Por Rose Silva
Nascida e criada em São Paulo, Pagu Rodrigues é indígena fulni-ô, único grupo do Nordeste que conseguiu manter viva e ativa sua própria língua – o ia-tê. Formou-se socióloga pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente é estudante de Direito. Integra a Comissão de Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e também é secretária Municipal de Mulheres do PT em São Paulo.
Filha de pai e mãe indígenas, foi criada na cultura do seu povo, inclusive nas dimensões da religiosidade e da língua, mas como nasceu fora da aldeia, precisou passar por um período de reconexão com seus familiares. “Não havia uma dificuldade nesse reconhecimento, porque eu já sabia falar a língua, já tinha todo um processo cultural mesmo ali presente, e eu tinha família viva na aldeia, como tenho até hoje. Eu tenho todos os meus familiares lá, dos mais distantes aos mais próximos. E eu precisava retomar um pouco essa perspectiva de poder fazer parte. Diria até que de conseguir construir essa luta a partir do meu povo, porque a gente tem o âmbito geral da luta, do movimento indígena. Mas quando pertence a um grupo étnico, tem de assumir o compromisso primeiro com ele”, afirma.
Hoje com 37 anos, Pagu começou sua luta política aos dez anos de idade, no movimento de moradia, já em contato com o PT, pois várias pessoas da sua família, originária de um território em Pernambuco, já dialogavam com partido. Desde o início de sua militância participa dos movimentos indígena e feminista, dos quais tornou-se liderança na capital paulista. Nessa entrevista, ela fala sobre o desafio da retomada de direitos que foram usurpados das mulheres e dos povos originários durante o governo genocida de Bolsonaro e sobre os caminhos que devem ser percorridos pela sociedade neste novo momento da história do Brasil.
Ela destaca que é preciso superar a visão romântica de que as pessoas indígenas vivem em aldeias: “o que eu acho que é importante, que ajuda a reforçar não só a presença indígena nos espaços, mas também, e eu diria que sobremaneira, das mulheres indígenas, é reconhecer a população indígena a partir da sua plurinacionalidade. Somos mais de 350 etnias no Brasil”, afirma.
Reconexão Periferias – Passamos por uma situação terrível depois do golpe de 2016 , que retirou muitos direitos das mulheres no geral e das negras e indígenas em especial. Depois, com Bolsonaro, vivemos uma política de morte, de extermínio de todos esses grupos. A agora, vivemos uma nova época. Por onde o novo governo deveria começar para recuperar o que foi perdido?
Penso que existem algumas perspectivas que caminham juntas. A primeira, quando a gente pensa a presença indígena no Brasil, é a questão racial. O Estado brasileiro ainda é bastante racista e muito se fala sobre isso em relação à questão negra, mas há pouca formulação do que é o racismo em relação a populações indígenas. O Estado tem como concepção a perspectiva integracionista da população indígena e conhece muito pouco nossa diversidade. Por exemplo, a gente tem 36% da população indígena do Brasil que vivem em contexto urbano, e uma parte pequena, que é 3%, vive de fato em território demarcado. Essa perspectiva integracionista não reconhece a presença indígena em espaço nenhum, então o indígena passa a ser colocado no que a gente chama de não-lugar desse debate. Não reconhecem nossos direitos específicos, que vão desde demarcação de terras, passando por questões de saúde, de educação, de enfrentamento à violência contra mulheres, até a perspectiva econômica mesmo. É um Estado que se formou violando os nossos direitos, né? A primeira grande violação foi contra os povos indígenas, a partir de uma afirmação, inclusive, da cultura do estupro. Aquela história que todo mundo tem, “minha avó foi pega a laço”, reforça no imaginário a cultura do estupro. Acham que era bonito caçar indígenas na mata e aprisionar, estuprar, casar e fazer virar trabalhadora doméstica. Por que éramos considerados bichos. E a outra vertente econômica é que foi em cima dos nossos territórios que se consolidou uma estrutura de Estado extrativista pautada no garimpo, no agronegócio, na monocultura, na grande lavoura, no latifúndio, na pecuária extensiva. Começou com o extrativismo de pau brasil, foi adentrando para a expropriação de terras indígenas e aprofundando essa política, esse modelo extrativista que pretende acabar com tudo o que temos em prol do lucro e do capital. Então, acho que essas são as discussões estruturantes e de fundo. Agora existe um avanço muito grande com o novo governo Lula, que é o Ministério dos Povos Indígenas, pela primeira vez na história de constituição desse Estado, e temos uma indígena presidindo a Funai. Sabemos que a chance de avançar nessas pautas é muito grande, mas não é uma briga simples. Temos um enfrentamento a ser feito com o modelo do capital e vamos depender de todas as frentes do governo para que essa discussão realmente seja aprofundada.
Como você vê o processo de demarcação de terras indígenas daqui por diante?
Tenho de fato a expectativa de que seja possível ter as terras indígenas demarcadas, pois quase nenhuma terra indígena no Nordeste é demarcada praticamente. A minha aldeia, por exemplo, não tem a terra demarcada, o processo está paralisado desde 2010. A gente só tem um reconhecimento enquanto reserva indígena. Essa condição é idêntica em quase todos os estados do Brasil, tirando a região Norte do país, a Amazônia, que é onde estão a maioria das terras indígenas demarcadas, tudo o mais está para ser feito. O que significa concretamente que é preciso comprar uma briga com o latifúndio, com o agronegócio e abrir profundamente uma discussão de modelo econômico e modelo ambiental que a gente quer para o próximo período. Penso que esses são desafios diante dos avanços que a gente conseguiu agora com o governo Lula.
“O que eu acho que é importante, que ajuda a reforçar não só a presença indígena nos espaços, mas também, e eu diria que sobremaneira, das mulheres indígenas, é reconhecer a população indígena a partir da sua plurinacionalidade. Somos mais de 350 etnias no Brasil”
Uma das grandes desigualdades estruturais de nossa sociedade é a desigualdade de gênero no mundo do trabalho. Mesmo com governos mais progressistas e democráticos, avançamos pouco nessa questão. Você apontaria quais questões precisam ser enfrentadas nessa temática para avançarmos? Vê o PT focando essas questões?
Historicamente o PT é o primeiro partido que, na verdade, enquanto organização política institucional, abre essa discussão em relação ao Estado e até em relação às suas próprias estruturas internas, o que forçou, inclusive, o debate sobre cotas de gênero nas eleições, sobre cotas nos espaços de direção do PT. Ele realmente é o partido precursor da discussão de gênero, porque as mulheres do PT, que são as feministas, foram para cima dentro das fileiras internas e depois para fora, além da participação grandiosa que têm em vários movimentos sociais feministas. Importante destacar isso, e a gente sabe que o PT tem muito ainda a contribuir com essa pauta, porque, apesar dos avanços, eu sempre digo que a gente está aquém do desejado. Mas quando temos uma perspectiva de um governo democrático popular, novamente algumas discussões são possíveis para fazer com que a pauta avance. A primeira delas é o que se chama de interseccionalidade da política pública. Não se pode ignorar que a diferença no mercado de trabalho em relação às mulheres atinge, sobretudo, as mulheres negras periféricas e as indígenas, que estão ali na base da pirâmide ou nem sequer são lembradas. Penso que essa é uma questão a ser interseccional, com todos os ministérios envolvidos.
Como avançar na defesa da renda igual para trabalho igual?
Questões muito históricas do movimento de mulheres e do movimento feminista ainda não conseguimos concretizar, como a igualdade salarial. Ela está pautada numa igualdade de oportunidades e de direitos, o que significa que enquanto não houver políticas que garantam a autonomia econômica das mulheres, não vai haver avanço na discussão da igualdade salarial.
O que eu quero dizer com isso? O Estado realmente precisa se incumbir da política de cuidados, com ampliação de creches, inclusive noturnas, um sistema de educação que compatibiliza a rotina das mães em relação aos seus filhos, para que elas possam trabalhar e os filhos tenham o direito a educação de qualidade. Precisa criar restaurantes coletivos, lavanderias coletivas, o que representa a distribuição do trabalho de cuidados, que hoje está na mão das mulheres no âmbito privado, em suas casas. Muitas vezes essa divisão sexual/racial do trabalho impossibilita que as mulheres tenham o grau de estudo necessário para o mercado de trabalho, e, quando têm, muitas vezes até mais do que os homens, ainda assim elas não conseguem compatibilização numa estrutura de Estado para assumir um cargo de chefia. Para além da política, do machismo, da estrutura do patriarcado, elas já saem de pronto atrás de qualquer homem branco, por exemplo. A média geral é que os homens recebem mais do que as mulheres. Então é tempo de aprofundar o debate sobre as políticas de cuidado, a divisão de tarefas organizada pelo Estado, uma discussão política essencial para garantir igualdade salarial entre homens e mulheres que ocupam inclusive os mesmos cargos. Porque muitas vezes a mulher trabalha em um determinado lugar e acaba cumprindo muito mais horas de trabalho, recebendo muito menos do que um homem naquela mesma posição. Outro ponto é que a maior parte das pessoas que ocupam o trabalho informal com a renda mais precarizada são mulheres negras. E a gente precisa enfrentar esse debate. Nós estamos saindo de uma pandemia que só agravou ainda mais toda esta dinâmica de gênero no Brasil e que não conseguimos dar conta, porque sequer conseguimos, por exemplo, implementar a renda básica. Não enfrentamos a violência contra a mulher, sobretudo a violência doméstica, que teve picos altíssimos durante o período. Então a gente precisa conseguir aprofundar isso, não só reaver direitos perdidos no governo Bolsonaro, mas avançar.
As mulheres de modo geral são subrepresentadas no Parlamento, mas quando falamos das indígenas é ainda maior a ausência delas nos partidos políticos, nas assembleias legislativas, no Congresso Nacional e nas câmaras municipais. O que os partidos podem fazer para aumentar essa representação?
Já está mais do que no tempo de haver mais mulheres eleitas para discutir autonomia sobre o corpo, legalização do aborto, trabalho, renda e enfrentamento à fome e à miséria. Só que a gente não vai conseguir chegar a isso se não passar pela discussão de cotas. Temos cota de saída e garantimos 30% de mulheres inscritas e suas candidaturas, mas não que sejam eleitas. Precisamos discutir no mínimo 50% na cota de chegada. Então a gente vai ter que começar a discutir lista paritária, mudança na legislação eleitoral que garanta que 50% das mulheres mais votadas estejam de fato ocupando esses espaços, cargos nos legislativos do Brasil, para que realmente também possamos avançar em uma discussão sobre política pública.
Do ponto de vista da opinião pública, hoje a pauta do feminismo está mais ligada às liberdades individuais do que aos direitos coletivos, como foi no passado. Penso que as pautas como igualdade salarial, direito a creche, divisão do trabalho doméstico e do cuidado com crianças e idosos têm menos visibilidade. Você concorda que seja assim? Como vê essa mudança?
Existe um movimento histórico que possibilitou isso num primeiro período todo da discussão do feminismo aqui no Brasil, que se deu sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, até por conta de uma conjuntura de enfrentamento à ditadura militar. E havia uma um processo de organização muito contundente das mulheres em torno de todas essas pautas históricas das mulheres, sobretudo as mais pobres, da classe trabalhadora. E o que começou a acontecer no momento em que esse movimento se levantou no Brasil é que houve uma espécie de criminalização da discussão do feminismo. Então, muita gente achava que as feministas são anti-homem. E toda a estrutura do patriarcado se levantou contra os movimentos feministas, houve uma criminalização mesmo, a um ponto de que durante muito tempo o feminismo não era uma discussão popularizada, embora houvesse uma plena compreensão dos trabalhadores em relação à necessidade de atender e garantir os direitos das mulheres trabalhadoras. Mas ainda assim, da perspectiva da pauta do aborto, de política institucional, a gente caminhava muito lentamente. A discussão sobre o voto, a participação feminina, que mesmo na Constituição Federal de 1988 ainda não ficou exatamente estruturada. Com o passar dos anos e a pressão do movimento social feminista que de fato era muito grande garantimos o avanço de inúmeras pautas de direitos das trabalhadoras, de discussões que antes não eram encaradas na perspectiva da estrutura do Estado. Então o que começou a acontecer? Esse debate começou a ser apropriado por um certa pauta liberal. Termos como o “empoderamento” são um exemplo bem típico disso. A gente estava discutindo igualdade de direitos, redução de carga horária de trabalho, distribuição do trabalho, de cuidados e o que o liberalismo estava fazendo? Pegando essas bandeiras feministas de esquerda e dizendo “Ah, empoderamento!” Queremos então uma CEO de uma empresa que ganhe 30 mil reais, não importa se ela vai trabalhar dezesseis horas por dia, se vai dar conta dos trabalhos de cuidado da família e dos cuidados de si mesma, o que importa que ela chegue ali, no espaço de poder. Todo o resto a gente não está discutindo, com quais condições aquela mulher chega ali, se vai sofrer assédio sexual, se vai sofrer violência doméstica, se vai ter alguém que divida esse trabalho de cuidados com ela dentro de casa ou se o Estado vai combater essa opressão. É o que a gente tem visto acontecer cada vez mais: o liberalismo está se apropriando dessas pautas. Então, a gente sempre discutiu as coisas em termos de solidariedade. O liberalismo, em termos de sororidade e empoderamento. E assim continua, na verdade, jogando na mão das mulheres a responsabilidade sobre as transformações, dizendo que podem ser feitas de maneira individual. Então não se discute igualdade coletiva, não se discute qual é a responsabilidade do Estado no enfrentamento das estruturas do patriarcado. Não se discute igualdade a partir da estrutura econômica. Não se discute, por exemplo, a necessidade de que a gente tem que rever o sistema de divisão sexual, racial, do trabalho no Brasil. Então não tem problema, você é uma empreendedora, você trabalha 16 horas, você continua dando conta do seu filho, o marido não, e não vai pagar pensão, porque, afinal de contas, você é uma mulher empoderada que ganha dinheiro, não precisa do homem pra nada. Só que a gente não está discutindo o quê? A responsabilidade da igualdade dos papéis. E esse é o discurso atual. E é por isso que é importante quando a gente vai para as ruas enquanto movimento feminista e recoloca as bandeiras, porque nós estamos falando de um processo coletivo. O feminismo não é a supremacia da mulher em relação aos homens. O feminismo é um projeto de igualdade entre mulheres e homens e, portanto, para ele existir tem de haver direitos e garantias de direitos para as mulheres, que estão sobretudo suprimidas dentro dessa base. É uma revisão profunda do sistema e o fim do patriarcado. Não é suficiente que uma mulher seja CEO de uma empresa sem a discussão de que o filho dela precisa ter creche pública.
Sobre o aumento do feminicídio durante a pandemia, da violência contra a mulher e a normalização que acontece no dia-a-dia. Todo dia uma mulher é morta, as pessoas têm contato com essa informação, a vizinha espancada é levada para o hospital e ninguém faz nada. Quais políticas públicas existem em relação a isso? E a sociedade, pode fazer alguma coisa?
O feminicídio é o projeto de genocídio em relação às mulheres. Então, primeira coisa é que estamos saindo de um período em que o governo foi incentivador desse tipo de violência, desse tipo de prática contra as mulheres, e por isso eu diria que o feminicídio se ampliou muito nesses últimos anos. A pandemia tem uma responsabilidade nisso? Tem. Mas a gente sabe que a responsabilidade maior vinha dos incentivos de um discurso misógino feito pelo então presidente da República, o Bolsonaro, né? Foi o que realmente fez estourarem os índices de violência contra a mulher no Brasil. Na contrapartida, não havia nenhuma política pública atuante para fazer frente a esse índice de feminicídio e de violência doméstica. Já era sabido, a partir do que estava sendo indicado na China, que esse período de quarentena no Brasil ia acontecer, então, algumas medidas possíveis que não foram tomadas. Todos os investimentos destinados para a saúde que constavam como emergência humanitária não tinham nenhum tipo de protocolo, por exemplo, específico para atender mulheres vítimas de violência doméstica ou de ou qualquer outro tipo de violência, sexual e outras. Estamos em um período em que teremos de retomar muito todas as políticas públicas que foram desmontadas. Antes a gente tinha programas como o Patrulha Maria da Penha, que garantia às mulheres que estavam sob medida protetiva acionar o serviço público na hora em que o agressor se aproximasse. Agora, a mulher tem medida protetiva, o agressor se aproxima, comete o feminicídio e nada acontece. Ou pura e simplesmente a mulher nem consegue a medida protetiva. Para além dos serviços que a gente chama de rede de enfrentamento à violência contra as mulheres, foram desmontados durante o governo Bolsonaro e sofreram um corte de mais de 50% de orçamento. E aí tudo o que que a gente chama de casas de acolhida, os abrigos e as casas de passagem que recebem a mulher vítima de violência não funcionavam. E o sistema de denúncia foi desligado durante o governo Bolsonaro, então, nem sequer temos com precisão quais eram esses dados de violência contra as mulheres, por que o 180 simplesmente não funcionou. Outras frentes, como a própria saúde, que não tinha mais protocolo para atender mulheres vítimas de violência e os equipamentos e organismos de política para as mulheres deixaram de existir. Então, a gente vai ter de estruturar tudo isso, essa é a verdade. E junto com isso, precisamos fazer um debate com a sociedade, pois as pessoas não se envolvem. Ainda existe na cabeça aquela frase em briga de marido e mulher a gente não mete a colher. Ou, quando a pessoa mete a colher, muitas vezes não sabe qual o caminho a ser feito, por exemplo, que se pode ir fazer corpo de delito sem necessariamente ter que ter registrado boletim de ocorrência.
Existe uma leitura de que nos últimos anos cresceu muito a organização das mulheres indígenas, porque ela se tornou visível para a sociedade. Qual é a sua sua visão, cresceu mesmo?
Na verdade, a gente sempre esteve presente em quase todas essas lutas, tanto dentro dos nossos territórios, quanto da perspectiva nacional. Mesmo quem está lá em Brasília, na política de demarcação de terras, na reivindicação sobre saúde, sobre educação, a gente sempre esteve presente. O que eu acho que faltava muito era uma visibilidade dessa discussão, porque os não indígenas têm uma percepção muito equivocada de que, dentro dos nossos territórios e dos nossos espaços, as mulheres não são lideranças. É como se as indígenas sempre obedecessem aos homens. E, na verdade, na maior parte das dinâmicas das etnias que a gente tem no Brasil, as mulheres são sempre parte muito forte nos processos de decisões políticas internas. Pensando que se trata de um Estado fundamentado no patriarcado, se ele de maneira geral não atende aos interesses gerais das mulheres, atende menos ainda aos interesses das mulheres indígenas. A gente tinha a necessidade também de dialogar com as bandeiras específicas das mulheres indígenas, e por isso organizamos a primeira e a segunda Marcha Nacional das Mulheres Indígenas. Embora a liderança das mulheres indígenas já exista no movimento há muitos anos, o que eu acho que é importante, que ajuda a reforçar não só a presença indígena nos espaços, mas também, e eu diria que sobremaneira, das mulheres, é crucial começar a reconhecer a população indígena a partir da sua plurinacionalidade. Somos mais de 350 etnias, cada uma tem a sua especificidade, a sua dinâmica cultural, interna, política,Algumas são mais relacionadas a um sistema de organização patriarcal, mas temos etnias que originalmente não são patriarcais, são ilhas de organização matriarcal. Embora não se possa negar que no processo de colonização dado, até a violência com que ele adentrou os territórios indígenas deixou um legado do patriarcado para uma grande parte dos povos indígenas, e isso também está em discussão internamente em cada território. Mas da perspectiva da política do Estado, precisa começar a haver ter um diálogo mais ampliado. Em relação às mulheres indígenas que sofrem violência, é dez vezes mais difícil você ter equipamento e formalizar uma denúncia. Ela leva cinco dias para conseguir chegar. Há indígenas que nem sequer conseguem sair do seu território ou compreender o que elas precisam acionar para terem uma rede de apoio. Quando eu penso no agronegócio, por exemplo, há vários territórios indígenas onde posseiros, grileiros, latifundiários sequestram mulheres indígenas, estupram mulheres indígenas e usam isso, inclusive, como moeda de troca, como forma de fazer, por exemplo, com que aquela etnia se retire daquele território.
Como você vê a luta indígena no Brasil hoje?
Estamos em um processo muito importante no Brasil de garantir a visibilidade dessa pauta, dessas demandas das mulheres indígenas e reforçar necessidade de que agora, dia 8 de março, temos um ato das mulheres para justamente levar às ruas todas essas demandas, bandeiras, pressionar o governo para que a gente consiga avançar nos nossos direitos e falar da importância que a população indígena tem e de maneira estratégica, para repensar o modelo do capital. A nossa luta realmente é ponta de lança na revisão desse sistema produtivo, que é uma política de morte mesmo para a população de maneira geral. E aí a resistência que a gente faz há 523 anos é a prova de que é possível pensar outra lógica produtiva, outra lógica de mundo, para garantir uma mínima continuidade de todos os direitos da natureza e de todo mundo.