Santos, Porto Alegre, Diadema. Cidades que costumam ser lembradas pela militância petista como expoentes das primeiras experiências de inclusão social promovidas por prefeituras eleitas pelo partido. Mas é importante incluir a cidade de Icapuí, litoral cearense, nessa lista de municípios pioneiros.

Na segunda metade dos anos 1980, um grupo de jovens estudantes passou a nutrir o sonho de ver o velho e esquecido distrito tornar-se uma cidade. No embalo desse sonho teve início uma experiência de mais de duas décadas, que projetou Icapuí no cenário internacional. Políticas públicas, especialmente na área de educação e saúde, foram premiadas e reconhecidas até mesmo por adversários.

Dedé Teixeira, pouco mais de um menino à época que marca o início desse sonho, fala sobre a experiência à Revista Reconexão Periferias de outubro, toda ela dedicada ao tema eleições (obtenha a edição aqui). Numa triste semelhança com o cenário nacional, ele conta que Icapuí sofre hoje uma espécie de revanche direitista, com o desmonte daquilo que já foi motivo de orgulho e bem-estar. No afã do retrocesso, os atuais administradores chegaram até mesmo a queimar documentos e fotos que faziam parte do acervo da prefeitura e que atestavam os bons tempos. Mas Dedé avisa: o PT vai voltar a Icapuí.

Acompanhe:

Reconexão Periferias: Bom dia. Estamos aqui com o companheiro Dedé Teixeira, geólogo de formação e ex-prefeito de Icapuí, no Ceará. Ele vai conversar conosco para a sessão Perfil da Revista Reconexão Periferias. Como vocês sabem, Reconexão Periferias é um projeto da fundação Perseu Abramo.

Oi bom dia Dedé, tudo bem contigo? Seja bem-vindo.

Dedé Teixeira: Oi bom dia. Prazer mesmo estar falando com vocês. Este é um momento extremamente importante para todos nós, raro pro povo brasileiro. Momento de desafios, mas com certeza construindo sonhos, fazendo a cidadania que a gente quer pro nosso povo.

RP: Eu queria que você contasse um pouco como foi sua infância, como que eram seus pais, sua família. E que depois você contasse para nós como é que você despertou para a política, o que fez você se interessar por essa coisa da organização coletiva, participar de algum movimento.

DT: Eu acho que minha infância foi muito tranquila no interior do Ceará, na cidade de Icapuí, onde eu nasci. Minha mãe era professora, na época da Sudep (Superintendência da Pesca, criada em 1962) por muitos anos, mais de 25 anos lecionando para filhos de pescadores de Icapuí. Icapuí é uma cidade que tem sua principal economia focada na pesca, e mais recentemente na pesca da lagosta. Pesca artesanal que gera oportunidade e renda. Eu nasci numa casa de mãe professora, meu pai era dono do cartório da cidade, o cartório de registro civil. E, além disso, também tinha uma pequena propriedade de 52 hectares, criava uma vaquinha, enfim nasci e me criei nos primeiros dez anos acompanhando meu pai nessas atividades. Com 10 anos, 11 anos, nós tivemos que ir morar em Aracati, que é a cidade vizinha. Nós éramos distrito de Aracati. Pra estudar, porque Icapuí não tinha escola para mais do quarto ano primário. Foi feito um esforço muito grande, minha mãe por ser professora, então nós fomos morar em Aracati. Só os filhos, eu e mais quatro irmãos e irmãs, né, pra poder estudar. Minha mãe fez um esforço muito grande – recompensado, lógico.

Créditos: Pio Jr./Alesc

RP: Sua mãe teve de interromper a atividade de magistério para acompanhar vocês?

DT: Não, ela continuou. Aliás, ela passou 22 anos ensinando os pescadores sem remuneração. Depois, se aproximando de 25 anos em que ela lecionou, ela e mais quatro professores em Icapuí, é que foi reconhecido pelo governo federal e ela foi contratada já faltando alguns anos para se aposentar. Aracati fica distante 54 km de Icapuí e ali começamos nossos estudos no Colégio Marista de Aracati. Colégio de formação religiosa né, uma congregação de irmãos que tem em todo o Brasil. E assim nós estudamos, ficamos lá até irmos para Fortaleza. Aí, para ir pra Fortaleza, mamãe, que já estava aposentada, nós, mamãe e todo mundo fomos morar em Fortaleza. Exatamente com o intuito de os filhos estudarem e terem uma outra oportunidade. Minha mãe enxergava que muitos dos meus amigos que nascemos juntos, tivemos a infância e adolescência juntos, não tiveram condição de fazer. Poucas famílias de Icapuí tiveram essa visão e fizeram um esforço tremendo para colocar os seus filhos pra estudar. A grande maioria, por falta de oportunidade, ficou como pescador ou outra atividade. Não estudaram, não estudaram. Algumas famílias, no caso da minha mãe que tinha essa visão, fizeram um esforço tremendo, meu pai e minha mãe, pra que os filhos pudessem estudar. Nós somos seis filhos, três homens e três mulheres. Todos foram estudar e cinco se formaram. O sexto não se formou porque foi uma opção dele, foi trabalhar aí e não se formou. Então, esse foi primeiro momento importante: foi na ida a Fortaleza para fazer já o terceiro ano científico e se preparar para o vestibular que a gente começou a despertar para o abandono da nossa Icapuí. Icapuí era um distrito, distante mais de 50 km da sede, abandonado, onde só ia acontecer alguma coisa nas vésperas de eleição. Nós começamos a nos incomodar com isso. Já ali com 17, 18 anos, já estudando em Fortaleza, começo a despertar para a política. Por isso juntamos vários jovens que tinham ido, feito todo esse périplo para estudar fora, sofrendo todas as dificuldades do mundo, morar na casa de parentes ou de amigos, e começamos a discutir porque nossa comunidade, nosso distrito era tão abandonado. Surgiu daí, no início dos anos 80, a gente já entrando na universidade – em 81 eu entro na Universidade Federal do Ceará, no curso de Geologia – e ali começou a despertar, e a me engajar no movimento estudantil da época, mas também com o olhar para nossa cidade, para o abandono da nossa cidade, para a falta de políticas públicas. E aí começamos a organizar. Existia uma associação dos universitários de Aracati, e ali foi todo um laboratório de discussão. Discutindo política mesmo. Em 82 um dos amigos, que é o José Airton, que também seria prefeito de Icapuí e que hoje é deputado federal, o José Airton se candidata a vereador pelo distrito de Icapuí, e nós jovens abraçamos essa candidatura com essa marca: o abandono de Icapuí, uma candidatura de um jovem universitário como nós. Isto pela primeira vez pelo PMDB.

RP: Dedé, pelo que você conta, essa candidatura a vereador lá pelo distrito de Aracati é uma espécie de mandato coletivo, que hoje está na moda, né? E aí neste mandato vocês começam a lutar pela emancipação de Icapuí.

DT: O município havia conseguido sua emancipação em 58, e até instalação, veio o golpe militar e extinguiu todo o processo. Foi anulado porque demorou muito a instalação e veio o golpe militar e voltou à estaca zero. Então já tinha esse movimento. Inclusive nós nos acercamos muito do doutor Orlando, que na época era jovem como nós e que liderou o processo de emancipação de Icapuí, junto com outros jovens que haviam vindo pra Fortaleza estudar. Nós reiniciamos todo o processo e junto com uma forte mobilização popular que culminou em 1984 com o processo de emancipação. Foi um movimento popular muito forte. O próprio prefeito de Aracati era contra, tanto que fez uma campanha contra a emancipação do distrito. Foi uma disputa mesmo, disputa acirrada. Isso gerou um grande movimento popular da cidade, que se transformou depois de emancipada. Dois de janeiro de 84 foi a data do plebiscito na cidade, e a instalação do município foi no dia 15 de janeiro de 85. E a eleição foi em 15 de novembro de 85. Naquele ano houve as eleições nas capitais, depois da redemocratização, e viramos município a partir do mês de janeiro de 86. E o Airton, que liderou o processo e era vereador do Aracati, virou o primeiro prefeito, ainda pelo PMDB. E em 87, ele já prefeito, eu estava secretário de Comunicação, Turismo e Esportes – fazendo faculdade em Fortaleza mas fazendo essa junção aí – é que nós fomos para o PT, no início de 87. Eu fui candidato a prefeito de 88 já pelo PT, né. Todo o processo de construção da cidadania, educação para todos. Nós fomos reconhecidos depois em 91, com o prêmio Nacional da Unicef por termos colocado todas as crianças na escola. Já em 88, 89, todas as crianças de Icapuí estavam na escola. Só dez anos depois o governo federal reconheceu o trabalho de Icapuí e iniciou o projeto de todas as crianças na escola. Dez anos depois de que Icapuí colocou toda criança na escola.

Praias e falésias, marcas de Icapuí

RP: Esta foi uma marca do teu primeiro mandato, colocar todas as crianças na escola. Qual outra lembrança te marcou neste período, quando você foi prefeito pela primeira vez?

DT: Olha, a partir de 89 nós demos continuidade ao trabalho que foi do José Airton e avançamos logo após a Constituição de 88. Nós somos o primeiro município a construírmos um plano Municipal de Saúde que a Constituição tinha denominado. A descentralização da saúde. O Odorico Monteiro foi nosso primeiro secretário de Saúde – depois ele virou secretário de Quixadá, de Sobral, em Fortaleza e foi deputado federal – era um militante. Nós fizemos de Icapuí um laboratório. Nós fizemos experiências inovadoras nas áreas de educação e saúde fantásticas em todos os sentidos, construindo políticas públicas. Eu me lembro de uma coisa importantíssima que nós fizemos: o mapeamento, um diagnóstico da cidade via saúde. Todo o posto de saúde nós regionalizamos aqui no município, oito postos de saúde. Cada posto de saúde cuidava da saúde das famílias daquela região. Nós fizemos um diagnóstico de cada família: um envelope que tinha e nós captamos informações daquela família. Quantas pessoas eram daquela família, qual a situação de moradia – se a casa era de taipa, se tem piso, se tem banheiro, qual a renda daquela família, se não tem, é só o pai de família que tem renda… Quer dizer, fizemos um diagnóstico da cidade. A partir desse diagnóstico, nós construímos as políticas públicas, focada nele. Focados na saúde, na concepção do SUS. Fomos o primeiro município a fazer um plano municipal de saúde. Até o Odorico lançou um livro, “Saúde em Município de Pequeno Porte”, que virou uma referência. A partir daí, parto humanizado, parcerias com muitas instituições, com universidades. A gente pegou e inovou, com determinação, vontade política e transparência administrativa, participação popular, orçamento participativo. Foram esses ingredientes os princípios norteadores das gestões de Icapuí e que renderam centenas de prêmios, inclusive internacionais. Viramos referência em política pública. Nós recebíamos visitas do Brasil inteiro e de instituições internacionais. Fomos a muitos países defender o legado de Icapuí. Porque quando o Unicef descobriu que em Icapuí – um estudo que o Unicef fez em 1990 com as crianças do litoral do Ceará – era uma coisa absurda: as crianças de Icapuí eram diferentes. Elas tinham uma outra visão das coisas. Aí o Unicef foi ver o que que estava acontecendo em Icapuí e enxergaram uma transformação que nós fizemos pela educação. Nós colocamos microfones em Icapuí e alto-falantes no mundo inteiro para dizer que uma cidade pobre no Ceará, do Nordeste, colocou toda a criança na escola e além de colocar na escola fez a diferença. Elaboramos uma cartilha didática na Comunidade da Redonda que foi feita dentro da realidade. Em vez de você mostrar uma maçã, uma pera numa escola, porque não mostra a lagosta, o peixe? Fizemos inovação na forma, com uma visão emancipatória do Paulo Freire que norteou nosso conceito de educação. As pessoas foram vendo a revolução que no município vizinho a criança era diferente. Por quê? Nessa adversidade, numa cidade pobre… Aí foi um prêmio nacional; nós concorremos com a Globo, com outras instituições. O prêmio Criança, Paz e Educação foi dado a Icapuí. Dez anos depois o Fernando Henrique chamou Icapuí pra participar do movimento Toda a Criança na Escola. Elevar a cidadania, a autoestima, foi este o legado de Icapuí.

Créditos: arquivo pessoal

RP: Você foi estudar geologia. Por que você escolheu este curso? E a política te fez mudar de planos?

DT: Olha, eu confesso que até entrar na universidade, eu não palpitava nada sobre essa questão política. Era um adolescente como outro qualquer. No primeiro ano eu já estava envolvido com centro acadêmico; comecei a gostar do negócio. Em 81 fizemos muitas greves em universidades, greves históricas. Somado a isso há toda uma visão da cidade, da nossa terra, valorizar nossa terra, e começamos a fazer esse movimento. E as pessoas que procuraram Fortaleza pra estudar, famílias grandes, “vamos juntar esse povo, vamos ver o que é possível fazer por Icapuí”. E isso é importante: eu fiz geologia influenciado por um professor de geografia do colégio Farias Brito em Fortaleza, eu gostava muito de geografia, ele era geógrafo, e eu me apaixonei. Quando eu concluí o curso eu já estava na política. Um pé aqui e outro lá. Quando eu colei grau eu já era prefeito. Eu fiz um trabalho sobre a qualidade e a quantidade de água de Icapuí. A água subterrânea. O meu relatório de graduação era sobre isso. Juntei muita gente, fizemos o mapeamento da água, a qualidade. Fiz um mapeamento da cidade. Quem me orientou foi professor Carlos Lima, que foi meu professor de geografia.

RP: Eu queria que você contasse pra gente como é sua vida hoje. Depois que você foi prefeito por duas vezes, como foi se encaminhando sua vida?

DT: Fiz o primeiro mandato até 92, e aí foi o auge de Icapuí. E logo em 93, uma pessoa que foi secretário do Estado, o Carlile Lavor – ele foi o mentor, o idealizador da criação do programa agentes comunitários de saúde – ele foi eleito presidente da Associação dos Prefeitos do Estado do Ceará em 1993, ele me convidou pra ser o secretário dessa associação. Aí tinha o nome, Icapuí estava na moda. Tem uma foto na Veja, de 92, eu sentado no muro da minha casa, que é uma esquina, que nós colocamos a prestação de contas na parede, lá. Como que é dentro da prefeitura e quanto é gasto lá, gasto mês a mês. Aquilo virou um ponto turístico. Hoje isso é uma obrigação dos prefeitos, prestar contas. Eu me lembro dessa foto, na cadeira e de camisa vermelha – acho que a Veja ainda não tinha raiva do PT não.

RP: Eu lembro dessa foto…

DT: Saiu em jornais do mundo inteiro… Depois outras prefeituras copiaram. Aí fiquei este tempo na Associação, de 93 a 96. E voltei a ser candidato de novo. Fui prefeito pela segunda vez. E depois fui reeleito em 2000. E então Cid Gomes reconheceu o trabalho que a gente vinha fazendo em Icapuí. Em 2004 perdemos a eleição, depois de vinte anos. Aí tem um elemento complicado. O José Airton, nosso primeiro prefeito, resolveu se aliar à família dele. Ele brigou muito com a família, que era PSDB e tal, mas resolveu se aliar com o irmão dele, que era meu vice, e derrotou o PT. É um processo que até hoje é muito arranhado. O Lula é puto com isso, porque ele sacaneou o PT mesmo. Perdemos, ele foi reeleito e então foi cassado. Ele destruiu as políticas públicas. Ele destruiu tudo. Aí em 2004, o Lula me convidou pra ir para o Ministério da Pesca, como assessor especial do ministro. Voltei em 2006 pra ser candidato a deputado estadual. Fiquei na suplência e depois assumi o cargo, em 2006. Depois fui reeleito deputado estadual e fiquei até 2014. O Camillo Santana foi eleito governador e me colocou pra ser secretário de Desenvolvimento Agrário. Fiquei de 2015 a 2018. Saí pra ser candidato, e houve uma perseguição política grande aos petistas. Houve um problema no TCU (Tribunal de Contas da União) e eu fui impedido de ser candidato, faltando 15 dias, me negaram o registro. Aí Camilo me chamou para ser secretário de Recursos Hídricos, uma coisa que eu gosto, que é da minha área. Fiquei até o final do ano passado. Aí ele me chamou pra articular o escritório da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) aqui no Nordeste. Aí vem a pandemia e parou tudo. Mas queremos retomar. A FAO poderia nos ajudar a pensar em como vencer a desigualdade, um projeto para o Nordeste protagonizar um grande projeto de combate à desigualdade depois da pandemia. E estou ajudando neste momento as candidaturas a prefeito aqui na região.

Créditos: arquivo pessoal

RP: Sobra tempo pra cuidar da vida pessoal? E, pra terminar, essas perseguições de que você falou: ainda vale a pena, apesar das injustiças?

DT: Esse envolvimento com a política tá no sangue da gente. Eu acho que eu herdei isso, meu pai era um pouco político. Eu sou muito vocacionado a isso. As injustiças são coisas que a gente encontra né, mas é um desafio importante construir um Brasil diferente para a população. Esse legado que nós construímos não é uma tarefa fácil com toda essa elite, a mídia nacional contra. Isso é para mim é um elemento muito importante e é também um desafio para mim, associado um pouco a tudo isso, é retomar Icapuí, recolocar no rumo certo para dar condições daquela população jovem, com vocações nada aproveitadas. O governo que tem lá não enxerga as pessoas, não sabe o que é capital humano, não tem projeto social de inclusão, é só uma visão de negócio, de corrupção. É um negócio que fere muito a gente. Ver que a gente construiu aquilo com tanto zelo, com tanta determinação, que virou um símbolo da luta do povo, da autoestima do povo, e agora ser destruído. Aí me move muito, tanto que eu tenho uma perna aqui em Fortaleza e outra em Icapuí. Eu vou toda a semana, eu não abro mão disso, é uma questão de honra, parece, a gente retomar aquilo. Aí às vezes sobra pouco tempo para a família. Tenho dois filhos, um do primeiro casamento, ele tem 24 anos e acabou de se formar em odontologia, começando a trabalhar, ralando, né. E a outra 16 anos, da segunda mulher que eu vivo. Sobrou pouco tempo pra elas, eu sei que eu não sou aquele pai total. Mas eu gosto do que eu faço. Gostaria de ver um Brasil melhor nos próximos anos e uma Icapuí, que vem regredindo desde 2004. Isso me fere muito. Eu sou de lá e quero voltar a morar em Icapuí. Isso, associado a um projeto cidadão, um projeto de desenvolvimento das pessoas, é meu remédio. Por isso todo o nosso esforço para retomar Icapuí. Temos candidatos novos, renovação. Esse é meu sonho, entendeu?