“Eu não estou falando de projeto pessoal, de você fumando maconha com a sua gata ou com seu gato na praia. Estou preocupado com a polícia não subir o morro com um cheque em branco para um projeto de genocídio. Falo de um país que não tenha caveirão, entende?”

Nesta entrevista, feita em live do Reconexão Periferias mediada pela advogada Sandra Cruz, da Associação Elas Existem – Mulheres Encarceradas, o advogado criminalista Joel Luiz Costa, 31 anos e pai de dois filhos, discorre sobre o sistema penal e de Justiça, que classifica como “falácia”.

Joel mantém um escritório de advocacia na Favela do Jacarezinho, Rio, para atender – a preços que as pessoas puderem pagar – moradores periféricos acusados de crime. A conversa pode ser vista no canal do Reconexão. Esta entrevista também faz parte da edição de agosto da Revista Reconexão Periferias.

Acompanhe os principais trechos:

Sandra: Vou deixar o Joel se apresentar e depois a gente vai trocando. Está bom assim pra você Joel? Então, a bola está contigo.

Joel: Eu trabalho muito a questão das drogas e da justiça criminal no sentido de aprofundar e trabalhar o direito penal do dia a dia, o direito penal das delegacias das periferias, que é muito diferente do direito penal lava jato, muito diferente do direito penal dos livros. Esse grande teatro urbano em que tem gente branca dizendo o que pode e o que não pode e aplicando a lei sobre as pessoas pretas. Não dá pra se fazer uma análise crítica sobre todo o sistema de Justiça sem fazer um diálogo com a questão de classe e com a questão de gênero, além da questão de raça, obviamente. Quem dissocia está gastando energia à toa.

Sandra: Joel, você, que tem um escritório dentro do Jacarezinho, como você vê a justiça criminal e essa luta periférica?

Joel: (risos). É muita coisa, eu vou tentar sintetizar. Eu começo a me achar repetitivo porque o debate me parece muito óbvio e, em que pese vivermos momentos em que é necessário dizer o óbvio, mas quando a gente vê o posicionamento do Estado em política de segurança pública e como essa política é direcionada para algo que nada tem a ver com segurança pública e coletiva, de todos e de todas, parece-me que o que está posto é um grande projeto de controle de massas. Quando a gente fala que o debate é racializado e que nossa população é sobrerrepresentada no sistema prisional e subrepresentada nos espaços de poder e decisão, me parece que a gente fala pro vento, sabe? Não somente eu tenho raça. As pessoas brancas têm raça. Por que essa dificuldade da branquitude acrítica e a branquitude crítica de imaginar que não dá pra se discutir um projeto de país em que não se analise o efeito dessa política sobre a população branca e em cima da população preta, da população pobre e da população rica, em cima de homens e em cima de mulheres? Qual é a dificuldade de entender a intersecionalidade disso tudo?

Sandra: Eu ouso dizer que se trata de um projeto de Estado, de encarcerar e criminalizar uma população específica.

Joel: Não só de quem constrói e de quem executa, mas do tecido social, quando se cala. O Brasil é um país que se vale de instrumentos legais para o controle de corpos pretos, historicamente. Desde, evidentemente, o período escravocrata, e passando pela criminalização do samba, da capoeira, religiões de matriz africana, desde a vadiagem e chegando à lei de drogas. A lei de drogas é uma lei abstrata que, em tese, poderá alcançar todos e todas, mas que a atuação do Estado para coibir o consumo, venda e distribuição é direcionada para territórios específicos. Então é isso: você pega um helicóptero com 450 quilos de pasta-base de cocaína numa fazenda de um senador usando vinte policiais. E aí você faz uma operação espetaculosa numa favela do Rio e prende dez, quinze quilos de maconha, e acha que foi um sucesso, com uma pistola e dois fuzis enferrujados apreendidos. Ao preço de cinco vidas, ao preço de uma população aterrorizada, ao preço de uma favela que teve um dia inteiro de sua vida interrompido. Então, a operação policial numa favela vai ceifar vidas, muitas vezes inocentes e tem casos de crianças aí que não me deixam mentir – porque quando é adulto, virou grande então está envolvido que se foda – mas quando é criança não se consegue construir esta narrativa.

Sandra: Ao mesmo tempo que é repetitivo é novidade, porque as pessoas fazem como se não percebessem.

Joel: Tem uma coisa que eu gosto sempre de falar: me incomoda muito a análise do Brasil a partir do frame, da foto. A gente tem que analisar este país a partir dos seus 520 anos. O país que mais teve entrada de negros escravizados, o último país do Ocidente a abolir a escravidão, que recebeu 40% dos negros escravizados que botaram o pé na América, uma população que foi objetificada e que precisava ser controlada.

E aí você pega dados de dois anos atrás que mostram que mais brancos saem de audiências de custódia do que pretos cometendo o mesmo crime. Tem uma pesquisa de São Paulo, de 2019, dizendo que pretos têm penas maiores do que brancos com a mesma quantidade de droga apreendida. É sobre tudo isso. Então me perguntam: “A polícia é racista, precisamos retreinar a polícia?”. Não. Não é só isso. A gente precisa enfrentar as chagas do projeto de país. Se a gente não fizer isso, a inclusão do preto, da mulher, do gay, do pobre, do periférico, do nordestino, do nortista, no projeto de país, não adianta a gente dar uma canetada e treinar de novo a polícia, não adianta o Doria colocar a porra de uma câmera na farda do policial, que ele liga e desliga quando ele quer, não adianta. A gente faz aqui uma redução de danos.

Sandra: E quando a gente para pra pensar nesse sistema todo, temos de lembrar que a lei de terras não foi feita para os negros. Depois da abolição, foi dito “se vira aí, vocês não têm nada”, então vieram os imigrantes e ainda ganharam terras para trabalhar.

Joel: Sabe o que é importante também falar? É que antigas colônias viraram cidades, como Blumenau, enquanto os quilombos no Nordeste, quando não foram dizimados, viraram favelas. Então, que projeto de país é este? O Estado tem de ser refeito – e o Estado não é um ser imaterial, e sim frações que ocupam o Estado, e frações brancas – quem é que está ocupando o Legislativo, o Executivo, o Judiciário? Uma branquitude medíocre, mediana. Esse é o mesmo Estado que faz com que Blumenau, uma colônia alemã do século retrasado, tivesse incentivo desse mesmo Estado pra virar uma cidade, enquanto os quilombos estão lá com sua fração de terra ou, quando não, dizimados.

Sandra: O quanto você vê o seu trabalho como redução de danos?

Joel: Eu quero deixar claro que quando eu falo em redução de danos, não é uma forma de tirar a relevância, o simbolismo e o peso do que a gente faz. Entretanto, é necessário que as pessoas saibam que o que a gente faz é nada perante a estrutura. Mas nós temos 750 mil presos, temos um Estado que mata 1814 pessoas, como foi no Rio de Janeiro ano passado. O que a gente faz é paliativo. Fransérgio Goulart tem uma frase que me ensinou muito: “Nós não somos Estado”.

Eu trabalho com política de drogas. Pra mim, contextualizar historicamente, explicar para os jovens como se deu a proibição da cannabis como forma de controle de corpos negros, o quanto tem de racismo científico no discurso que se construiu no século 20 pra legitimar a proibição, é uma coisa interessante. Mas o debate é ainda mais amplo. O que seria efetivo? Legalização, descriminalização do consumo, porte, produção, a porra toda, de todas as drogas. Não vamos por asteriscos nesta porra, de todas as drogas. Vão falar “mas, ah, o crack…” De todas as drogas. Droga é droga. Eu estou falando de projeto de segurança pública. Eu não estou falando de projeto pessoal, de você fumando maconha com a sua gata na praia, ou com seu gato na praia. Eu estou preocupado com a polícia não subir o morro atrás de uma bandeira antidrogas que na verdade é um cheque em branco para um projeto de genocídio. Falo de um país que não tenha caveirão, entende?.

Sandra: A gente não pode falar disso sem relacionar com a prisão, que é um negócio que movimenta milhões.

Joel: Não só a prisão como a guerra, Sandra. A paz não vende, a guerra vende. A guerra vende segurança privada, segurança pública, balas, armas, vende caveirão e vende medo. E medo gera capital eleitoral. O presidente do Brasil e o governador do Rio dizem muito sobre isso.

Sandra: Eu queria que você falasse um pouquinho sobre o que é abolicionismo penal, na sua ótica.

Joel: O sistema penal posto do jeito que está, e sendo o ponto final do sistema de justiça criminal, tem um objetivo específico. Que não é o objetivo que é vendido à população, que é o de paz, de um suposto contrato social que todos nós assinamos quando nascemos. A política de drogas, por exemplo. Ela é vendida como necessária para evitar que as pessoas consumam algo que é prejudicial à saúde. Então seria preciso retirar essas substâncias de circulação. Então gera-se uma guerra às drogas, que numericamente causa muito mais danos à saúde coletiva que o consumo excessivo de drogas. A gente tem um remédio que mata mais do que a doença. E isso não é um erro de cálculo. Isso é um projeto.

Se ele é uma falácia, se ele diz que é para uma coisa e na verdade é pra outra, eu não posso dialogar com esse sistema, porque ele já nasce errado. E se nasce errado não pode dar certo.

Eu participei de um evento na PUC no ano passado que o título era “Erros do Judiciário”. A partir daí eu cunhei uma frase que é o seguinte: crer que o Judiciário erra é crer que o Judiciário foi criado para acertar. O erro seria um desvio de rota. O acerto do Judiciário é o que ele já faz: encarcerar jovens, pretos, mulheres que são mula de tráfico.

Que sistema é esse em que os crimes sexuais são totalmente invisibilizados e em que os crimes financeiros e econômicos têm uma divisão especializada só pra eles? Mas pra violência sexual não tem.

Sandra: Eu queria que você dissesse um pouco sobre os direitos negados durante a pandemia.

Joel: Um momento de catástrofe, de intensificação das chagas sociais, só traz mais clareza aos problemas que já existiam. Dá mais nitidez para quem não consegue enxergar ou não quer enxergar. Mas, por outro lado, mostrou a potência dessas pessoas pra se resolver – e aí não é querer romantizar, não, a luta ou a pobreza. Mas mostra como essas pessoas têm a potência, a coletividade entre elas.

Eu penso que a janela histórica da escravidão, além de deixar marcas no corpo negro, acho que essa coletividade, esse aquilombamento, além de ter muito a ver com os ensinamentos orais que recebemos dos nossos ancestrais, tem a ver também com herança genética. Talvez por isso a favela consiga resistir por tanto tempo.