Mariana Mazzucato1
Tradução de Artur Araújo, original aqui
O Consenso de Washington está se extinguindo. Em um relatório divulgado esta semana, o Painel de Resiliência Econômica do G7 (onde represento a Itália) exige uma relação radicalmente diferente entre os setores público e privado para criar uma economia sustentável, igualitária e resiliente. Quando os líderes do G20 se reunirem em 30 e 31 de outubro para discutir como "superar os grandes desafios de hoje" - incluindo a pandemia, as mudanças climáticas, o aumento da desigualdade e a fragilidade econômica - eles precisam evitar uma recaída nos pressupostos antiquados que nos colocaram na bagunça atual.
O Consenso de Washington definiu as regras do jogo para a economia global por quase meio século. O termo entrou em voga em 1989 - o ano em que o capitalismo de estilo ocidental consolidou seu alcance global - para descrever a bateria de políticas fiscais, tributárias e comerciais promovidas pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Tornou-se uma frase de efeito para a globalização neoliberal e, portanto, foi criticada - mesmo por suas “instituições-farol” centrais - por exacerbar as desigualdades e perpetuar a subordinação do Sul Global ao Norte.
Tendo, em duas vezes, evitado por pouco um colapso econômico global – a primeira em 2008 e depois em 2020, quando a crise do coronavírus quase derrubou o sistema financeiro - o mundo agora enfrenta um futuro de riscos sem precedentes, incertezas, turbulências e colapso climático. Os líderes mundiais têm uma escolha simples: continuar apoiando um sistema econômico falido ou abandonar o Consenso de Washington por um novo contrato social internacional.
A alternativa é o recentemente proposto “Consenso da Cornualha”. Enquanto o Consenso de Washington minimizou o papel do Estado na economia e impulsionou uma agenda livre-mercadista agressiva de desregulamentação, privatização e liberalização do comércio, o Consenso da Cornualha (refletindo os compromissos expressos na cúpula do G7 na Cornualha em junho passado) inverteria esses imperativos. Ao revitalizar o papel econômico do Estado, isso nos permitiria perseguir objetivos sociais, construir solidariedade internacional e reformar a governança global no interesse do bem comum.
Isso significa que doações e investimentos de organizações estatais e multilaterais exigiriam que os beneficiários buscassem uma rápida descarbonização (em vez de uma rápida liberalização do mercado, conforme exigido pelos empréstimos do FMI para programas de ajuste estrutural). Isso significa que os governos deveriam girar da reparação - intervindo apenas depois que o dano foi feito - à preparação: tomar medidas com antecedência para nos proteger de riscos e choques futuros.
O Consenso da Cornualha também nos faria passar de uma correção reativa das falhas de mercado para uma forma proativa de moldar e criar os tipos de mercado de que precisamos para alimentar uma economia verde. Isso nos faria substituir a redistribuição pela pré-distribuição. O estado coordenaria parcerias público-privadas orientadas por missões, com o objetivo de criar uma economia resiliente, sustentável e equitativa.
Por que um novo consenso é necessário? A resposta mais óbvia é que o modelo antigo não está mais produzindo benefícios amplamente distribuídos - se é que alguma vez o fez. Provou ser desastrosamente incapaz de responder com eficácia a choques econômicos, ecológicos e epidemiológicos de grande porte.
Alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, adotados em 2015, sempre foi difícil sob os arranjos de governança global vigentes. Mas agora, na esteira de uma pandemia que empurrou as capacidades do Estado e do mercado além do ponto de ruptura, a tarefa tornou-se impossível. As atuais condições de crise tornam um novo consenso global essencial para a sobrevivência da humanidade neste planeta.
Estamos à beira de uma mudança de paradigma há muito esperada. Mas esse progresso pode ser facilmente revertido. A maioria das instituições econômicas ainda é governada por regras desatualizadas que as tornam incapazes de organizar as respostas necessárias para acabar com a pandemia, muito menos alcançar a meta do acordo climático de Paris, de limitar o aquecimento global a 1,5°C, em relação aos níveis pré-industriais.
Nosso relatório destaca a necessidade urgente de fortalecer a resiliência da economia global contra riscos e choques futuros, sejam agudos (como pandemias) ou crônicos (como riqueza extrema e polarização de renda). Defendemos uma reorientação radical de como pensamos sobre o desenvolvimento econômico - passando da medição do crescimento em termos de PIB, VAB (valor agregado bruto) ou retornos financeiros para avaliar o sucesso com base em se alcançamos objetivos comuns ambiciosos.
Três das recomendações mais destacadas do relatório dizem respeito à Covid-19, à recuperação econômica pós-pandêmica e à crise climática. Em primeiro lugar, apelamos ao G7 para garantir a equidade da vacina em todo o mundo e investir substancialmente na preparação para pandemias e no financiamento da saúde orientado por missões. Devemos tornar o acesso equitativo, especialmente às inovações que se beneficiam de grandes investimentos públicos e de compromissos de compra antecipada, uma das principais prioridades.
Reconhecemos que isso exigirá uma nova abordagem para governar os direitos de propriedade intelectual. Da mesma forma, o Conselho de Economia da Saúde para Todos da Organização Mundial da Saúde (que presido) enfatiza que a governança da propriedade intelectual deve ser reformada para reconhecer que o conhecimento é o resultado de um processo coletivo de criação de valor.
Em segundo lugar, defendemos o aumento do investimento estatal na recuperação econômica pós-pandemia e endossamos a recomendação do economista Nicholas Stern de que esse gasto seja aumentado para 2% do PIB ao ano, levantando assim US$ 1 trilhão anualmente, de agora até 2030. Porém carrear mais dinheiro não é suficiente; como esse dinheiro é gasto é igualmente importante. O investimento público deve ser canalizado por meio de novos mecanismos contratuais e institucionais, que meçam e incentivem a criação de valor público de longo prazo ao invés do lucro privado de curto prazo.
E em resposta ao maior desafio de todos - a crise climática - pedimos um “CERN para tecnologia climática”. Inspirado pela Organização Europeia para Pesquisa Nuclear, seria um centro de pesquisa orientado por missões, focado em descarbonizar a economia, que reuniria investimentos públicos e privados em projetos ambiciosos, incluindo a remoção de dióxido de carbono da atmosfera e a criação de soluções de carbono zero para indústrias “difíceis de abater” [hard to abate no original, setores econômicos em que os custos de descarbonização são muito altos] como transporte, aviação, aço e cimento. Esta nova instituição multilateral e interdisciplinar atuaria como um catalisador para criar e moldar novos mercados de energia renovável e produção circular.
Estas são apenas três das sete recomendações que fizemos para os próximos anos. Juntas, elas fornecem a estrutura para a construção de um novo consenso global - uma agenda política para governar o novo paradigma econômico que já está começando a se delinear.
Se o Consenso da Cornualha se mantém é algo por ser visto. Mas alguma coisa tem que substituir o Consenso de Washington se quisermos florescer, em vez de simplesmente sobreviver, neste planeta. A Covid-19 fornece um vislumbre dos impactantes problemas de ação coletiva à nossa frente.. Somente a cooperação internacional renovada e a coordenação de capacidades aprimoradas do Estado - um novo contrato social suportado por um novo consenso global - podem nos preparar para enfrentar as crises crescentes e interligadas que estão por vir.
1 Mariana Mazzucato é professora de Economia da Inovação e Valor Público da University College London e Diretora Fundadora do UCL – Institute for Innovation and Public Purpose