Arte e solidariedade superam violência na periferia
Uma pessoa que descobre sua vocação, seu dom, e consegue apoio para viver disso, tem mais chances de escapar da criminalidade, ter vida longa e, de quebra, algum dinheiro no bolso.
A frase acima poderia estar escrita – ou melhor, grafitada – na fachada da casa onde funciona a Agência Solano Trindade, na Vila Pirajussara, região do Capão Redondo, zona sul da periferia de São Paulo. Porém, muito provavelmente, teria algo a mais em termos de beleza e criatividade: a expressão artística é o principal produto da agência, especializada em encontrar e ajudar a desenvolver talentos e gerar trabalho e renda com saberes como artesanato, música, artes visuais, poesia, culinária e com a estrutura que acompanha eventos.
Na casa onde funciona a Solano, aproximadamente 100 pessoas passam todos os dias, entre paredes grafitadas, à procura de ajuda para encontrar espaço entre os 300 empreendimentos que nasceram e se desenvolveram a partir da agência. “Eu descobri a forma de trabalhar com aquilo que a gente ama e junto com nossa comunidade. Numa ideia de autogestão, de nós sermos patrões de nós mesmos e trabalhar a nossa responsabilidade”, explica o coordenador e fundador do projeto, Thiago Vinícius, um jovem de 29 anos que descobriu a economia solidária aos 15, quando, com a ajuda de uma agência de fomento de origem estrangeira, obteve US$ 20 mil para montar um centro de reciclagem de lixo, num projeto de que então participava.
Thiago: devolver ao povo em arte
Créditos: Isaías Dalle
“A agência Solano Trindade nasce dessa possibilidade: pegar o dom que o povo tem e transformar isso num serviço, num produto cultural, e vender isso pros clientes: prefeitura, Sesc. Nossa casa é uma possibilidade de articular nossa arte ao redor de São Paulo”, diz Thiago. E aproveita para enunciar a frase que, segundo ele, é sua inspiração diária e uma espécie de dístico da agência: “Pesquisai na fonte de origem e devolvei ao povo na forma de arte” cunhada pelo artista que dá nome ao coletivo.
Dessa história surgem outras, inspiradoras e bem distantes do discurso de ódio e confronto que domina parte da conjuntura política nacional. O grafiteiro Gamão, criador do coletivo Raxa Kuka Produções – um dos empreendimentos cadastrados e apoiados pela Solano – apresenta com orgulho, mas sem afetação, a infinidade de fachadas comerciais com desenhos seus ao longo das avenidas sinuosas e quase sempre estreitas dos bairros que se avizinham e que são conhecidos todos sob o nome Capão Redondo para aqueles que não moram ali.
Gamão, nome artístico de Rodrigo de Souza Dias, consegue sua renda atendendo pedidos do comércio local e com o tempo extra desenvolve também uma arte mais autoral, sem encomendas. Foi dele a ideia de criar o evento anual Grafite contra Enchente, que em novembro próximo chegará a sua quarta edição.
O evento foi uma tentativa de chamar a atenção das autoridades municipais e da própria comunidade para as inundações persistentes causadas pelo córrego Pirajussara. Os muros ao redor testemunham não mais as marcas da enchente, e sim os trabalhos de artistas de diferentes regiões do Brasil e de outros países que passaram a participar. “O pessoal do grafite se encontra por aí, em todo o lugar, mano”, diz Gamão. “A arte é o caminho da superação, da reabilitação”, testemunha. Ele conta ter recebido dois tiros na cabeça, anos atrás, que eram destinados a um amigo que estava na mesma cena. “Nessa época eu estava limpo”, conta ele, que já tinha descoberto o hip hop e o grafite e se afastado daquilo que ele chama de”parada errada”. Uma longa recuperação depois, está a distribuir desenhos por aí e a estimular novos artistas. “A gente precisa garantir um futuro pra essa molecada”, diz.
Gamão mostra o alcance de enchente de 2015
Gamão chamou para ser seu braço direito um amigo de infância, então recém-saído de um período de 10 anos de prisão. “Os amigos fazem parte da gente, a gente não pode ser omisso”, conta. Outra vida transformada. Perguntado sobre propostas de combate à criminalidade pela via da repressão, o artista descarta de pronto: “Não resolve nada. Ninguém gosta de ser reprimido, de tomar esculacho”.
Por sua estrutura e pelos seus feitos, a agência Solano Trindade ganha cada vez mais notoriedade. Já foi objeto até de reportagem de TV, em que foi apresentada mais como uma modalidade de negócio, como se fizesse parte do “mercado” e não fosse, a seu modo, uma crítica e um movimento de resistência ao sistema.
“Nosso projeto é socioeconômico. Aqui a gente tem a oportunidade de olhar para a espinha dorsal de uma família, que é a economia”, comenta Thiago. “O jovem está a todo o momento buscando gerar renda, é provocado a fazer isso, então nosso trabalho é socioeconômico, olha para a comunidade e vê o que ela tem de melhor a oferecer: então tem uma questão de classe, raça e gênero muito envolvido no nosso trabalho, então temos uma perspectiva de gerar renda e autonomia e nós decidirmos qual o caminho a gente quer seguir”, completa.
Nisso, a Solano tem uma pegada bem diferente do modelo ONG. “Depois de bar e igreja, o que mais tem nas periferias são ONGs. Tem curso pra tudo, toda a ONG quer dar curso, mas têm poucas organizações que dão dinheiro na mão do jovem e que disputam o jovem com a criminalidade – e não é nem com a droga, mas com a possibilidade de geração de renda”, segundo o coordenador.
“Antigamente o rico vinha para a periferia para fazer filantropia, para fazer o ‘bem’. Ele achava que se colocasse o jovem numa ONG, esse jovem não iria para o centro. Hoje o morador da periferia quer ser o transformador de sua própria realidade”, diz Thiago.
A Michelle Fernandes é uma dessas autotransformações em curso. Lá na Solano, ela comercializa turbantes, roupas, colares e brincos de inspiração africana. Antes, ela e o marido tentavam fazer isso somente a partir de casa. Até que um professor de francês, encantado pelos turbantes, aconselhou-a a procurar a agência Solano Trindade. “Aqui eu tenho a oportunidade de expor pessoalmente para os clientes e participar de eventos, como o de amarração de turbantes, que servem para divulgar a cultura negra”, conta Michelle, que destaca também a chance de participar de encontros como a “imersão”, em que moradores de outras quebradas visitam a região, e vice-versa, ou a “feijoada com política”, que há dois sábados reuniu candidatos para um debate embalado por samba e caipirinha.
Michelle: cultura negra
A importância da presença do Estado como parceiro desse tipo de atividade não é esquecido pelo coordenador da agência. Ele lembra que a prefeitura de São Paulo, na gestão de Fernando Haddad, era “outra coisa”. “Tinha apoio, tinha a incubadora de empresas no bairro do Cambuci, era uma administração totalmente alinhada com o princípio da economia solidária. Foi demais. Só tenho a agradecer”, afirma Thiago.
Entre as conquistas da Agência Solano Trindade, Thiago fala com especial satisfação da abertura da 31a Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 2014. A Fundação Bienal contratou 20 atrações diretamente com a agência. “Eles chegaram aqui na maior humildade. Veio um espanhol, dizendo ‘a gente sabe que vocês colam no terreiro, que vocês colam com os índios. A gente quer que vocês façam a abertura. Foi foda, mano. Foi a primeira vez que a gente chegou sem ser garçom, segurança, faxineira…”, diz.
Abertura da 31a Bienal
Créditos: Fundação Bienal
A Solano é uma das centenas de coletivos que compõem o projeto Reconexão Periferias, iniciativa da Fundação Perseu Abramo. Sobre a parceria, Thiago diz: “Acrescenta um conteúdo melhor pra nossas coisas, pra gente avançar. A Perseu tem tem uma história gigante de democracia e trabalho pela juventude. Eu me lembro muito bem do livro da Helena Abramo, Retratos da Juventude Brasileira. É um livro que eu guardo no meu coração porque tudo o que ela dizia lá eu vivia. Quero mais a Perseu aqui com a gente. É o fortalecimento do trânsito social”.
Gamão fala sobre arte e cultura versus criminalidade: