O presente artigo tem por objetivo dar visibilidade ao processo de luta e resistência das mulheres indígenas na democracia do Brasil.

Por Nedina/Xiu Yawanawa

Antes do movimento indígena

Assim como na sociedade não-indígena, os povos indígenas também seguem a linha do patriarcado, isto é, as decisões são tomadas exclusivamente pelos homens. Dentro das aldeias, os papéis entre homens e mulheres são definidos e vivenciados no cotidiano.

Homens são provedores de alimentos, educação dos filhos homens e trabalhos mais pesados, como a construção de casas e derrubada de roçados. Os que lideram e tomam decisões nos espaços de assembleias em que se concentram as famílias das comunidades para tratar de assuntos gerais do povo como resolução de conflitos, escolhas dos responsáveis das áreas na saúde, educação, agentes agroflorestais.

Já as mulheres, mesmo sem destaque de lideranças, desempenham papéis importantes na família e organização social da aldeia que podem ser observados ao longo do processo de participação comunitária.

São responsáveis por trabalhos domésticos como lavar roupas, fazer as comidas, fazer terreiros ao redor da casa, cultivos dos roçados, plantar, limpar, fazer a colheita e cuidar das crianças, principalmente a educação das filhas.

Na convivência diária com os filhos, ensinam a língua materna, repassando o respeito às tradições sobre o comportamento com a família e a produção de artesanato para fortalecimento da identidade e cultura do povo, uma forma de perpetuar os conhecimentos tradicionais para as novas gerações.

Além das atribuições domésticas é possível notar a participação das mulheres na organização e limpeza dos shuhu (kupixaus) ou da própria casa do cacique da aldeia, produção da alimentação para seus maridos, cuidado com os filhos para não fazerem barulho e ficar como ouvinte desde jovens até mais velhas nas grandes reuniões da aldeia.

Porém, há uma presença feminina que se destaca entre as demais, a esposa do cacique. Ela tem um papel importante de liderança nos trabalhos coletivos e sociais da aldeia, pois é sua a responsabilidade de juntar as demais para organizar os alimentos, os espaços de reuniões e estar à frente das rodas de mariris (danças em roda), além de atuar como conselheira e mediadora de conflitos entre as famílias.

“(…) Criamos também o “Mariri Yawanawa”. Foi feito o primeiro no final de 2008 e 2009, voltado a ser uma alternativa para favorecer as comunidades… O Mariri continua acontecendo todo mês de Julho. Agora nesse ano aconteceu o quarto. Então reúnem-se todas as aldeias, com poucas pessoas de fora para visitar os Yawanawa e conviver com a gente…” Trecho de Plano de Vida Yawanawa. Disponível aqui. Acesso em 06/03/2023

O momento em que se percebe uma participação mais relevante das mulheres indígenas é como parteiras, ajudantes do pajé e conhecedoras de plantas medicinais, quando solicitadas pelas famílias da comunidade para curar determinadas doenças.

“Nesse processo criamos o Centro Cerimonial de Cura e Terapia Yawanawa, uma escola, um centro de aprendizado da espiritualidade Yawanawa, o qual é comandado pelo Paulo Matsini e o Tata Txanu, que é o pajé mais antigo e sábio de nosso povo. Também a Mariazinha, líder que também faz dietas, a pajé Hushahu também, que foram as primeiras mulheres Yawanawa… Isso é a nossa cultura que também, não é estática, vai mudando… Criamos uma política de valorização das mulheres, dos mais velhos, das crianças” Trecho de Plano de Vida Yawanawa. Disponível aqui. Acesso em 06/03/2023

Disponível aqui, acesso em 06/03/2023.

Acervo da Sitoakore, por Ramon Aquino

Após o movimento indígena

A partir do surgimento da União das Nações Indígenas do Acre-UNI/AC, organização que representava todos os povos indígenas do Acre Sul do Amazonas e Noroeste de Rondônia, o Movimento indígena do Acre, que teve grande destaque nos anos 1990 a 2000, deu início a outro momento da participação das mulheres indígenas.

A UNI/AC passou a ser referência nacional de movimento indígena por sua atuação em defesa dos direitos dos povos indígenas aliado a outros movimentos de outras regiões do Brasil. Com essa crescente movimentação, os caciques passaram a ter com mais frequências os encontros de liderança, como assembleias para eleição da coordenação geral, seminários e oficinas que eram realizados em terras indígenas ou na capital.

Nessa ocasião, eles passaram a trazer suas mulheres, irmãs ou filhas para ajudá-los em questões pessoais como lavar suas roupas, servi-los nos intervalos de alimentação. Uma figura ajudadora, porém, foi nesse contexto que as mulheres passaram a também compartilhar suas vivências e trocas de informações sobre a vida em comunidade e a expressar entre elas suas opiniões sobre as temáticas debatidas nas rodas masculinas, gerando o interesse e a necessidade de levar suas posições e contribuições com um ângulo feminino das questões.

Emoção e força: mulheres indígenas compartilham suas vivências e projetam aldear a política. Disponível aqui. Acesso em 06/03/2021.

“As mulheres sempre estiveram presentes nas organizações e espaços de luta do movimento indígena, porém, nos últimos anos, sua atuação tem se transformado e mulheres de diversos povos passaram a assumir posição de liderança. Como demonstra o levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), cresceu o número de organizações de mulheres indígenas, alcançando, em 2020, o total de 92 organizações mapeadas, a maior parte delas criadas a partir dos anos 2000. Ainda que tenham estado em todas as edições do Acampamento Terra Livre, organizado pelo movimento indígena desde 2004 em Brasília, apenas em 2016 as mulheres realizaram sua a primeira plenária neste espaço. Em 2019, foi inaugurada a Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, mais um espaço de organização do movimento, convertido em importante ação para denúncia e enfrentamento das pressões antiindígenas que ganhavam espaço no Congresso e no Executivo nacional. Desde então, a marcha acontece a cada 2 anos em Brasília, organizada com apoio da ANMIGA (Associação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade) e da APIB, e traz como principal bandeira a luta pelo território e defesa das demarcações.” (Mulheres indígenas e a reconstrução da política indigenista no Brasil). Disponível aqui. Acesso em 06/03/2021.

Criação do Grupo de Mulheres Indígenas do Acre – GMI-UNI/AC 1997

A participação das mulheres indígenas nas reuniões tomou maior proporção nas discussões e abriu outros debates nas programações dos eventos em meados de 1997. Então, passaram a reivindicar um espaço específico de presença na organização da UNI. Dessa forma, em consenso da maioria das lideranças, criaram o Departamento de Mulheres, juntamente com o Departamento de Jovens Indígenas.

Neste contexto, enfatizam as temáticas mais associadas às necessidades femininas, notando que os temas ligados à saúde, educação, cuidado familiar, criação dos filhos, tudo que girava em torno do universo feminino, não era falado por lideranças, que concentravam todas as atenções ao que o universo masculino considerava como prioridade, fazendo notar a ausência do papel feminino na ordem social e cultural dos povos indígenas.

No final do ano de 2002, pela primeira vez uma mulher indígena foi indicada e eleita pela maioria dos votos das lideranças para compor a coordenação geral da UNI/AC e outras como conselheiras fiscais, um marco importante da participação das mulheres indígenas em espaço de tomadas de decisões. A partir disso, as temáticas de cunho feminino são presentes em debates e surgem os projetos pioneiros de cuidados preventivos de saúde para a mulher indígena e valorização das parteiras, que têm papel importante nas comunidades.

A UNI/AC, alinhada aos movimentos indígenas da Amazônia e Nacional, assumiu o convênio de saúde UNI/FUNASA/

AC, deixando de fazer o controle social para a ser a ONG executora das ações de saúde. Nesse processo de administração, enfrentou muitos problemas e desafios, o que impossibilitou a finalização do projeto. Por orientações jurídicas, teve de decretar falência da organização, paralisando todas as ações, inclusive as atividades das mulheres indígenas.

Criação da Sitoakore

Após a falência da UNI/ AC em 2004, as lideranças retomaram suas organizações e buscaram se fortalecer em suas regiões e comunidades. Já as mulheres indígenas ficaram sem referência, pois estavam ligadas diretamente à UNI/AC. Mas, em 2005, decidiram se organizar e, de forma independente, realizaram uma assembleia, criando a Organização de Mulheres Indígenas do Acre Sul do Amazonas e Noroeste de Rondônia – Sitoakore, palavra na língua do povo Apurinã que significa “ mulheres trabalhando juntas”.

A organização de mulheres indígenas passou atuar em defesa dos direitos indígenas e seus territórios e teve seus trabalhos reconhecidos pelas comunidades indígenas do Acre e pelas Instituições governamentais e não-governamentais, pois desenvolve atividades como segurança alimentar, medicina tradicional, autonomia indígena, entre outros temas que estão relacionados com transformações mundiais.

A presença feminina em espaços de discussões é mais frequente e enriquecida por saberes ancestrais que só elas dominam. As temáticas defendidas são alinhadas a discussões das organizações mais abrangente como a União de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

A participação das mulheres indígenas é crescente. Desde a aldeia, quando passam a ocupar cargos de caciques, lideranças espirituais e coordenadoras das organizações de grandes representatividades, que outrora, foram ocupados apenas por homens. Neste aspecto, passam a desempenhar outros papéis além dos trabalhos domésticos, tornando-se assim, protagonistas de um novo processo de democratização da política indígena e não indígena

PAUTA DAS MULHERES INDÍGENAS DO BRASIL

1. Violação dos direitos das mulheres indígenas (incluindo o fim da violência contra

as mulheres, mas não limitado a este tópico)

2. Empoderamento político e participação política das mulheres indígenas

3. Direito à terra e processos de retomada

4. Direito à saúde, educação e segurança

5. Direito à tradição, cultura e diálogos inter-geracionais

6. Direitos econômicos das mulheres indígenas

7. Comunicação e processos de conhecimento

8. Processos de resistência

9. Sustentabilidade e financiamento

10. Formulação de uma estratégia de incidência política nacional e internacional

para os direitos dos povos indígenas liderada pelas mulheres indígenas.

“Voz das mulheres indígenas” Disponível aqui. Acesso em 06/03/2023.

Nedina/Xiu Yawanawa é professora indígena e assessora pedagógica na Secretaria de Educação do Estado do Acre, pós-graduada em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica, coordenadora da Organização das Mulheres Indígenas do Acre-Sitoakore.