Por que as igrejas sul-coreanas são um ímã para o coronavírus e as teorias da conspiração?

Tradução de Wilson Jr. para artigo de Park Chan-Kyong

Revolta contra o pastor que alegou que o cartão de bolso deu proteção contra o vírus é a última controvérsia relacionada à pandemia que atingiu grupos religiosos do país

À medida que as orações chegam ao fim, o pastor acena um cartão azul diante de sua congregação e promete a salvação – do coronavírus.

“Ninguém que possui esses cartões foi infectado pelo vírus e aqueles que testaram positivo anteriormente foram curados rapidamente”, ele declara solenemente, antes de colocar o cartão no bolso do paletó no peito e aconselhar seus ouvintes a “apenas mantê-lo assim”.

O cartão emite “ondas” que vão “afastar e matar o vírus Covid-19”, diz ele aplaudido pelo rebanho, todos usando máscaras e sentados em bancos em intervalos socialmente distantes.

O vídeo, que viralizou, é do Pastor Lee Young-hoon, que dirige a Igreja Yoido Full Gospel na Coreia do Sul – a maior congregação cristã pentecostal do mundo [sic], com meio milhão de seguidores.

Ele enviou ondas de choque por um país que já foi visto como um modelo por sua resposta à pandemia, mas agora está lutando para conter uma terceira onda de infecções.

As críticas generalizadas da comunidade científica e da mídia levaram a igreja a repensar seus planos de distribuir os cartões para seus seguidores gratuitamente, mas o incidente destacou o papel contínuo que grupos religiosos têm desempenhado na disseminação do vírus na Coreia do Sul, assim como o país luta contra sua maior onda de infecções até então.

Nos últimos meses, os níveis de infecção dispararam, alertando para o fato de novos agrupamentos sociais [clusters] terem sido capazes de superar os procedimentos agressivos - testagens em massa, rastreamento de contato e regimes de isolamento - que anteriormente mereceram elogios da Organização Mundial da Saúde. Embora o registro do país, de 82 mil infecções e 1,5 mil mortes, possa parecer relativamente invejável quando comparado a alguns países ocidentais, muitos se preocupam com o rumo do quadro.

A terceira onda de infecções começou em novembro e atingiu o pico com mais de mil casos por dia na virada do ano; na quarta-feira, o país registrou 444 novos casos, com seis dias de alta, e as autoridades de saúde pediram às pessoas que evitem reuniões familiares durante o período do Ano Novo Lunar.

Reação contra grupos religiosos

Os grupos religiosos conhecidos por terem desrespeitado as restrições têm sido uma fonte importante de focos de infecção em cada uma das três ondas até agora, o que contribuiu para uma reação negativa contra igrejas e pastores como Lee Young-hoon.

No caso dele, a situação foi agravada pelo fato de que o cartão que estava promovendo foi desenvolvido por Kim Hyon-won, um polêmico professor de bioquímica da Faculdade de Medicina, no campus de Wonju da Universidade Yonsei. O professor afirma que os cartões irradiam ondas que formam escudos protetores ao redor de quem os está segurando.

Os cientistas rejeitaram as alegações como bizarras [outlandish] e a mídia local relatou que o professor já havia sido condenado por vender “água da vida”, que ele alegou fraudulentamente poderia tratar o câncer. Foi multado em 20 milhões de wons.

Em um e-mail para o South China Morning Post, Kim insistiu que ele foi um pioneiro no desenvolvimento de um “novo paradigma” no tratamento de doenças.“Ninguém entre as cerca de 5 mil pessoas que possuem os cartões contraiu o vírus”, insistiu, acrescentando que planejava realizar testes em um milhão de pessoas.

Os críticos dizem que a igreja não está apenas arriscando a saúde de sua congregação, mas prejudicando a reputação de todas as igrejas. O professor de medicina interna Kim Woo-joo, da Universidade da Coreia, disse que os cartões "não tiveram nenhum efeito científico", alertando ainda que os fiéis poderiam usá-los "como um talismã e se sentirem um pouco seguros", e assim baixar a guarda.

“Se coisas como essas forem usadas em uma megaigreja, isso só aumentará desconfiança nas igrejas”, disse Kim.

A Igreja Yoido Full Gospel é apenas a última em uma longa lista de instituições a ter perturbado as autoridades, que gastaram milhões de horas-homem visitando igrejas para garantir que cumprissem restrições, como medidas de distanciamento e uso de máscaras, mas ainda assim houve inúmeros casos notórios de igrejas que desrespeitam as regras.

Em um incidente notório, em maio do ano passado, houve um surto do vírus em uma pequena igreja na província de Gyeonggi, que estava jogando água salgada na boca dos seguidores, na falsa crença de que impediria a disseminação do vírus. Na verdade, usar o mesmo borrifador sem desinfetar o bico ajudou a espalhar o vírus pelo grupo, infectando 46 fiéis.

Em outro caso, uma pequena igreja no distrito sul de Geumcheon violou repetidamente a proibição de reuniões de 20 pessoas ou mais. Grupos de infecção surgiram na igreja, produzindo sete casos em junho e outros 17 em dezembro. Enquanto isso, o vídeo do sermão desafiador de seu pastor se tornou viral. “Como eu poderia dizer aos crentes para não virem aqui? O Senhor diz que qualquer pessoa pode vir e orar e cantar... eles são mais abençoados”, disse ele.

Outro pastor, na cidade de Incheon, a oeste de Seul, causou polêmica com suas afirmações de que Deus queria sessões de oração “cara a cara” e que as informações de rastreamento da Coreia do Sul estavam sendo entregues à China. Ele e mais 37 fiéis de sua congregação testaram positivo em agosto do ano passado.

Outras igrejas espalharam teorias da conspiração de que a vacinação é um disfarce para o co-fundador da Microsoft, Bill Gates, implantar microchips rastreáveis ​​nas pessoas. “O que vai acontecer se você for vacinado? Serão todos escravos deles”, disse Choi Paul em um sermão na missão BTJ (De volta a Jerusalém) em julho do ano passado. Pelo menos 600 infecções foram rastreadas para o grupo evangélico durante a terceira onda de infecções em curso.

Em cada onda de infecções que atingiu o país, os grupos de igrejas têm se destacado. A apocalíptica Igreja de Jesus Shincheonji contribuiu com pelo menos 5,2 mil casos confirmados na primeira onda, que começou em fevereiro do ano passado. Durante a segunda onda do verão passado [no hemisfério norte], 800 casos foram rastreados até a Igreja Sarang Jeil. O pastor dessa igreja, Jeon Kwang-hoon, acusou o presidente Moon Jae-in de ser um comunista que plantou “o vírus Wuhan” entre os seguidores da igreja porque eles não apoiavam suas políticas.

Mais recentemente, cerca de 390 casos foram detectados no mês passado em cursinhos e outras instalações operadas pela Missão Internacional (IM) em todo o país. O líder da IM, Michael Cho, ridicularizou a ciência e os regulamentos de distanciamento, afirmando em uma palestra recente que “Deus nos protege cientificamente”.

Arrependimento de alguns

Diante do tumulto crescente, grupos religiosos de orientação reformista pediram desculpas publicamente pelo papel que algumas igrejas desempenharam na disseminação de infecções.

“Sinceramente nos consideramos responsáveis ​​por fazer com que as pessoas sintam que estão fartas de igrejas... É triste que as igrejas coreanas sejam vistas como forças que prejudicam a saúde pública”, disse o Conselho Nacional de Cristãos da Coreia e a Associação Cristã de Jovens (YMCA) em uma declaração conjunta. “Confessamos que as igrejas coreanas não estão isentas de atos ilícitos cometidos em nome da liberdade religiosa e pedimos desculpas ao povo.”

O pedido de desculpas vem em meio a evidências de que o vírus afetou a renda das igrejas e o recrutamento de novos seguidores e que minou a confiança do público nas instituições. Uma pesquisa no mês passado mostrou que a proporção de pessoas que confiam nas igrejas caiu para 21% no ano passado, contra 32% no ano anterior.Com uma população de 52 milhões, a Coreia do Sul tem mais de 14 milhões de cristãos.

“A renda [da Igreja] caiu para um terço do que costumava ser antes da pandemia – uma séria dor de cabeça para muitas igrejas, incluindo mega igrejas que tomaram emprestado dezenas de milhões de dólares para gastar em novos edifícios”, disse Choi Hyung-mook, pastor reformista encarregado da Igreja de Salim, na cidade central de Cheonan.“O coronavírus expôs o lado escuro de muitas [igrejas] do país”, acrescentou.

Enquanto algumas igrejas parecem arrependidas, outras parecem alheias a toda a raiva que elas causaram junto ao público. Na cidade de Gwangju, no sul do país, as autoridades apresentaram esta semana acusações contra quatro igrejas suspeitas de violar as restrições de segurança contra o coronavírus. Uma delas teria feito sessões secretas de oração individual à noite, com todas as luzes apagadas e as cortinas fechadas.

“Não vejo nenhum sinal de igrejas tentando corrigir seus procedimentos”, disse Kim Jin-ho, pesquisador-chefe do Instituto Cristão para a Terceira Era em Seul, que também é pastor na Igreja Hanbaik. Kim acrescentou: "Apesar da pandemia, muitas igrejas continuam a perseguir os seus próprios ganhos materiais e expansão, em vez de cuidarem das almas feridas, privando-se assim da oportunidade de se livrarem desta crise de sua própria autoria".