A abertura do Seminário Nacional Reconexão Periferias, na tarde de ontem, 4 de dezembro, foi marcada pela lembrança dos nove mortos no massacre de Paraisópolis, ocorrido na madrugada do dia 1º e produzido pela polícia militar paulista. Os nomes dos nove assassinados foram recitados por Vivian Farias, representante do Diretório Nacional do PT, acompanhados pelo coro “presente!” vindo da audiência.

O ato político de protesto contra as mortes daquele episódio e contra o genocídio da população pobre, negra e periférica foi concluído quando participantes do seminário – acadêmicos e ativistas de diferentes locais do país – foram à manifestação que ocorreu entre 17 e 21 horas diante da sede da Secretaria de Estado da Segurança Pública, na região central da cidade de São Paulo. A manifestação fora convocada pelo movimento negro como protesto contra a política oficial de morte adotada pelos governos.

Na primeira mesa de debates prevista pela programação, o massacre também foi lembrado, e sempre acompanhado da palavra genocídio. A arquiteta Joice Berth, que atua em projetos de urbanização de favelas e regularização fundiária, comentou: “Quando morrem nove, as pessoas despertam para a discussão da segregação espacial”. Joice define as políticas de urbanização como “daltônicas”.

Joice lembrou que as cidades são divididas a partir de critérios racistas, traduzidos em terminologia racista, como aquela que define bairros predominantemente brancos de “áreas nobres”. E que a escassez ou ausência de infraestrutura econômica e social nas periferias “não aconteceu por acidente”.

A arquiteta recorreu a um rápido retrospecto histórico para justificar a afirmativa. A Lei de Terras, de 1850, impedia que indígenas e negros, mesmo libertos, pudessem adquirir terras, ou seja, moradia. “Hoje, 90% da população em situação de rua são negros. Isso é herança daquela legislação”, comentou. Em seguida à abolição formal da escravidão e à posterior chegada dos imigrantes europeus, os anúncios de emprego passaram a estampar o veto aos negros para as vagas que outrora ocupavam na condição de escravos, destacou a arquiteta. Seguiram-se a chamada lei da vadiagem, sob medida para punir os negros, a quem era negada possibilidade de trabalho, e a Constituição de 1924, que proibia a população negra de estudar.

“Tudo isso foi estabelecido por uma política muito bem pensada: isso é o racismo estrutural”, completou a arquiteta, negra e moradora da periferia de São Paulo.

Mirem-se no exemplo
Com a leitura de texto escrito para o debate, a jornalista e pós-doutora em Comunicação Rosane Borges, professora da USP, iniciou sua participação na mesa discorrendo sobre “o casamento por interesse” entre o neoliberalismo econômico extremado e o reacionarismo de costumes, que caracteriza o fascismo ascendente que persegue e quer destruir tudo o que não corresponde ao que ela chamou de padrão masculino e branco. “Bolsonaro é filho desse casamento por interesse”, disse Rosane.

Trata-se, segundo Rosane, de uma época de “decadência estética”, cujos símbolos maiores são a família e o governo Bolsonaro. “Essa decadência pode ser entendida stricto sensu: eles todos são mesmo muito feios”, entremeou a professora, suspendendo a leitura por um instante.

Como se convidasse o público a imaginar as razões que fizeram um período de tanto retrocesso suceder a uma época de esperança, Rosane classificou como “exemplo irretocável” os oito anos de governo Lula e os seis de Dilma no tocante à busca pela superação das desigualdades e do racismo. Mas pontuou: “a população negra permaneceu apenas como beneficiária”, numa crítica à ausência de homens negros e, especialmente, mulheres negras no centro das decisões políticas.

Recorrendo a uma anedota na qual os risos de um grupo de amigos são interrompidos quando o motorista avisa que se perdeu na estrada e entrou em caminho errado, Rosane desafia: “Quando, no auge de nossa alegria, a gente entrou errado? A gente ainda não sabe responder essa questão”.

Se o governo Bolsonaro, assim como outros de inspiração de extrema-direita no mundo, representa, nas palavras de Rosane, “guerra civil contra as formas de vida”, a professora propõe redefinir o que é vida. E chama, como exemplo, atenção para o caso chileno: “o Chile está dizendo: não queremos essa vida chinfrim que vocês querem nos impor”.

Rosane, assim como já havia feito Joyce Berth, sugere mirar-se no exemplo das mulheres negras. “Historicamente, as mulheres negras dão ênfase a novos arranjos, novas formas de vida”.

O Seminário Nacional Reconexão Periferias retoma suas atividades a partir da manhã desta quinta, 5 de dezembro, e segue até sexta-feira. Com apoio da Fundação Friedrich Ebert (FES), ligada ao Partido Social Democrata Alemão, o encontro pretende fazer o balanço das atividades do projeto até o momento e também planejar as ações para 2020. O encontro está sendo transmitido pela TV FPA, da Fundação Perseu Abramo.