A pesquisa foi coordenada pela professora Ana Lúcia Silva Souza e contou com a colaboração de pesquisadores e pesquisadoras do Reconexão Periferias, do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI-USP), do Núcleo de Estudos Guerreiro Ramos (NEGRA-UFF), do Grupo Rasuras – letramentos de reexistência na diáspora negra (Rasuras-UFBA) e de outras instituições.

Os resultados da pesquisa foram apresentados e debatidos em programa transmitido na quarta-feira, dia 22. O debate pode ser revisto aqui.

O Reconexão Periferias preparou um infográfico que condensa alguns dos principais resultados. O documento pode ser baixado aqui.

As lâminas da apresentação detalhada da pesquisa podem ser baixadas aqui.

Histórico

Em 2020, o projeto Reconexão Periferias identificou a necessidade de elaborar um estudo sobre as formas de sociabilidades coletivas nas periferias brasileiras, considerando que os espaços de encontro e interação nos territórios conformam identidades, valores e perspectivas políticas sobre um projeto de sociedade. No entanto, o isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19 inviabilizou uma pesquisa nacional com trabalho de campo nos territórios e também demandou ampliação do tema, dado que o isolamento alterou a atuação e interação nas comunidades.

Antes do trabalho de campo virtual foi realizada uma primeira etapa da pesquisa ainda no primeiro semestre de 2021, referente ao levantamento do estado da arte. Nesse primeiro momento, avançamos no aprofundamento sobre os conceitos de periferias, sujeitos periféricos e sociabilidade, além do levantamento e pesquisa sobre lugares e atividades que se destacam no cotidiano e sociabilidade das periferias, como igrejas, atividades culturais, centros comunitários e times de futebol de várzea. A partir dessa primeira etapa de revisão da literatura, foi elaborado o desenho e questionário da pesquisa de campo.

Nesse sentido, a proposta foi redesenhada para um levantamento de dados junto às organizações do Mapeamento de Movimentos Sociais e Coletivos das Periferias Brasileiras, realizado pelo Reconexão Periferias desde 2018. Selecionamos 80 grupos com diferentes perfis presentes em todas as unidades da federação. Isto inviabilizou a coleta de informações em espaços de sociabilidade mais conservadores que não fazem parte do escopo do mapeamento, como as igrejas, mas permitiu entender como estes aparecem nas narrativas dos grupos e coletivos entrevistados, tanto no que se refere à presença em seus territórios como sobre a forma que se relacionam com eles. Entre os meses de agosto e dezembro de 2020, a equipe do estudo aplicou um questionário a distância com o objetivo de compreender desde os elementos disparadores para a criação das organizações periféricas, bem como seus campos de atuação, tipos de atividades realizadas, públicos mobilizados, financiamentos, experiências de sociabilidade promovidas e/ou identificadas no território. as formas de participação da população, relação com a política institucional, conflitos de interesse nos territórios, comunicação comunitária e as condições, estratégias e perspectivas de atuação durante e após a pandemia, bem como sobre o efeito dessa pandemia em seus territórios.

Debate realizado na quarta-feira

A versão final do relatório da pesquisa conta com as seguintes seções: Questões centrais e objetivos; Conceitos chave; Desenho da pesquisa; Metodologia; Perfil das organizações; Ação e interação nos territórios; Sustentabilidade da militância; Representação institucional; Articulação territorial e incidência política; Desafios da militância comunitária; Potências da militância comunitária; Perspectivas em tempos de pandemia: impacto nas organizações e nas comunidades e percepções da ausência e presença do Estado; Perspectivas de atuação; e Conclusões gerais.

De modo geral, o estudo demonstra que os coletivos e movimentos das periferias interferem de forma cotidiana em seus territórios e defendem pautas e agendas que confrontam o conservadorismo, como violência, racismo, gênero, sexualidade, política de drogas, informalidade, dentre outras. Além disso, no período de pandemia, a atuação concreta dos grupos buscou atender às necessidades básicas e imediatas das suas comunidades, com mutirões de comunicação comunitária preventiva e promoção do acesso à informação, ações de ajuda mútua, suporte às famílias para acesso às políticas públicas emergenciais e adaptação de suas atividades de acordo com as recomendações sanitárias.

Este estudo, embora tenha o alcance de 80 coletivos e movimentos sociais das periferias brasileiras, retrata a realidade de 27 unidades da federação, 48 cidades e territórios urbanos e rurais. Estes grupos têm um perfil diversificado, atuando desde a articulação política ao acesso aos bens culturais, direitos sociais, formação, comunicação, sustentabilidade, enfrentamento ao racismo, luta por terra e moradia, associativismo e redes de ajuda mútua comunitárias, enfrentamento à violência etc. Desta forma, configura-se como um importante referencial para entender a organização e a militância periférica no país.

O estudo também evidencia que as periferias são plurais e são definidas pelas relações de poder que estabelecem fronteiras e condições desiguais tanto entre territórios diferentes ou dentro do mesmo território, e que criam padrões normativos que nomeiam e posicionam grupos sociais de pautas emancipatórias como os sujeitos privilegiados ou subalternos que ocuparão ou não posições estratégicas em relação às instituições que definem os rumos da vida em sociedade. Neste sentido, a periferia não se desenha pela distância territorial, mas pela distância que se tem dos espaços de poder que podem ou não garantir dignidade e direitos fundamentais. Os grupos entrevistados trazem como contribuição algumas categorias de periferias: periferias econômicas, periferias itinerantes, periferias urbanas, periferias no centro, periferias rurais, periferias de povos e comunidades tradicionais, periferias invisíveis e periferias globais.

Nos diferentes territórios, as periferias têm formas de articulação, resistência e luta por direitos. E o que as organizações aqui apresentadas nos dizem sobre isso? Quase metade delas ainda não é institucionalizada, mas de forma diversificada atuam e/ou dialogam com espaços formais para reportar as agendas dos seus territórios e incidir sobre a movimentação política local, regional e nacional. Da mesma forma, os grupos periféricos se organizam para disputar recursos formais para a sustentação de suas ações, mas também desenvolvem estratégias autônomas de sobrevivência. Esses e outros fatores apontam que a militância periférica transita entre a autonomia/independência e o reconhecimento do papel do Estado.

A sociabilidade promovida pelos grupos periféricos é, principalmente, de formação, articulação e intervenções culturais. Muitos temas de arregimentação dos grupos relacionam-se às pautas sociais emancipatórias, por vezes ligadas à mobilização ou afirmação de identidades, mas suas narrativas deixam claro que não há uma linha de distinção tão evidente entre o político-econômico e o cultural, que estão diretamente relacionados. O reconhecimento leva grupos historicamente discriminados a serem vistos como sujeitos de direitos para que, assim, possam acessar as esferas políticas e econômicas. Em outras palavras, o reconhecimento é um caminho para alcançar a justiça social, já que opressão e dominação estão correlacionadas neste modelo político-econômico que explora grupos historicamente discriminados.

Durante a pandemia, mudou-se o foco. As agendas desses grupos, tão urgentes, deram lugar às necessidades imediatas da população: desemprego, fome, saúde, educação, violência, informação etc. Além de se verem impedidos de desenvolver as ações devido às medidas necessárias para o enfrentamento da pandemia de Covid-19, foram desafiados a adotar estratégias emergenciais para enfrentar a fome, a desinformação e a violação de direitos fundamentais. Demonstram, nesta pesquisa, como chegaram antes do Estado em alguns casos para resolver os problemas de sua comunidade, assim como estão se preparando para enfrentar os desafios do novo contexto.

Apesar das adversidades sociais, econômicas e políticas, essas organizações permanecem atuando nas periferias com centralidade nas sociabilidades periféricas e com um forte comprometimento com a população. Esse comprometimento se evidencia em todo auxílio e trabalho assistencialista que as entidades têm prestado às comunidades, desde a arrecadação e distribuição de cestas básicas até as cobranças jurídicas ao poder público. Para além do acolhimento, as organizações possuem um comprometimento com o acesso à informação, formação e conscientização da população, o que é ainda mais importante para o engajamento político das comunidades e para a luta por direitos.