupos locais de luta e fortalecimento das mulheres no combate à violência e à fome. São processos ligados à outras iniciativas do territórios, como às rádios comunitárias, e que aprofundam as relações comunitárias por meio do trabalho coletivo nos mutirões, por exemplo. Nessas experiências reafirmamos uma prática feminista e antirracista que questiona as dicotomias e hierarquias de saberes, construindo conhecimento e tendo como ferramenta a educação popular.
Nossas ações são construídas em alianças, e a maior parte das iniciativas são construções conjuntas com outros movimentos nacionais, como a Central dos Movimentos Populares (CMP), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), centrais sindicais, partidos de esquerda ou articulações locais.
Entre alguns exemplos, a MMM da Paraíba participou de iniciativas populares de fortalecimento de cozinhas comunitárias de várias comunidades em João Pessoa. Em Fortaleza, uma cozinha solidária chegou a distribuir 100 marmitas solidárias por dia em articulação com governos locais e em parceria com o Movimento Orquídeas, um grupo de mulheres que constroem ações em torno do bairro Mondumbim. Numa entrevista, a liderança deste movimento aponta que foi “convidada para participar de umas oficina da Marcha Mundial de Mulheres e, nesses encontros, vi a necessidade de a gente se unir cada vez mais no bairro. Nos estruturar”. Isso nos mostra que o trabalho de produção de refeições que constitui o trabalho de reprodução da vida, e a formação política nesses locais ocorre em um só movimento.
A experiência do núcleo Lélia Gonzalez em Palmas indica também que as campanhas de solidariedade durante a pandemia deram mais fôlego as atividades relacionadas à agroecologia na região, unindo o trabalho nas cozinhas com o cultivo de alimentos saudáveis na cidade. Na região de Porto Alegre as militantes também articulam atividades da cozinha comunitária com uma horta e as atividades da rádio comunitária do bairro. Em São Paulo, a horta do Espaço Cultural Monte Kemel proporciona trocas de saberes entre gerações e moradoras do bairro, além de tecer relações baseadas na economia feminista e solidária. O espaço é ponte de encontro de uma rede de grupos de consumo responsável da Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo (RAMA), e sedia feiras agroecológicas – que acontecem geralmente ao mesmo tempo que mutirões de manejo da horta
É importante ressaltar que estas iniciativas que proporcionam uma alimentação de qualidade para as comunidades se desenham ao mesmo tempo em que, em escala mundial, as empresas transnacionais da alimentação lucram como nunca. Estas empresas oferecem saídas individuais para um problema que é coletivo: vendem alimentos semi-prontos e congelados, que exigem menos preparo para serem consumidos. Acabam sendo a saída imediata para as mulheres que precisam alimentar suas famílias submetidas a uma sobrecarga enorme de trabalho dentro e fora de casa. No entanto, é uma saída que tem consequências: além de reforçar o poder destas empresas sobre nossas vidas e territórios, gera o adoecimento das pessoas no médio e longo prazo. Por isso, a aposta pela organização a partir da agroecologia e da comida de verdade carrega consigo inúmero significados políticos: a aposta pela coletivização do trabalho, pelo estreitamento dos vínculos comunitários, pelo cuidado consigo, com o próprio corpo e com o dos outros também, e pela saúde dos nossos territórios.
Natália Lobo é agroecóloga, Gaelle Scuiller é historiadora e Renata Reis é assistente social. Todas são parte da equipe técnica da SOF.
Para saber mais sobre ações de solidariedade da MMM, acessa a revista Mulheres em movimento sustentam a vida: as ações de solidariedade da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil, no site da Sempreviva Organização Feminista (https://www.sof.org.br/)