Henry Campos e Nahuan Gonçalves
Nesta sexta-feira, 29/01, um grupo de seis eminentes subprocuradores gerais da República – Álvaro Augusto Ribeiro Costa, Cláudio Lemos Fonteles, Deborah Duprat, Manoel Lauro Volkner de Castilho, Paulo de Tarso Braz Lucas e Wagner Gonçalves, encaminhou ao Procurador Geral da República, Augusto Aras, Representação contra Jair Bolsonaro, onde se arrolam as principais, dentre as inúmeras, atitudes irresponsáveis e despidas de humanidade, do atual presidente, desde que teve início o processo de disseminação do novo coronavírus, SARS-CoV-2, que levou à pandemia.
Sempre no intuito de negar a pandemia, Bolsonaro fez o discurso permanente de negação da ciência, da própria existência do vírus, incitou à desobediência às medidas sanitárias pregadas pela OMS, fez apologia e fez produzir, criminosamente, em escala milionária, as ineficazes cloroquina e hidroxicloroquina, impôs obstáculo à produção de insumos, como seringas e agulhas. Em sua escalada crescente da obsessão pela chamada imunidade de rebanho, fato ao qual já nos referimos neste espaço (A obsessão de dois instintos genocidas, 22/01/2021), Bolsonaro fez repetidos e atabalhoados discursos contra a indispensável universalização da vacinação, fugiu das discursões coletivas internacionais com os fabricantes de vacinas, promoveu discórdias sobre o tema com governadores, criticou, de modo infundado, algumas vacinas, vetou o trecho da LDO 2021 que impedia o contingenciamento de despesas relacionadas à produção e disponibilização dos imunizantes, e deixou, por conta de apressada improvisação, o que deveria ser o Plano Nacional de Imunização contra a Covid-19, mesmo sabendo que o Brasil seria um dos únicos países com capacidade praticamente estabelecida de imunizar até 10 milhões de pessoas por dia.
Não pararam por aí as medidas que fizeram com que a avassaladora epidemia assumisse um caráter genocida: as mortes por asfixia em Manaus foram precedidas, dia antes do colapso, pelo aumento do imposto sobre a importação de cilindros para oferta de oxigênio, sendo oferecido em contrapartida o “tratamento precoce” com a malfadada cloroquina. Em sua Representação os subprocuradores enumeram detalhadamente as inúmeras atitudes incompatíveis com o exercício do mandato presidencial perpetradas por Bolsonaro ao longo de 2020 e 2021, “reveladoras de sabotagem e subterfúgios de toda ordem para retardar e ou mesmo frustrar o processo de vacinação no contexto da pandemia da Covid-19”. Em sua primorosa e equilibrada Representação os subprocuradores não descuidaram de respaldar a sua tese com evidências científicas, como a pesquisa realizada pelo CEPEDIA/FSP/USP e Conectas Direitos Humanos, reveladora de “uma linha de tempo que demonstra a relação direta entre atos normativos, a obstrução constante às respostas locais e a propaganda contra a saúde pública promovida pelo governo federal”.
Igualmente citado na Representação é o estudo More than Words: Leader’s Speech and Risky Behavior During a Pandemic, conduzido por Nicholas Ajzenmann, Tiago Cavalcanti e Daniel da Mata, onde fica patente ‘”o grande e robusto impacto dos discursos e das ações do presidente da República, publicamente e enfaticamente diminuindo os risco associados à COVID-19, advertindo contra o isolamento e desprezando as medidas de distanciamento social, no comportamento das pessoas em municipalidades pró-governo, especialmente aquelas com níveis relativamente elevados de penetração da mídia, com presença de contas ativas de Twitter e com maior proporção de paroquianos evangélicos, grupo chave em termos de suporte ao presidente.”
A luz maior trazida pela Representação é a robustez de dados e argumentação que levam à tipificação do crime de epidemia, previsto no Artigo 267 do Código Penal Brasileiro, que configura crime “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos.” Em sua tipificação os subprocuradores afirmam que, “No caso do Brasil, ao evento natural somou-se a ação criminosa de um presidente da República, que expôs, desde o início da pandemia até os dias atuais, a população a um risco efetivo de contaminação”.
Como fatos demonstradores citam a participação de Bolsonaro em eventos públicos, sem máscara, ainda quando a situação não era considerada epidêmica; a realização de aglomerações sociais, em várias ocasiões e até em eventos oficiais, sem proteção ou distanciamento, propiciando a intensificação da pandemia, isso sem falar na persistência do discurso enganador, a apologia da “gripezinha”.
A Lei Complementar 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe sobre as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, é muito clara quanto à competência e dever do Sr. Augusto Aras, de manifestar-se frente a essa Representação, que traz evidências claras do desrespeito a direitos assegurados na Constituição Federal e na lei, da ilegalidade e abuso de poder de Jair Bolsonaro, da sua afronta aos interesses sociais, da falta de moralidade e publicidade verdadeira relativas à administração pública, da quebra dos direitos e interesses coletivos e dos direitos assegurados na Constituição Federal, do desrespeito pelo chefe do Executivo aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos serviços de saúde e educação, entre outros.
Milhões de brasileiros voltaram à linha de pobreza – as nossas cidades estão repletas de desempregados e famintos; auxílio emergencial é figura de retórica; é grande a inquietação quanto aos números da pandemia da COVID-19, compatíveis com propósitos e linhas de ação genocidas – 9,18 milhões de casos, mais de 224 mil mortos, média de novos casos diários acima de 51 mil na última semana de janeiro. Não há como se falar em teorias conspiratórias.
Mais de 354 ações já foram enviadas ao Procurador Geral da República. Pergunta-se, @Augusto Aras: também terão como destino a gaveta? Como silenciar diante dessa última representação, mesmo vendo que o estudo do Instituto Lowy, organização australiana, aponta o Brasil, entre 98 países, como o que fez a mais desastrosa gestão da pandemia pela COVID-19 – pelas “mortes confirmadas; casos confirmados; casos por cada milhão de habitantes; mortes por milhão de habitantes; casos em proporção à testagem; testes por cada mil habitantes”? Como dito pela imprensa internacional e sabido entre nós, ainda há a subnotificação de casos, tão utilizada por esse “governo de extrema direita que, durante a pandemia, minimizou seus perigos e ignorou as recomendações da Organização Mundial da Saúde”.
A história recente nos tem mostrado o perigo que correm nações em que governos autoritários que flertam com o ideário nazifascista, incitam à divisão do seu povo – um golpe de morte na democracia. O povo brasileiro sonha com a sua redenção. Não é impossível que, talvez iluminados pela memória de juristas como Evandro Lins e Silva, Seabra Fagundes e de democratas do porte de Barbosa Lima Sobrinho, seccionais da OAB, juntamente com organizações civis e movimentos sociais, comecem a oferecer assistência jurídica aos familiares de milhares de mortos pela COVID-19 cujas mortes poderiam ter sido evitadas.