Tradução de Wilson Jr. para artigo de Thomas Piketty, publicado no Le Monde

A crise de Covid está nos forçando a repensar as ferramentas de redistribuição e solidariedade. As propostas estão surgindo em todos os lugares: renda básica, garantia de emprego, herança para todos. Digamos desde já: essas propostas são complementares e não substituíveis. No longo prazo, todas elas devem ser implementadas, em etapas e nessa ordem.

Vamos começar com a renda básica. Esse sistema está dramaticamente ausente hoje, especialmente no Sul, onde as rendas dos trabalhadores pobres entraram em colapso e as regras de contenção são inaplicáveis ​​na ausência de uma renda mínima. Os partidos de oposição propuseram a introdução de uma renda básica na Índia nas eleições de 2019, mas os conservadores-nacionalistas no poder em Delhi ainda estão se arrastando.

Na Europa, existem várias formas de rendimento mínimo na maioria dos países, mas com muitas deficiências. Em particular, há uma necessidade urgente de estender o acesso a eles a jovens e estudantes (já é o caso na Dinamarca), e especialmente a pessoas sem endereço fixo ou conta bancária, que muitas vezes enfrentam obstáculos intransponíveis. Vale destacar de passagem a importância das atuais discussões sobre as moedas digitais dos bancos centrais, que idealmente deveriam levar à criação de um verdadeiro serviço bancário público, gratuito e acessível a todos, a antítese dos sistemas idealizados pelos operadores privados (seja descentralizado e poluente, como o Bitcoin, ou centralizado e não igualitário, como os projetos do Facebook ou de bancos privados).

É também imprescindível estender a renda básica aos trabalhadores mal remunerados, com sistema de pagamento automático sobre folhas de pagamento e contas bancárias, sem que as pessoas tenham que pedir, vinculado ao sistema de tributação progressiva (também deduzido na fonte).

A renda básica é uma ferramenta essencial, mas insuficiente. Em particular, seu valor é sempre extremamente modesto. Dependendo da proposta, geralmente fica entre meio e três quartos do salário mínimo de tempo integral, de modo que, por construção, só pode ser uma ferramenta parcial no combate à desigualdade. Por isso, é preferível falar de uma renda básica a uma renda universal (noção que promete mais do que essa realidade minimalista).

Uma ferramenta mais ambiciosa que poderia ser implementada como complemento da renda básica é o sistema de garantia de emprego recentemente proposto no âmbito das discussões sobre o New Deal Verde (ver em particular Pavlina Tcherneva[i]La garantie d'emploi. L'armesocialedu Green New Deal, La découverte, 2021). A ideia é oferecer a todos aqueles que desejam um emprego de tempo integral com um salário mínimo fixado em um nível decente (US$ 15 por hora nos Estados Unidos). O financiamento seria fornecido pelo governo federal e os empregos seriam oferecidos por agências de emprego públicas nos setores público e voluntário (municípios, comunidades, organizações sem fins lucrativos). Colocado sob o patrocínio duplo da Declaração de Direitos Econômicos, proclamada por Roosevelt em 1944, e da Marcha para Empregos e Liberdade, organizada por Martin Luther King em 1963, tal sistema poderia dar uma contribuição poderosa para o processo de desmercadorização e redefinição coletiva de necessidades, particularmente nas áreas de serviços pessoais, transição energética e renovação de edifícios. Permite também, a um custo limitado (1% do PIB na proposta da Tcherneva), trazer de volta ao mercado de trabalho todos aqueles que foram privados do emprego durante as recessões e, assim, evitar danos sociais irremediáveis.

Por fim, o último dispositivo que poderia completar o pacote, além da renda básica, a garantia de emprego e o conjunto de direitos associados ao estado social mais amplo possível (educação e saúde gratuitas, pensões e benefícios de desemprego altamente redistributivas, direitos sindicais etc.), é um sistema de herança para todos. Quando estudamos a desigualdade a longo prazo, o mais impressionante é a persistência de uma hiperconcentração de propriedade. Os 50% mais pobres quase nunca possuíram nada: 5% da riqueza total da França hoje, em comparação com 55% para os 10% mais ricos. A ideia de que apenas temos de esperar que a riqueza se espalhe não faz muito sentido: se fosse esse o caso, já o teríamos visto há muito tempo. A solução mais simples é uma redistribuição da herança permitindo a toda a população receber uma herança mínima, que, para fixar ideias, pode ser da ordem dos 120 mil  euros (ou seja, 60% da riqueza média por adulto). Pago aos 25 anos de idade, seria financiado por uma combinação de impostos progressivos sobre riqueza e herança, gerando 5% da renda nacional (uma quantia significativa, mas que poderia ser considerada a longo prazo). Aqueles que atualmente não herdam nada receberiam 120 mil euros, enquanto aqueles que herdam um milhão de euros receberiam 600 mil euros. Estamos, portanto, ainda longe da igualdade de oportunidades, princípio muitas vezes defendido em nível teórico, mas que imediatamente põe as classes privilegiadas em guarda sempre que se prevê um início de aplicação concreta. Alguns desejarão restringir seu uso; porque não, desde que se apliquem a todas as heranças.

A herança para todos visa aumentar o poder de barganha de quem não tem nada, permitir-lhe recusar determinados empregos, adquirir moradia ou empreender um projeto pessoal. Empregadores e proprietários têm medo dessa ideia de liberdade e podem se tornar agressivos, enquanto os beneficiários são atraídos pela melhoria de suas perspectivas. Estamos apenas emergindo de um longo período de isolamento / confinamento forçado. Mais uma razão para começar a pensar e esperar novamente.

Thomas Piketty

[i]NT. Pavlina R. Tcherneva é economista, membro do Levy Institute e conselheira econômica de Bernie Sanders. Ela é uma das principais figuras da teoria monetária moderna, tendência econômica heterodoxa que está revolucionando a relação com a questão da dívida pública e do emprego.